Ana Gomes: Infiel a Fidel

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Fidel Castro foi personagem marcante do século XX. Mas nem sempre pela positiva.

Começou bem. Foi o “El Comandante” da revolução contra a colonização de Cuba pelo imperialismo americano que sustentava a ditadura corrupta de Fulgêncio Batista – que, não por acaso, se exilou na ditadura em Portugal, na Madeira. A descida da Sierra Maestra e a entrada gloriosa em Havana em 1959 despertariam a mitologia da revolução cubana: quem da minha geração não teve posters na parede com o Che de boina e estrela?

A revolução trouxe esperança e admiráveis progressos na saúde e na educação, acessíveis a todos em Cuba – e bem exportados, como atestam os médicos cubanos e timorenses formados em Cuba que cuidam do povo em Timor-Leste. As exportações militares foram politicamente mais questionáveis, por justificadas que fossem na luta contra o colonialismo, da Guiné-Bissau (e eu não me arrependo de ter andado pela ruas de Lisboa a gritar pela libertação do cubano Capitão Peralta nos idos de 74…) a Angola, onde os militares cubanos foram decisivos em arrumar a África do Sul. Angola, onde Fidel, hábil cavalgador do Movimento dos Não Alinhados, arrumou também a tentativa de hegemonia soviética, apoiando Agostinho Neto contra Nito Alves…

Mas há um reverso trágico, pela intolerância de Fidel aos que tinha por infiéis, por teimarem em exercer direitos e liberdades fundamentais e divergir e criticar o regime. E pela penúria, a pobreza indigna que fez emigrar milhões de cubanos e que não resultou apenas do embargo com que retaliaram os Estados Unidos. O embargo forneceu, de facto, um alibi para os sacrifícios e a repressão que o despotismo de Fidel impôs ao povo cubano: no fundo, a América que defendeu o embargo foi a melhor aliada da ditadura em Cuba.

Com o afastamento de Fidel Castro do poder executivo por doença (formalmente em 2006), a mudança começou em Cuba. Tinha de ser, porque entretanto ruira o outro sustentáculo da ditadura cubana: o apoio económico da União Soviética. O vislumbre de abertura explica a visita do Presidente Obama a Cuba há dois anos: veremos se se vai acelerar agora, não obstante ou com a “ajuda” dos extremistas em torno de Trump…

Não me arrependo, como Secretária Internacional do PS em 2003, de ter publicado um comunicado em nome do Partido a condenar as execuções de dissidentes pelo regime castrista: os socialistas democráticos não podem calar perante a perversão política e ideológica que toda e qualquer ditadura implica.

Muitos respirarão hoje com mais esperança em Cuba, tantos certamente quanto choram Fidel, mas a maioria dos mais jovens fica indiferente: só anseia por emigrar.

Em Portugal irrita que sobretudo se discuta o carisma de Fidel: como se o carisma dispense de avaliar se foi posto ao serviço do bem ou do mal.

Eu não choro Fidel. Presto tributo ao revolucionário, a El Comandante da Sierra Maestra. Mas constato que ontem se apagou mais um tirano.

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Ana Gomes é eurodeputada socialista e membro da Comissão Nacional do PS.

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