Ana Carla Abrão Costa e Paulo Hartung: A refundação do Estado brasileiro

Mãos à obra, para que o sentido de nação seja o mesmo para todas e todos os brasileiros.
Foto: Paulo Jacinto/FAP
Foto: Paulo Jacinto/FAP

Mãos à obra, para que o sentido de nação seja o mesmo para todas e todos os brasileiros

Francis Fukuyama, em seu livro Ordem Política e Decadência Política (Political Order and Political Decay), faz uma análise do papel do Estado no destino das nações. Nos países onde o patrimonialismo e o clientelismo deram lugar a um Estado voltado para servir o cidadão, o desenvolvimento acelerou-se e foi mais consistente, contribuindo para a consolidação das instituições democráticas e garantindo o bem-estar da população, com níveis inferiores de desigualdade social. Fukuyama, a par de uma ou outra menção ao Brasil, não faz uma análise profunda das bases históricas do Estado brasileiro. Mas sua leitura provoca reflexões que contribuem para um resgate da justiça social e das condições de crescimento por meio da refundação do nosso Estado.

Ao longo dos séculos, a máquina pública brasileira garantiu privilégios a classes específicas, desviando-nos do caminho da igualdade de oportunidades, da inclusão social e do desenvolvimento econômico de forma sustentável. Baseado num modelo operacional arcaico e voltado para sua autoperpetuação, construímos uma engrenagem de reforço de desigualdades que agora chegou ao limite. Exauriu-se e hoje se vê incapaz de servir à população. Esgarçou sua relação com o servidor público, tamanha a ineficiência que deriva de um modelo concentrador de renda e expropriador.

A baixa qualidade dos serviços públicos, o excesso de gastos e sua trajetória inexoravelmente crescente, a desigualdade salarial e as injustiças internas e externas definem uma espiral que serve a poucos, mas tira muito do País. Essa máquina de desigualdades abriu um abismo entre os que têm acesso à educação de qualidade e a bens e serviços básicos, como saneamento, ou sofisticados, como a tecnologia, e a maioria da população, que depende do Estado para ter alguma possibilidade de ascensão social ou ao menos a melhores condições de vida.

Felizmente, a sociedade brasileira tem demonstrado seu profundo descontentamento com a qualidade dos serviços públicos e a forma atual de organização do Estado. Ela não quer mais conviver com um sistema que divide o mercado de trabalho em dois: o público, em que benesses e privilégios vão muito além da estabilidade – em particular para a elite do funcionalismo; e o privado, sujeito a toda sorte de intempéries. Ela não aceita mais ganhos salariais reais contínuos, garantias de promoções, progressões, gratificações e outras vantagens financeiras desconectadas do resultado e presentes mesmo quando a economia afunda e o mercado privado desemprega e corta salários. Tudo isso se traduz em crescimento dos gastos públicos obrigatórios e também numa máquina que se deteriora, comprometendo as condições de trabalho dos servidores e, consequentemente, a qualidade da prestação de serviços para o cidadão.

Mirar um futuro diferente do presente e distanciado do passado é incrementar os passos reformistas. Nesse sentido, o gesto tardio e acanhado do governo federal ao enviar uma proposta de reforma administrativa ao Congresso Nacional abre uma possibilidade de avanço. Embora dependente do recebimento dos projetos de lei necessários ao detalhamento da reforma, caberá ao Parlamento a liderança desse processo. Quiçá menos atado às amarras corporativistas que limitaram a proposta enviada, ele poderá estender ao presente os conceitos que são hoje apenas promessas de futuro e promover a necessária mudança estrutural. Mas nessa caminhada imperativa o futuro precisa começar hoje. Não amanhã.

Nosso Estado é arcaico. Ineficaz e oneroso, investe muito mal e gasta para si. É um Estado anacrônico. Em tempos de avanço tecnológico, continua analógico e cartorial. Nosso Estado é cativo, historicamente capturado e patrimonialista, finca suas bases na defesa de grupos de interesse, sejam eles segmentos sociopolíticos e econômicos ou corporações estatais, que de forma hábil e perversa fazem confundir seus interesses particulares com os da Nação, sustentando uma sociedade inaceitavelmente desigual.

A refundação do Estado é, portanto, a única forma de usar suas potencialidades não mais na promoção de privilégios e desigualdades, mas na indução de prosperidade para todos. Nesse contexto, precisamos de uma reforma que vá além da criação do serviço público do futuro, como propõe o governo de forma teórica, mas também reformule as atuais leis de carreiras. Muito mais do que a esperada e desejada redução e racionalização dos gastos públicos, a prioridade é a busca da eficiência e da qualidade na prestação de serviços, além dos necessários ganhos de produtividade, que são precondição para a retomada do crescimento sustentável e da geração de emprego e renda.

A pandemia reforçou essa necessidade ao expor o distanciamento do Estado brasileiro da realidade dos cidadãos, especialmente dos mais empobrecidos. O governo cobra impostos de todos, mas não consegue saber quem são os brasileiros que precisam de apoio.

É preciso refundar o Estado para que ele seja parte e promotor de um novo futuro para o Brasil. Pois, como bem alertou Saint-Exupéry, “o futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas um lugar que estamos construindo”. Mãos à obra na refundação do Estado, para que o sentido de nação seja o mesmo para todas e todos os brasileiros, finalmente!

ECONOMISTAS

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