Embora extremamente relevante do ponto de vista fiscal, a discussão em torno da reforma da previdência, incluindo a idade mínima para aposentadoria, passa ao largo de uma questão de fundo: a distribuição entre tempo de trabalho (necessidade) e tempo livre (liberdade) na sociedade moderna. A aposentadoria é apenas o direito ao tempo livre remunerado que o trabalhador recebe após anos dedicados à labuta de várias horas por dia durante a sua vida produtiva. O trabalho ao longo da vida difere no tempo com as condições econômicas e políticas que definem a jornada de trabalho, sendo a aposentadoria o repouso no período que resta de vida ao trabalhador. No início da revolução industrial, quando o operário trabalhava 16 horas por dia em sete dias da semana, a expectativa de vida flutuava em torno de 35 anos, de modo que, mesmo que tivessem aposentadoria, conquista bem posterior aos anos iniciais do capitalismo, não tinham mais energia e saúde para, digamos, “gozar a vida”. Os trabalhadores praticamente não tinham tempo livre ao longo da vida e menos ainda depois da curta e prematura velhice.
Os grandes avanços tecnológicos ao longo de dois séculos do capitalismo levaram a uma redução continuada e significativa da jornada de trabalho; de mais de 100 horas semanais, no início da revolução industrial, chegamos às 44 horas atuais, e muitas categorias em vários países já trabalham apenas 40 ou, até mesmo, 35 horas semanais, na França. Mesmo sem considerar as férias remuneradas, o tempo médio de trabalho atual é menos da metade do que era despedido por um trabalhador no início de revolução industrial. Esta redução da jornada de trabalho, disponibilizando um maior tempo livre aos trabalhadores ao longo da vida, não teria sido possível sem o excepcional aumento da produtividade do trabalho decorrente das ondas de inovação tecnológica nos duzentos anos de história.
Mesmo com menos horas dedicadas ao esforço diário de produção, o trabalhador vem aumentando a produção e também a sua parcela no excedente (mais-valia relativa de Marx), com elevação do salário real, graças ao aumento excepcional da produtividade do trabalho. Esta redução da jornada de trabalho permitiu, por outro lado, a moderação do desemprego (desemprego tecnológico) que teria crescido a níveis insustentáveis do ponto de vista econômico, social e político. A combinação de crescimento da produção e declínio da jornada de trabalho permitiu que se ampliasse a absorção da oferta de mão de obra que acompanhava a expansão demográfica e o aumento da população em idade ativa. Em certa medida, o desemprego tecnológico é uma forma de tempo livre, compulsório e indesejável (por não ser remunerado, como a aposentadoria), que atingiria parte da classe trabalhadora não absorvida no mercado de trabalho.
Considerando a nova revolução tecnológica em curso (robotização, internet das coisas, indústria 4.0, impressoras 3D) e o desemprego decorrente, mesmo com a economia apresentando taxas médias de crescimento, não será um despropósito retomar a discussão sobre a diminuição da jornada semanal de trabalho. Mais gente trabalhando menos evita o desemprego tecnológico, ao mesmo tempo em que amplia o tempo livre de todos os trabalhadores e, portanto, a disponibilidade de horas semanais para as atividades lúdicas, intelectuais e culturais. É importante não esquecer, em todo caso, que a jornada de trabalho semanal é um conceito que vem perdendo importância para várias atividades produtivas e profissionais, por conta das profundas mudanças das relações de trabalho decorrentes das inovações tecnológicas.
Considerando a possibilidade real de redução do tempo de trabalho alocado pelos trabalhadores, a sociedade deve decidir sobre a forma de distribuição deste adicional de tempo livre. Durante a semana (jornada semanal), por dia, ao longo da vida, ou no restante de vida após uma idade considerada inativa? A aposentadoria é parte desta divisão entre os muitos anos de trabalho (com diferente jornada semanal) e o tempo de não trabalho (livre) das pessoas, supondo a perda de capacidade produtiva com o avanço da idade. Entretanto, uma redução significativa da jornada semanal de trabalho poderia ser compensada pela ampliação da vida ativa do trabalhador retardando, portanto, proporcionalmente a idade de aposentadoria.
Computando o tempo de trabalho ao longo de toda a vida do trabalhador, e não apenas por semana, pode-se combinar uma menor jornada com mais anos de trabalho. Se o tempo livre significa “aproveitar a vida” para além da necessidade (trabalho), não seria melhor ter mais tempo disponível na juventude, com menor jornada, mesmo que se tivesse que trabalhar ao longo de toda a vida? Em outras palavras, intensificar a redução da jornada de trabalho em troca de ampliação do tempo de trabalho, diluindo o tempo livre ao longo de toda a vida, em vez de jogar para o futuro, quando se alcançaria a aposentadoria. No limite, o trabalhador nem precisaria se aposentar, mas teria muito mais tempo livre ao longo da juventude e da idade adulta, quando estaria no auge das condições físicas e intelectuais para viver a vida.
* Sérgio C. Buarque é economista
Ano vi nº 264 – a semana na revista será? – 27.10.2017