O tamanho do retrocesso embutido na portaria do atual governo sobre trabalho análogo à escravidão é obsceno
Faz exatamente 20 anos que uma cabocla maranhense saiu de Bacabal, cidade-fornalha na divisa com o Pará, e desembarcou no inverno de Londres com apenas uma sacola de viagem comprada e equipada pela Pastoral da Terra de São Luiz. A bagagem continha produtos de higiene pessoal e roupa íntima. Um vestido de gala lhe seria presenteado na capital inglesa.
Em 54 anos de vida Pureza Lopes Loiola nunca havia saído da roça.
À sua espera no aeroporto de Heathrow estava um intérprete encarregado de traduzir a narrativa dessa brasileira que se alfabetizou aos 40 anos para ler a Bíblia e tentar achar o filho sumido nas entranhas do trabalho escravo rural brasileiro. O intérprete também ajudou a viajante a absorver aquele mundão novo para o qual ela havia sido catapultada sem querer.
Indicada pela Pastoral maranhense ao prêmio 1997 da Anti-Slavery International, entidade pioneira fundada na Inglaterra em 1839 para combater o tráfego de escravos no mundo, dona Pureza havia sido a vencedora. E para receber a homenagem foi preciso viajar.
A primeira perna até São Luís foi de ônibus. Dali embarcou num voo até Salvador, com troca de avião em Fortaleza e escalas no Recife e em Natal. Por último, a travessia noturna do Atlântico, rumo ao destino final desconhecido. Coisa de 32 horas entre a sua casa de tijolo sem reboco no setor mais desassistido de Bacabal, e um dos aeroportos mais pantagruélicos do mundo.
Como a homenageada nunca tinha viajado de avião, e estava sozinha, a Pastoral e os anfitriões ingleses trataram de informar as respectivas empresas aéreas sobre a presença a bordo de passageira tão especial.
Preocupação desnecessária. Evangélica de fé, dona Pureza tirou tudo de letra. Só se inquietou no voo de retorno ao Brasil quando o comandante saiu da cabine, foi trocar algumas gentilezas com a passageira e acabou comentando que também iria tirar um cochilo. “Ué”, pensou a viajante, “ele não deveria continuar a pilotar o avião?”
A entrega do prêmio da Anti-Slavery — chamada mãe de todas as ONGs por ser a mais antiga do mundo — é solene e envolve uma programação intensa. Além da cerimônia principal no Westminster Central Hall, há uma recepção black-tie, beneficente, no cultuado hotel Savoy, uma visita ao Parlamento, ao Foreign Office, uma dezena de entrevistas e palestras em ONGs de outros países europeus — o roteiro alemão, por exemplo, incluiu Göttingen, Bonn, Düsseldorf, Aachen, Colonia, Heidelberg, Freiburg e Stuttgart.
A maratona de quase um mês não intimidou a estreante em terra estrangeira. Mulher inteligente e perceptiva, anotou tudo que lhe pareceu extraordinário para contar na volta ao pessoal da Quadra L, Rua 3, na Vila São João. Em uma das fitas que gravou, ouve-se um chiado contínuo por vários minutos. “Tá ouvindo?”, perguntava a todos. “Isso aí é o trem passando embaixo do mar. Uma maravilha — a gente embarca na Inglaterra e sai na França!”
Foi em 1993 que o caçula dos cinco filhos de dona Pureza saiu de casa em busca de emprego e acabou “sumido”. Um irmão e dois primos da maranhense também já haviam sido tragados em algum garimpo, fazenda ou carvoaria, sem deixar rastro.
Dona Pureza então decidiu pôr o pé na estrada. Largou a carvoaria que lhe rendia uns trocados e começou a percorrer os entrepostos de trabalhadores rurais desempregados. Mostrava a foto do filho de 18 anos e ia perguntando se alguém tinha visto aquele jovem com três dedos do pé esquerdo atrofiados.
Ao longo de três anos peregrinou, seguindo pistas que davam em nada. Mas anotava tudo o que via e ouvia — nomes de fazendeiros, locais suspeitos, tudo. De um sobrinho conseguiu emprestado um gravador que escondia na roupa de evangélica. Passou a gravar suas conversas com agenciadores de trabalho escravo, peões amedrontados, fazendeiros que jamais suspeitariam daquela crente. Na Pastoral ela encontrou incentivo para encaminhar denúncias a Brasília, a persistir. Escreveu dezenas de cartas a autoridades federais.
Dos presidentes Itamar Franco e, depois, Fernando Henrique Cardoso recebeu exatamente a mesma resposta protocolar. Dos conterrâneos José e Roseana Sarney não pronuncia o nome pois sequer responderam. À época, pelas contas da Pastoral da Terra, o número de brasileiros que trabalhavam sob vigilância armada, sem salário e cortados do mundo, em regime de escravidão, chegava a 26 mil.
“Lá em Brasília não têm misericórdia. Quando sentam na cadeira , acham que são semideuses. O Congresso passa o tempo todo brigando por dinheiro em vez de olhar com mais piedade para o povo”.
Esta coluna evoca aqui parte da viagem feita com dona Pureza duas décadas atrás, para “Veja”, por ela continuar atual. O tamanho do retrocesso embutido na portaria 1.129/2017do atual governo é obsceno. Alterar as regras de combate ao trabalho escravo, ou análogo ao trabalho escravo, num país em que as operações de fiscalização estão em ponto morto (foram 189 uma década atrás, este ano despencaram para 49), os recursos para a inspeção viraram farinata, e os beneficiários de sempre deixarão de ser nomeados, se encaixa na avaliação da cabocla respeitada em Londres:
“Lá em Brasília não têm misericórdia. Quando sentam na cadeira, acham que são semideuses”.
* Dorrit Harazim é jornalista