Day: novembro 29, 2022

Foto: Arquivo Pessoal/Ivanir dos Santos

Revista online | Combate à intolerância religiosa é desafio do governo Lula

Jane Monteiro Neves, Sionei Leão, Cleomar Almeida e João Rodrigues*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022) 

Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o professor Babalawô Ivanir dos Santos destaca a importância do movimento negro para a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e diz que a “intolerância religiosa está espalhada por todo o país”. Em entrevista à revista Política Democrática deste mês de novembro (49ª edição), ele diz que o problema se agravou nos últimos quatro anos, com “interferência muito forte na democracia brasileira”.

O professor, que também é membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), defende um plano nacional de combate à intolerância religiosa, cuja proposta, segundo ele, foi apresentada ainda em 2008 a Lula. “O novo governo deve ter medidas concretas e efetivas de combate à intolerância religiosa”, assevera.

Pesquisador do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER-UFRJ) e do Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais pós coloniais (LEHA-UFRJ), Santos também critica o academicismo nas universidades brasileiras e ressalta a necessidade de pensamento intelectual que reflita sobre a realidade dos mais pobres, a maioria da população. “Nem todos os acadêmicos são intelectuais”, afirma.

Diante do alerta de o Brasil ter voltado ao Mapa da Fome, das Nações Unidas, o professor também chama a atenção para a urgência de se garantir a segurança alimentar da população. “Fome Zero não é só dar o cartão para o pessoal adquirir o alimento no mercado, mas criar um processo de produção e de escoamento de alimentos para que cheguem a uma rede mais barata e a quem mais precisa”, sugere. A seguir, confira trechos da entrevista.

Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online

Política Democrática (PD): O que o senhor espera para o Brasil nos próximos quatro anos?

Babalawô Ivanir dos Santos (BIS): Neste momento, o sinal é de que se deve caminhar em sintonia com o respeito à democracia, às liberdades, às diversidades, ao Estado laico e aos direitos humanos e o fortalecimento das lutas contra a misoginia, o racismo, a homofobia. No processo eleitoral, além das questões econômicas e sociais, havia um divisor de águas entre o ódio e a democracia, envolvendo o racismo, a intolerância religiosa, a diversidade e as liberdades. Ganhou o campo da diversidade e da liberdade. Tenho chamado atenção de que os partidos progressistas foram muito importantes nesse processo. Houve uma unidade nunca pensada antes, independente das questões do primeiro turno. Quem garantiu essas eleições foram os que eles chamam de grupos de identidade, porque correm dizendo que são identitários, que são os grupos, acham que são minoritários - e não são tão minoritários assim -, que já garantiram a eleição no primeiro turno, junto a essas forças progressistas, mas todos os apoios foram importantes do ponto de vista político, mas, do ponto de vista eleitoral, não garantiram uma larga vitória. Tivemos uma vitória eleitoral muito pequena, mas uma grande vitória política, inegavelmente. Não se pode esquecer desses movimentos sociais e desses grupos que foram aliados importantes desde o primeiro turno e, obviamente, no segundo. Por isso, espero que assim seja na compreensão da montagem do governo, que precisa ter uma expressão de representação simbólica muito importante desses grupos.

PD: O senhor publicou o livro Marchar não é caminhar: interfaces políticas e sociais das religiões de matriz africana no Rio de Janeiro (2019, 360 páginas). Ao longo de sua vida, como marchar não é caminhar?

BIS: Essa é a minha tese de doutorado em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É o que implantamos agora na sociedade brasileira. Você tem um setor da sociedade que quer marchar, marchar… Consequentemente, quer destruir o outro, quer impor ao outro, quer, de forma autoritária e fascista, impingir ao outro a sua vontade, e caminhar é o contrário. Caminhar é uma frente. Caminhar é estarmos juntos. Para caminhar, é preciso sentar, recuar, ter diálogo e convivência com o outro, aprender com o outro, trocar com o outro. Por isso, caminhar é um processo. Quando se diz marchar, você está fazendo o jogo do adversário ou do inimigo. E caminhar, não. Caminhar é esse processo de frente ampla. Tem, às vezes, conflitos, mas você aprende na caminhada. Na caminhada, não se impõe ao outro a sua vontade. Aqui também faço, justamente, uma comparação entre a Marcha para Jesus e a Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa. O resultado da eleição não foi diferente. Em suposto nome de Jesus, impõe-se o ódio, a misoginia, a homofobia, o fascismo. No caminhar, há grupos evangélicos, cristãos, não cristãos, ateus. E foi isso sempre que as religiões de matriz africana fizeram. São grupos minoritários do ponto de vista da expressão política, mas podemos construir uma hegemonia sem ser maioria política.

PD:  O senhor é Babalawô. Na luta em defesa da liberdade religiosa, o senhor está otimista neste momento? 

BIS: Fui iniciado no candomblé há 41 anos, na Bahia, em Maragojipe, onde fiz todas as minhas obrigações. Tornei-me Babalorixá. E hoje sou um Babalawô, iniciado na Nigéria há 17 anos. Um sacerdote que é o pai, que olha o oráculo. Na Nigéria, o Babalawô não é só um líder espiritual, é um líder espiritual e político do seu povo, é aquele que orienta espiritualmente e politicamente o seu povo. Então, essa é uma questão importante a ser observada, para entender o meu papel, inclusive, nesse cenário. Não é só o lado espiritual, é conjugando o lado espiritual com as questões sociais, políticas, culturais e econômicas no qual esse povo vive. Se tem desemprego, o Babalawô deve defender o pleno emprego. Precisa, ainda, lutar pela diversidade, por respeito, contra o racismo. Se há homofobia, deve ser contra a homofobia. Se tem antissemitismo, ele tem lutar contra o antissemitismo, Babalawô é isso. Ele não pode ser omisso, não pode só ficar ligado ao lado espiritual nem apenas à teologia da prosperidade, que não é riqueza, não são bens materiais. É viver bem, ter um bom salário, ter um bom emprego, ter uma boa casa, construir uma família, ter uma boa educação, ter saúde. Isto é prosperidade. Além disso, pouca gente tem noção da intolerância religiosa, que virou um problema sério na América Latina. Essa é uma agenda civil, e tem piorado muito esse aspecto no país. No final do mês de janeiro, vou lançar um relatório nacional que demonstra isso. A intolerância religiosa está espalhada por todo o país, em todos os lugares, e, nesses últimos quatro anos, fez uma interferência muito forte na democracia brasileira. O presidente [Jair Bolsonaro] diz que o Brasil é um país ocidental cristão e que a minoria tem que se enquadrar. Todos nós sentimos o impacto disso. Na vida de todos, houve uma divisão e briga nas famílias. A família brasileira sempre foi muito diversa. Há cristão católico, cristão protestante, ateu, candomblecista, espírita kardecista, umbandista. Quando tenta se colocar uma única forma de religiosidade, cria-se uma divisão enorme. Desde os anos 1970, havia uma forma de o fascismo crescer no Brasil. Ele cresceria a partir do viés religioso, neopentecostal, embora haja grupos neopentecostais minoritários que estiveram no nosso campo, no trabalho conosco da diversidade religiosa, porque no Rio mostramos isso muito bem. Lá atrás, em 2008, encontramos com o então presidente Lula logo depois da primeira caminhada pela liberdade religiosa, aqui no Rio de Janeiro. Foram 20 mil pessoas para a rua, e entregamos a ele um documento para que se fizesse um plano nacional de combate à intolerância religiosa. E não foi feito. Nenhum dos governos seguintes deu atenção a esse tema, e agora vai ter que dar não só para ampliar o diálogo com os evangélicos, como tenho escutado muito. Acho que tem que ampliar o diálogo com os evangélicos, não sou contra, muito pelo contrário, sou um homem de diálogo, mas, antes de tudo, o novo governo deve ter medidas concretas e efetivas de combate à intolerância religiosa. É preciso garantir a aplicação da Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira. Ela foi capturada como se fosse uma lei religiosa, e não é. É uma lei de história e cultura. Vai ter que implantar isso, com orçamento, capacitação de professores e produção e distribuição de material didático. Também é preciso discutir a cultura indígena, porque a lei foi complementada depois. O Brasil não pode ter modelo civilizatório simplesmente europeu e achar que isso está correto. Existem outros grupos que estão na constituição desse país, embora em condições totalmente diferentes. Uns vieram como escravos, outros foram marginalizados, como a comunidade indígena, que também deve ser levada em conta e faz parte dos valores civilizatórios brasileiros. Todos temos noção do que é muito importante, mas há uma luta contra a hegemonia cultural no país. É preciso considerar a agenda do movimento negro, do movimento LGBTQIA+, das mulheres, das populações indígenas, assim como a agenda da diversidade religiosa. Não basta criar conselhos. Isto é importante, mas não é tudo. A questão é saber quais são as medidas efetivas de combate ao racismo, à homofobia, à misoginia, à intolerância religiosa... É importante considerar isso no projeto de governo, em todas as esferas. Estou falando não é só nos puxadinhos. Não é apenas reformular a Fundação Palmares, por exemplo. Tudo isso é importante, mas não dá conta da imensidão de brasileiros e brasileiras desses grupos na luta pelos seus direitos. Eles precisam estar representados nos ministérios, na economia, e devem participar da formulação de políticas públicas sociais, de saúde, de educação, de cultura e das demais áreas. É preciso haver diálogos e políticas públicas efetivas, com conferências também, mas, se as conferências propuserem medidas que não possam ser executadas, o país cai em uma situação de manter o status quo, que, no momento, é extremamente racista, do ponto de vista estrutural.

PD: Como o senhor vê essa possibilidade de mudança de paradigma e do fortalecimento da cultura antirracista em nosso país no novo governo?

BIS: Primeiro temos que observar a retórica do próximo presidente da República que nós elegemos. Durante a campanha, ele falou da questão racista, prometeu restaurar as estruturas antirracistas importantes. Ele tem noção muito boa, quando fala da escravidão, tem compreensão estrutural, mas há uma distância entre o que ele fala e o que aqueles que estão em sua volta executam. Lá atrás ele disse que os negros não só seriam ouvidos, mas que os iriam participar da construção do seu governo. Isso não aconteceu no primeiro momento da formulação da equipe de transição. Pelo contrário, foi necessária uma reação de setores da comunidade negra, muito irritados, porque o apoiaram e votaram nele, como eu e outros. Se não fosse essa pressão, não teria ampliado a participação minoritária, quase insignificante, em outros grupos da equipe de transição. Foi majoritária no grupo da igualdade racial. Nos demais grupos, a participação de pessoas negras foi extremamente minoritária. Por isso, digo que existe uma distância entre a fala de Lula, o compromisso que ele assumiu [na campanha eleitoral], e as ações subsequentes por parte daqueles que o cercam na compreensão política de diversidade. Não entendem nada de diversidade. Hoje há uma massa crítica de negros no Brasil que não havia antes, de formados, inclusive, de militantes ativistas, de intelectuais orgânicos e públicos, que construíram essa agenda racial. A academia vem um pouco depois, porque não formulou nada para nós. Muito pelo contrário. Fomos para a academia sistematizar a nossa experiência, totalmente diferente de uma grande parcela de homens e mulheres brancos, que discutem estado, políticas públicas, a partir não de uma experiência empírica que eles têm. E, no nosso caso, sim. Então, é preciso aproveitar essa capacidade. Nem todo acadêmico é intelectual. Às vezes, é mero reprodutor de teorias e metodologias. Devemos tomar muito cuidado ao trazer essas contribuições de formulações para dentro dos processos, para que não permaneçam os mesmos. Observamos que a estrutura não muda. Como é que você entende que, ainda nos dias de hoje, em governos progressistas, nos quais muitos de nós votamos e com os quais concordamos, a polícia continua, de forma lombrosiana, matando jovens negros, encarcerando jovens negros? O governo é progressista, mas a prática da máquina operacional do cotidiano ainda se reelege por conta disso. Essas mesmas práticas continuam nos aparelhos de Estado, de maneira até eugenista. 

PD: Como o senhor interpreta a questão da história brasileira, seus estudos e a contribuição do negro, enquanto intelectual acadêmico?

BIS: Não é uma presença fácil, até porque, como digo, não fui para a academia para que a academia entrasse em mim, porque tem muitos negros que vão e ficam acadêmicos, muito teóricos. Discutir com a juventude teoria, metodologia e regras da ABNT [Associação Brasileira de Normas Técnicas] todo mundo sabe, mas a experiência empírica é quase nenhuma. Fui pela ideia de sistematizar a minha experiência. É diferente. Não é à toa que uso bem, por exemplo, obras de Antonio Gramsci e Thompson, que falam de experiência, e sempre, como militante de esquerda, achei que tinha um vácuo para se compreender essa noção, como se a classe operária fosse um único modelo. E os negros nunca vão ser analisados como classe operária nesse sentido. O trabalhador, às vezes, tem religião. Então, quando se amplia uma compreensão de classe operária, dá para compreender que se pode analisar as nossas experiências a partir desses lugares. Então, traz uma nova participação, inclusive, da questão negra, e, ao utilizar muito a história dos que vêm de baixo, estou na história comparada. Constrói-se uma história dos que vêm de baixo com os de baixo, não pelos de cima que querem analisar os de baixo e têm muita diferença também sobre isso. Por isso que minha tese é uma experiência que construímos, usando todas as regras acadêmicas da objetividade, da metodologia, da teoria, porque essa tese teve prólogo. Vou falar de uma experiência de que participei, mas analisando a experiência com distância. Eu tinha que fazer um prólogo para dizer de onde eu vim, o que eu fazia, para as pessoas entenderem o que eu estava falando. Então, isso é uma nova epistemologia. Como é esse negócio de se analisar uma coisa se você, de tão de baixo, pobre, operário, não vai se colocar? Isso é bom para quem? Para a elite, porque ela não precisa dizer que está estudando. Objetividade tem um pouco a ver com isso. Se você está em um debate político e traz um problema que incomoda, não está sendo racional. Como se os negros só fossem emoção e como se a razão fosse o único ponto importante da ciência. Então, é muito mentiroso. Acho que, do ponto de vista dos africanos, é preciso haver equilíbrio entre razão e emoção, obviamente. Essas estruturas racionais que foram criadas, e ainda são mantidas, são racistas e perversas. Em qualquer país, isso é muito nítido, como para nós. Para a nossa comunidade, elas são muito draconianas, muito tristes. Para manter o status quo da sociedade e os privilégios, são ótimas. Entrar na academia exige trazer novas reflexões, novos diálogos e novas possibilidades. Agora, querendo ou não, é um lugar de poder. Sempre comento que a sociedade discrimina alguém por ser Babalawô e ser negro, mas ser pós-doutor é outra história. Porque entrou-se naquela lógica do mérito, já que são poucos os que vão para esse lugar. A questão é como se exerce este lugar, esta capacidade como intelectual. Nem todos os acadêmicos são intelectuais. Normalmente, são reprodutores de meros conhecimentos, uma boa parte deles. Não é à toa que eles não topam certos debates porque não dominam, pois a academia não é uma verdade absoluta. Ela tem várias verdades. A academia não é para dar respostas. Na verdade, surge para criar novas perguntas, e perguntas interessantes. Isto é dialética. Quando acha a resposta e acha que a resposta é a verdade absoluta, você engessa e não compreende a dinâmica social. Sou acadêmico, historiador, mas, antes de tudo, sou um negro, militante, candomblecista, militante pela questão racial e direitos humanos. Não sou só um acadêmico. Porque, ao se observar a trajetória de todos nós [negros], todo mundo vem de família pobre, em que a mãe era empregada doméstica, ou o pai, operário. Raros são aqueles que tiveram famílias na classe média. Marechal do Exército João Baptista de Mattos, primeiro negro a ocupar esse posto nas Forças Armadas, era filho de mãe solteira. Se pegar a história dele e observar como se dá a sua ascensão, verá um filho de mãe solteira, extremamente discriminado. Os filhos viraram da classe média depois porque ele virou marechal, general, oficial do Exército, mas quase ninguém assim nasce na classe média. Uma pessoa comprometida e brilhante que nasceu na classe média é Heleno Teodoro. O pai já era uma pessoa importante do Partidão, inclusive, na administração, já era contador, formado em economia, e a mãe era professora tradutora, mas são raros [esses casos]. A maioria absoluta dos intelectuais negros hoje, apesar de não unanimidade, veio das esferas populares. Na minha família, somos a terceira geração, a partir de mim, de universitários. Tenho dois filhos que fazem mestrados, outros são formados. Meus dois netos mais velhos estão na universidade. Meu pai era um mecânico que tinha que se virar. Então, é preciso entender essas histórias. As novas gerações estão tendo possibilidades, e as pessoas não podem se deslumbrar com a academia, que tem uma diversidade muito grande. Saber levantar esse debate a partir dessa diversidade é o grande barato. É o que os negros hoje em dia têm feito na academia porque pode nascer uma academia mais voltada para  a compreensão brasileira. A academia que tem hoje [no Brasil] é europeia, digamos francesa, ou dos Estados Unidos. Quem é valorizado é quem tem algum doutorado ou mestrado fora. Os grandes debates acadêmicos vêm desses dois grandes centros e se conhece muito pouco da Ásia e da própria África. Há muita produção na África que dialoga muito mais com a nossa realidade social, com a nossa possibilidade, do que a dos europeus. Muitos europeus progressistas que achamos fora se inspiraram nos africanos. Há muita gente da África que foi até esses centros e os questionou. Muitos africanos questionaram, a partir do acesso que a colônia tinha como privilégio, como o próprio Amílcar Cabral e muitos outros nomes brilhantes. É isso que temos que fazer também aqui no Brasil, criar uma possibilidade de um pensamento intelectual acadêmico que reflita mais os de baixo no nosso país. Mesmo aqueles que falaram do povo brasileiro deixaram uma lacuna enorme para entender a questão racial até do ponto de vista acadêmico. Sérgio Buarque, assim como muitos outros, foi brilhante. A esquerda o tem como referência importante, mas há lacunas enormes a partir das nossas perspectivas. Não quer dizer que você vai desqualificar essa produção, pelo contrário, mas tem que fazer um diálogo crítico com ela e criar novas perguntas que levem a novas possibilidades.

Confira, a seguir, galeria:

Estatua de Zumbi dos Palmares | Foto: Shutterstock/Joa Souza
África educação | Foto: Shutterstock/Boxed Lunch Productions
Vacinação Quilombolas | Foto: Igor Santos/Secom
Zumbi dos Palmares portrait1 | Foto: Reprodução
Estatua em Recife Zumbi dos Palmares | Foto: Shutterstock/Bruno Martins Imagens
Parcela de negros entre os inscritos do Enem saltou de 51% para 60% entre 2010 e 2016
Vidas negras importam | Foto: Shutterstock/ByDroneVideos
Estatua de Zumbi dos Palmares
África educação
Vacinação Quilombolas
Zumbi dos Palmares portrait1
Estatua em Recife Zumbi dos Palmares
Pela igualdade racial
Os negros seguem presos na corrente do branco
Grito pela igualdade racial
Parcela de negros entre os inscritos do Enem saltou de 51% para 60% entre 2010 e 2016
Vidas negras importam
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Estatua de Zumbi dos Palmares
África educação
Vacinação Quilombolas
Zumbi dos Palmares portrait1
Estatua em Recife Zumbi dos Palmares
Pela igualdade racial
Os negros seguem presos na corrente do branco
Grito pela igualdade racial
Parcela de negros entre os inscritos do Enem saltou de 51% para 60% entre 2010 e 2016
Vidas negras importam
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PD: Como o senhor vê a possibilidade de se fazer uma grande mobilização para garantir a segurança alimentar da população negra e dos povos tradicionais como um todo?

Primeiro, ampliando o apoio à produção de alimentos necessários. Todo mundo acha que a África é fome para todo mundo. As pessoas conhecem as áreas de crise na África, onde o povo, de fato, às vezes, por questões climáticas ou de dificuldades de agricultura ou de conflitos, não tem o que comer, mas a África tem o que comer. Na Guiné-Bissau, há alimento e pesca. Em países que têm a pesca como ponto fundamental e onde não entrou a ideia do lucro em si, excessivo, a produção é mais coletiva, e é isso que tem que ser feito no Brasil, nas comunidades quilombolas. Como se constrói uma rede de produção nas áreas tradicionais que resulte em preços mais baratos nas favelas? A gente não tem uma rede de comunicação, porque o agronegócio e os grandes empresários dos mercados dominam essas áreas. Até nas dos quilombolas, eles financiam a produção, mas como se transforma a lógica de produção de alimento para alimentar quem está no campo, mas também quem está na cidade? São desafios, mas essas áreas podem produzir alimentos de qualidade. Na Nigéria, há produção de inhame, que é a base da comida nigeriana. Há grandes mercados populares de rua com comércio de inhame, pimenta, dendê, peixe, batata doce e laranja. Há comida farta. Todo mundo acha que não há na África, mas existe. Fome Zero não é só, na minha opinião, dar o cartão para o pessoal adquirir o alimento no mercado, mas criar um processo de produção e escoamento de alimentos para que cheguem a uma rede mais barata e a quem mais precisa. 

Sobre o entrevistado

Professor Babalawô Ivanir dos Santos é doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN); pesquisador do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER-UFRJ) e do Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais pós coloniais (LEHA-UFRJ); coordenador da Coordenadoria de Religiões Tradicionais Africanas, Afro-brasileira, Racismo e Intolerância Religiosa (ERARIR/LHER/UFRJ); conselheiro Estratégico do Centro de Articulações de População Marginalizada (CEAP); interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de novembro de 2022 (49ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.

Equipe de entrevista

Jane Monteiro Neves participou como entrevistadora da 48ª edição da revista Política Democrática online. É professora da Universidade do Estado do Pará (Uepa), especialista em processos educacionais (2012 a 2013 – IEP/Sírio Libanês). Foi diretora de extensão e coordenadora do curso de graduação em Enfermagem da UEPA. Também é diretora de Atenção Primária (Atenção à Saúde) da Secretaria de Estado de Saúde Pública do Estado do Pará e diretora executiva da Fundação Astrojildo Pereira.

Sionei Leão participou como entrevistador da 48ª edição da revista Política Democrática online. É jornalista, pesquisador e autor de Kamba’Race: afrodescendências no Exército Brasileiro, resultado de uma pesquisa de 20 anos.

Cleomar Almeida participou como entrevistador da 48ª edição da revista Política Democrática online. É jornalista e coordenador de Publicações da Fundação Astrojildo Pereira.

João Rodrigues participou como entrevistador da 48ª edição da revista Política Democrática online. É jornalista e coordenador de Audiovisual da Fundação Astrojildo Pereira.

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Arte: Washington Reis/FAP

Especialistas debatem o futuro das regras fiscais no país

Luciara Ferreira*, com edição da coordenadora das Mídias Sociais da FAP, Nívia Cerqueira

Mediado pelo diretor-geral da Fundação Astrojildo Pereira, Marco Aurélio Marrafon, o webinar: O futuro das regras fiscais no Brasil será transmitido nesta quarta-feira (30/11), a partir das 18h30, nas redes sociais e portal da entidade. O debate contará com a  participação dos economistas Benito Salomão, Fábio Terra, Manoel Pires e Leonardo Ribeiro.

"O evento vai abordar as regras fiscais, que estabelecem os limites até onde os políticos podem ir e a partir dos quais os custos macroeconômicos são relevantes", diz Benito.

De acordo com o economista, o assunto vem à tona com o governo eleito para escancarar a voracidade da elite política brasileira sobre o gasto público.

Confira webinar

https://youtu.be/AK-k0du10jA

Serviço

Webinário: O futuro das regras fiscais no Brasil

Realização: Fundação Astrojildo Pereira

Data: 30/11, às 18h30

Transmissão no YouTube e Facebook da FAP

*Integrante do programa de estágio da FAP sob supervisão.


Imagem: reprodução | Nas Entrelinhas

Nas entrelinhas: PEC mantém Bolsa Família fora do teto por quatro anos

Luiz Carlos Azedo | Nas Entrelinhas

Depois de muitas negociações, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decidiu mesmo propor que o Bolsa Família fique fora do teto de gastos por quatro anos. Ontem, o senador Marcelo Castro (MDB-PI) protocolou a PEC da Transição, que mantém o pagamento de R$ 600 do Auxílio Brasil, rebatizado como Bolsa Família, seu nome de origem.

Pela proposta, o valor referente ao programa fica fora do cálculo do teto de gastos entre 2023 e 2026. A proposta de emenda à Constituição retira do Orçamento da União até R$ 175 bilhões do programa de transferência de renda para não estourar o teto de gastos. Castro levou em conta o projeto inicial elaborado pela equipe de transição de Lula.

Segundo o ex-ministro Nelson Barbosa, um dos economistas de equipe de transição, a estratégia adotada foi definida pelos senadores e deputados petistas. “Vamos ver a evolução da PEC”, disse. O texto precisa ser aprovado a tempo de ser incluído no Orçamento da União de 2003. “É a estratégia que foi considerada mais viável do ponto de vista político”, explicou Barbosa.

A PEC da Transição precisa ser aprovada no Congresso até 10 de dezembro para que haja tempo hábil para os parlamentares analisarem o Orçamento de 2023, que precisa ser aprovado ainda este ano.

“O texto apresentado excepcionaliza do teto de gastos o valor necessário para dar continuidade ao pagamento dos R$ 600 do Bolsa Família, mais R$ 150 por criança de até seis anos de idade. E, ainda, recompõe o Orçamento de 2023, que está deficitário em diversas áreas imprescindíveis para o funcionamento do Brasil. Esperamos aprovar a PEC, nas duas Casas, o mais rápido possível”, avalia Castro.

Apesar do otimismo de Castro, aprovar a PEC com prazo de vigência de quatro anos é uma missão quase impossível. Foi apresentada com esse prazo para uma negociação que envolve também a manutenção do orçamento secreto, que o Centrão pretende incluir na Constituição, o que é um absurdo. Por dois motivos:
1) o orçamento secreto pulveriza recursos de investimento do Orçamento, que deveriam ser destinados a projetos prioritários, como os de infraestrutura, por exemplo, em vez de servir de instrumento para o clientelismo mais rastaquera; 2) a falta de transparência na distribuição dos recursos, sem que se saiba quem são seus verdadeiros autores, facilita a formação de caixa dois eleitoral e o abuso de poder econômico pelos detentores de mandato, desequilibrando a paridade de armas na disputa.

O problema é que são poucos os parlamentares, inclusive os de oposição, que não se beneficiaram das chamadas emendas do relator, eufemismo usado para mascarar o orçamento secreto. Embora o PT e o PSB devem anunciar, hoje, o apoio à reeleição do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), essa não seria uma moeda de troca para manter o Bolsa Família fora do teto por quatro anos. O Centrão e seus aliados preferem barganhar cargos e verbas todo ano para manter o programa criado por Lula fora do teto. Um bom acordo seria aprová-lo por dois anos, mas a moeda de troca é a manutenção do orçamento secreto.

Ministério
O que não falta são especulações sobre os nomes dos futuros ministros de Lula. Se o time já está escalado, o que não parece ser o caso ainda, somente o presidente eleito sabe qual será a composição. Dois problemas estão na ordem do dia e pressionam para que ele anuncie logo os ministros. Primeiro, a situação da economia e a ambiguidade da equipe econômica.

O mercado quer que Lula indique logo o futuro ministro da Fazenda por uma questão de previsibilidade em relação à política econômica. Um nome sinalizaria o rumo do próximo governo, o que é fundamental para os investidores apostarem seus recursos no Brasil.

Essa é a cobrança. A dificuldade de Lula é ter alguém de sua absoluta confiança política na pasta, o que faz a banca de apostas tender para o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad. Será ele?

Outra área estratégia que não pode esperar muito é a Defesa. Diante de uma evidente conspiração golpista, que faz ruidosa agitação à porta dos quartéis, Lula precisa escolher o novo ministro da pasta. Sua intenção é ter um civil no cargo, que seja capaz de manter um bom relacionamento com os comandantes militares.

Não é uma operação simples, porque os militares não querem perder as posições no ministério — são milhares em cargos comissionados na Esplanada. A escolha do nome é estratégica. A tendência de Lula é pôr no cargo alguém que tenha bom trânsito com os generais e seja de sua absoluta confiança. Fala-se, por exemplo, em Aloízio Mercadante. É filho de general, mas isso não significa amplo trânsito nas Forças Armadas.

São decisões urgentes, que estão na esfera da cota pessoal de Lula. Mais complexa é a montagem da equipe ministerial em forma de governo de ampla coalizão, ou seja, com uma maioria no Congresso. A forma como será feita a composição é ainda uma incógnita, porque existe uma equipe de transição que funciona como um embrião do futuro governo, com muitas disputas por espaços, e uma tendência dos partidos a querer o controle das pastas com “porteira fechada” — como se diz no jargão do Congresso.

Os partidos de esquerda não têm muita dificuldade para compartilhar os ministérios, mas o mesmo não acontece com grandes legendas de centro, como o MDB, o PSD e PSDB.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-pec-mantem-bolsa-familia-fora-do-teto-por-quatro-anos/

Foto: reprodução | Revista Piauí

CIDADE SÃ, MENTE SÃ?

Carlos Leite, Hermano Tavares e Paulo Saldiva

As cidades surgiram da necessidade de sobrevivência da espécie humana. Em regiões onde o modo de vida de nossos antepassados caçadores/coletores não era possível, tornou-se imperioso obter alimentos por meio de técnicas agropecuárias. O aumento da produção de nutrientes permitiu o crescimento e a fixação da população humana em cidades. 

A convivência próxima de um número maior de pessoas – ou seja, a vida coletiva – permitiu gradativamente todos os tipos de trocas e o desenvolvimento de tudo o que conhecemos: instituições, democracia, artes, ciência, ensino, inovação etc. As cidades talvez sejam a maior invenção humana – e vieram para ficar. Em 1800, menos de 10% da população do planeta morava nelas; já no início deste século um pouco mais da metade (55%) as habitam. Somos agora um planeta urbano. No Brasil, mais de 85% da população vive nas cidades.

Porém, junto com as aglomerações vieram o saneamento precário e a proliferação de patógenos que trouxeram consigo o adoecimento. Talvez seja válido dizer que Logos e Páthos caminham de braços dados pelas ruas das cidades mundo afora. 

Ao longo da história, as cidades superaram crises monumentais, como pestes, guerras e mudanças climáticas. No entanto, a urbanização acelerada das últimas décadas acarretou novos desafios. Nas metrópoles do chamado Sul Global – onde ocorreu uma “explosão de urbanização” em pouco tempo, ao contrário dos países do Norte, onde as cidades levaram séculos a evoluir gradativamente – a distribuição desigual das infraestruturas urbanas, dos equipamentos e serviços públicos, das áreas verdes e de lazer, o excesso de trânsito, poluição e ilhas de calor, a falta de moradia digna para milhões de pessoas e, em especial, a existência de favelas com condições precárias de vida, áreas propensas a inundações e deslizamentos, representam evidentes ameaças à saúde humana. 

Nesse contexto, a cidade é o resultado de uma complexa interação entre governança, ambientes urbanos físicos, sociais e econômicos, tendo como protagonista a biologia dos seus habitantes. De fato, segmentos populacionais menos privilegiados, que ocupam, em sua maioria, as periferias urbanas combinam um ambiente mais hostil (moradia precária, mau saneamento, maior exposição à poluição do ar e risco de doenças infecciosas) com mais comorbidades, deficiência nutricional, menor acesso à informação, à educação e, sem dúvida, à saúde em si – não apenas física como também mental.Trata-se de demanda social urgente, pois estima-se que cerca de 17 milhões de pessoas, 8% da população brasileira, residam em favelas, e o déficit habitacional no país seja de aproximadamente 5,8 milhões de moradias (o equivalente a 18,5 milhões de pessoas, segundo dados da Fundação João Pinheiro.

No Brasil, as doenças mentais são o terceiro maior conjunto de morbidades a pesar na sociedade, atrás apenas das doenças cardiovasculares e oncológicas, e o primeiro a subtrair tempo de vida produtiva entre os indivíduos situados na faixa dos 5 aos 15 anos de idade. Um estudo epidemiológico conduzido na região metropolitana de São Paulo mostra que aproximadamente 40% da população urbana preencheu critérios para ao menos um diagnóstico psiquiátrico ao longo da vida, 30% para um transtorno mental nos últimos 12 meses, e 10% necessitavam de atenção psiquiátrica imediata. As condições mais comumente encontradas foram transtornos ansiosos (20%), depressão e outros transtornos do humor (11%), transtorno do controle do impulso e abuso de substâncias como álcool, tabaco e drogas (4% cada). Exposição ao ambiente urbano e privação social foram associados como fatores de risco para todas as condições mentais, particularmente para os transtornos do impulso, manifestação psiquiátrica na infância e adolescência e para os transtornos associados ao abuso de substâncias. Entre os mais afetados, sobressaíram as mulheres e homens migrantes que viviam nas regiões metropolitanas mais pobres e vulneráveis, conforme pesquisa sobre transtornos mentais nas megacidades.

A pandemia de Covid, com a disrupção das rotinas de trabalho e de relacionamentos e o confinamento prolongado que trouxe visibilidade à questão da saúde mental, apenas agravou uma condição que já se encontrava em curso, antes do seu advento. Dentre os diversos problemas que as comunidades que vivem nas favelas enfrentam, há a descontinuidade de ações e serviços de atenção psicossocial. Sabe-se também que as relações entre classes sociais e gêneros têm associação com a saúde mental, demonstradas pelas arbitrariedade e obediência de um grupo por outro. 

Nas favelas, outra questão que se impõe é a da violência urbana. Um estudo epidemiológico sobre o tema mostrou elevada exposição da população a eventos traumáticos (86%), dos quais 11% apresentariam risco para desenvolvimento de um transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), sendo que as mulheres teriam um risco três vezes maior do que homens nesse aspecto. Chama atenção no estudo, o fato que 35% dos casos identificados de TEPT foram desencadeados pela perda inesperada de um ente querido e 40% devido à violência interpessoal.

Um outro estudo de natureza qualitativa soma a esse panorama, já desolador, o elemento da coerção social. Em muitas dessas comunidades, o poder do arbítrio e o uso da violência como instrumento de controle social, funções atribuídas ao Estado, são complementados – quando não completamente substituídos – pelas sociedades dedicadas ao tráfico de drogas e o crime organizado. Tais sociedades, normalmente designadas como “o tráfico”, podem ser acionadas para resolver até mesmo pendências entre vizinhos ou providenciar repressão à violência doméstica. Essa atuação, entretanto, vem a um alto custo, através da lei do silêncio imposta pelos traficantes e dos embates com as forças policiais que colhem recorrentemente toda a comunidade em um literal fogo cruzado. Cria-se uma dinâmica perversa, na qual todos os membros do território sofrem os efeitos da violência, mas são impedidos de compartilhá-los com profissionais de saúde e outras pessoas genuinamente interessadas em ajudar porque não pertencem à comunidade. Em uma complementaridade pungente ao relato mais técnico do levantamento epidemiológico, o estudo qualitativo dá voz ao sofrimento principalmente de mães, esposas e cuidadoras em geral que se sentem impotentes diante da perda de um ente querido.

Contudo, o ambiente urbano desafia a saúde mental para além dos seus aspectos sociais, envolvendo questões físicas e materiais como a poluição ambiental e sonora; o espraiamento das cidades e a necessidade de longos períodos de deslocamento de casa para o trabalho e vice-versa; e, ainda, a progressiva substituição da paisagem natural pela chamada “selva de concreto”. No caso dos longos deslocamentos diários casa-trabalho-casa, eles podem ser agravados quando, por força da baixa remuneração, a população mais vulnerável tem que assumir dois ou mais empregos para garantir uma renda condizente. Isso se traduzirá em mais horas de afastamento do domicílio, da família e dos filhos, com maior sofrimento para mulheres e crianças. Os pequenos, necessitados de uma presença parental mais efetiva, crescerão no ambiente adverso, com pouca supervisão, disso resultando, entre outros problemas, um reduzido aproveitamento escolar, evasão e baixa qualificação – perpetuando assim tal ciclo negativo. A evolução dos transtornos mentais reforça a percepção da relevância do amparo à infância como o meio mais efetivo de prevenção desses males. Metade desses transtornos identificados em adultos tiveram seu início antes dos 15 anos de idade – e a maioria começa antes dos 20 anos. Não por acaso, os principais fatores de risco para os transtornos ansiosos, depressão e queixa somáticas associadas são um conjunto de variáveis que basicamente expressam vulnerabilidade social e baixo status socioeconômico.

O esforço, porém, para o resgate da sanidade mental no contexto urbano transcende os limites da saúde e da epidemiologia. Ele reclama um envolvimento interdisciplinar que envolva campanhas de sensibilização para o tema, redução do estigma associado à saúde mental, treinamento para reconhecimento e encaminhamento precoce ao tratamento, políticas sociais de amparo aos vulneráveis, reconfiguração dos espaços urbanos para viabilização de um transporte público efetivo e redução do deslocamento. É verdade que a colheita dos benefícios coletivos dessas iniciativas exige tempo, porém menos do que se imagina – cerca de quinze anos. Não fosse por outro motivo, a certeza de que as futuras gerações sofreriam menos já seria mais do que suficiente para a implementação de políticas capazes de transformar o cenário atual dessa questão de saúde pública. O diálogo entre planejamento das cidades e os setores da saúde é, portanto, uma necessidade incontornável. 

Nesse sentido, os programas do urbanismo social podem ser instrumento poderoso. Isso porque se trata de uma metodologia de atuação nos territórios de maior vulnerabilidade social que orienta transformações físicas e sociais integradas, constituídas com base na participação comunitária organizada e na governança compartilhada. Consagrado em Medellín, Colômbia, desde 2003, e referenciado no Programa Favela-Bairro, realizado, de forma pioneira, no Rio de Janeiro na década de 1990, o urbanismo social é um modelo que pode e deve ganhar maior robustez nas cidades. Ou seja, urge otimizar as valiosas metodologias do urbanismo social para além de seus focos essenciais – urbanização do território, promoção de infraestruturas urbanas, habitação social, equipamentos e serviços públicos, mobilidade etc. Os Planos Integrados de Ação Local, instrumento essencial do urbanismo social, devem se ampliar para outras dimensões, a fim de que, integradas, tornem a vida urbana mais saudável nas periferias de nossas cidades. Sabe-se que não são apenas as intervenções físicas que transformam o território, mas o tecido social de confiança, com articulação comunitária construída na vida coletiva e no exercício cidadão. Não à toa, o sucesso de Medellín em grande parte se deve à promoção, desde o início do processo, dos espaços públicos e dos grandes equipamentos públicos onde a vida comunitária é valorizada. O resgate da vida coletiva nos espaços públicos lúdicos e interativos para as crianças e seus cuidadores no programa Mais Vida Nos Morros de Recife é outro exemplo referencial, já com resultados monitorados e avaliados em programa público de – infelizmente – rara continuidade já por três gestões municipais. 

A mente saudável demanda a vida social e a interação coletiva nos espaços públicos das cidades, formais e informais. As cidades nasceram assim; a ágora grega era seu exemplo pioneiro.

Melhorar as condições de vida dos habitantes das favelas de modo integral, considerando sempre os aspectos sociais coletivos que impõem diversos tipos de sofrimentos mentais individuais, e ampliar o direito à cidade é também promover o direito à saúde mental. Assim, reciclando a célebre citação do poeta italiano Juvenal, que no século I já pedia uma mente sã em um corpo são, cabe-nos trabalhar para promover um ambiente são de modo que mentes-corpos periféricos tenham mais condições de saúde.

Carlos Leite: Urbanista, PhD, Coordenador do Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e professor na FAU-Mackenzie

Hermano Tavares: Médico psiquiatra, é professor na Faculdade de Medicina da USP

Paulo Saldiva: Médico patologista, é coordenador do Núcleo de Saúde Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e professor na Faculdade de Medicina da USP

Artigo publicado originalmente na Revista Piauí


Documento traz 16 propostas a serem adotadas no próximo período, como o fomento à agroecologia - Articulação Nacional de Agroecologia

Reforma agrária, agroecologia e desmatamento zero: MST lança carta ao povo brasileiro

Brasil de Fato*

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) publicou uma carta aos brasileiros, nesta terça-feira (29), na qual defende propostas relacionadas à reforma agrária e ao desmatamento zero que serão levadas para o governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"Contribuiremos de todas as formas possíveis para que elas sejam aplicadas", afirma o MST na carta.

Entre as propostas, estão o fortalecimento da agricultura familiar e a distribuição de terras, principalmente aquelas que estão situadas próximas às cidades.

"Não precisamos derrubar mais nenhuma árvore. Precisamos, sim, é de um Plano Nacional de Reflorestamento urgente, plantando milhões de arvores, em todo país, em todos os biomas, no campo e na cidades", diz um trecho da carta.

O movimento também defende a implementação de políticas públicas que visem a soberania alimentar, a partir da produção de alimentos saudáveis em todo o país. Por isso, também propõe o estímulo à agroecologia com ferramentas modernas, "sem agredir a natureza, gerando mais empregos e melhorando a produtividade física das lavouras".

Leia a carta na íntegra:

"Carta do MST ao povo brasileiro 

O Brasil vive a pior crise de sua história, que se manifesta na economia, na sociedade, no aumento da desigualdade social, nos crimes ambientais, na fome, no desespero e falta de perspectiva que atinge mais de 70 milhões de trabalhadores. Tudo isso se aprofundou nos últimos seis anos, após o golpe contra o Governo Dilma e os quatro anos de um governo neoliberal com praticas fascistas e autoritárias.

A vitória política de Lula nas últimas eleições revelou a vontade da maioria dos brasileiros de mudarmos os rumos, retomarmos os caminhos democráticos, para resolver os problemas urgentes da população brasileira. Essa vitória foi fruto de uma ampla aliança social de todas as forças progressistas e, certamente, marcará também um governo de Frente Ampla, com os mais diversos setores representados.

O Governo Lula terá o desafio fundamental de enfrentar em caráter emergente as necessidades fundamentais do povo, como o combate à fome, ao desemprego, e investimentos pesados em educação e saúde. E no médio prazo debater com toda sociedade um novo projeto de país, fundado na reindustrialização e na agricultura produtora de alimentos saudáveis, única forma de retomarmos o crescimento econômico com justiça social.

Na agricultura, se enfrentam há décadas três modelos de organização da produção. O latifúndio predador, que enriquece com a especulação imobiliária e da apropriação das riquezas naturais; O agronegócio, que produz apenas commodities agrícolas para exportação, concentrados em apenas cinco produtos (soja, milho, cana, algodão e pecuária bovina). Os fazendeiros enriquecem, mas não pagam impostos à sociedade graças às isenções das exportações e agridem a natureza com o desmatamento, o uso de agrotóxicos e o monocultivo. E o terceiro modelo é da agricultura familiar, que usando mão-de-obra familiar protege a natureza e se dedica a produzir alimentos para suas famílias e para o mercado interno.

Nossa Constituição Federal exige que a Terra cumpra sua função social, produzindo racionalmente, respeitando a legislação trabalhista e o meio ambiente. Assim como nossa Constituição, defendemos sempre que o latifúndio é antissocial e deve ser banido e o agronegócio precisa assumir sua responsabilidade socioambiental, adequar-se as necessidades da sociedade, pagar impostos, parar de usar agrotóxicos e dar condições de dignidade os seus trabalhadores.

Defendemos a agricultura familiar e dentro dela a distribuição de terras dos latifúndios, sobretudo nas proximidades das cidades, para que se multipliquem as famílias camponesas produtoras de alimentos.

Defendemos o desmatamento zero. Não precisamos derrubar mais nenhuma arvore. Precisamos, sim, é de um Plano Nacional de Reflorestamento urgente, plantando milhões de árvores, em todo país, em todos os biomas, no campo e na cidades. Condição necessária para combater as mudanças climáticas que afligem a população em todo território e a todo planeta.

Defendemos que o novo governo deve implementar urgentemente diversas medidas de políticas públicas – como os Programas de Aquisição de Alimentos e de Alimentação Escolar - buscando a soberania alimentar e para que se amplie imediatamente a produção de alimentos saudáveis em todo pais. E que se usem os mecanismos de aumento de renda, via Bolsa Família, e aumento do salário mínimo e do emprego para que o povo tenha condições de se alimentar dignamente.

Defendemos o estímulo da agroecologia como um modelo tecnológico que busca produzir alimentos saudáveis, sem agredir a natureza, gerando mais empregos e melhorando a produtividade física das lavouras. Garantindo assim saúde para nosso povo.

Defendemos um programa urgente de implementação de máquinas agrícolas para agricultura familiar, para que possamos aumentar a produtividade do trabalho, diminuindo o sacrifício humano.

Defendemos a implantação de um amplo programa de agroindústrias cooperativadas em todos os municípios, para beneficiar alimentos e gerar emprego e renda para mulheres e jovens no campo. Devemos combater todas as forças de exploração no campo, como o trabalho escravo, e as péssimas condições dos assalariados sem direitos trabalhistas. Devemos combater o garimpo e ação perversa das mineradoras que depredam nosso meio ambiente e riqueza natural apenas em função do lucro privado. Os bens da natureza devem estar subordinados às necessidades de todo povo.

Defendemos um amplo programa de educação e cultura no meio rural que dê oportunidade a todas as pessoas, em especial aos jovens, que erradique o analfabetismo, ofertando todas as formas de escolarização no interior do país, que preserve e fomente as manifestações e expressões culturais do povo.

Combateremos e denunciaremos todas as formas de violência, discriminação, racismo, misoginia, LGBTfobias e intolerância religiosa que foram alimentados pelo bolsonarismo fascista.

Levaremos essas propostas e ideias para o próximo governo Lula e contribuiremos de todas as formas possíveis para que elas sejam aplicadas.

Nossa missão maior, é seguir organizando o povo, para que lute por seus direitos, consagrados na Constituinte de 1988, pois sabemos que sem mobilização popular não haverá nenhuma mudança verdadeira no país.

Esses são nossos compromissos, que queríamos reafirmá-los para toda sociedade brasileira, em tempos de crise e de mudanças necessárias."

*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato


Eduardo Bolsonaro ganha apelido de desafetos após curtir jogo no Catar

Terra*

A ida do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) ao Catar para curtir a vitória da Seleção Brasileira contra a Suíça na última segunda-feira, 28, rendeu muitas críticas de opositores e desafetos e até um apelido.

Após aparecer em fotos ao lado da esposa, Heloisa Bolsonaro, no Estádio 974, o filho do presidente Jair Bolsonaro (PL) foi chamado de “radical de ar-condicionado”, segundo informações da coluna de Bela Megale, do jornal O Globo.

Eduardo Bolsonaro e esposa curtem jogo do Brasil no Catar
Eduardo Bolsonaro e esposa curtem jogo do Brasil no CatarFoto: Reprodução

O batismo foi feito por moderados do partido de Eduardo - e também do presidente Jair Bolsonaro - o PL, que consideram um tiro no pé a viagem do parlamentar ao País da Copa em meio à turbulência política envolvendo o pai, que contesta o resultado de parte das urnas utilizadas no pleito.

Nas redes sociais, Eduardo também foi alvo de críticas de outros parlamentares, como Kim Kataguiri (União-SP) e o deputado federal eleito Guilherme Boulos (PSOL-SP).

https://twitter.com/KimKataguiri/status/1597299233559699456?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1597299233559699456%7Ctwgr%5Eaccafee040fa2501c3cddddb1aa97f879fcaae16%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.terra.com.br%2Fnoticias%2Fbrasil%2Fpolitica%2Feduardo-bolsonaro-ganha-apelido-de-desafetos-apos-curtir-jogo-no-catar76a400e28882c08b8159f19dd05057d7g7583yfy.html
https://twitter.com/GuilhermeBoulos/status/1597295648990457859?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1597295648990457859%7Ctwgr%5Eaccafee040fa2501c3cddddb1aa97f879fcaae16%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.terra.com.br%2Fnoticias%2Fbrasil%2Fpolitica%2Feduardo-bolsonaro-ganha-apelido-de-desafetos-apos-curtir-jogo-no-catar76a400e28882c08b8159f19dd05057d7g7583yfy.html

Além do delicado momento político no Brasil, o deputado ainda viajou para outro país com a intenção de assistir a um jogo de futebol em um dia que tinha compromissos na Câmara. O Terra consultou a agenda do parlamentar e encontrou dois compromissos de Eduardo no Brasil na mesma data em que foi para o Catar.

*Texto publicado originalmente no site Terra


Governo 'raspou' orçamento de universidades federais enquanto país via jogo do Brasil, diz Andifes

G1

A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) afirmou, na noite desta segunda-feira (28), que o Ministério da Educação (MEC) bloqueou R$ 244 milhões do orçamento das universidades federais "enquanto o país inteiro assistia ao jogo da Seleção Brasileira".

g1 entrou em contato com a pasta, mas não recebeu resposta até a última atualização desta reportagem.

Esse montante seria usado para o pagamento de despesas como contas de luz e de água, bolsas de estudo e pagamento de empregados terceirizados.

"Com surpresa e consternação, e praticamente no apagar das luzes do exercício orçamentário de 2022, as universidades federais brasileiras foram, mais uma vez, vitimadas com uma retirada de seus recursos", diz o texto da Andifes.

A União Nacional dos Estudantes (UNE), a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) e o presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) divulgaram em suas redes sociais a imagem de um comunicado sobre a aprovação do bloqueio das verbas pela Junta de Execução Orçamentária (JEO).

O texto, enviado pelo Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), do Tesouro Nacional, cita unidades vinculadas ao MEC, mas não aponta valores do contingenciamento.

Outubro: bloqueio retirado após pressão

Em outubro, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) denunciou um bloqueio de R$ 328 milhões nas verbas já previstas para o ano e alertou que o funcionamento das universidades seria inviabilizado se o contingenciamento fosse mantido.

Após pressão dos reitores, o MEC anunciou a suspensão desse bloqueio.

Nota da Andifes

Abaixo, veja a íntegra da nota da Andifes:

"Com surpresa e consternação, e praticamente no apagar das luzes do exercício orçamentário de 2022, as Universidades Federais brasileiras foram, mais uma vez, vitimadas com uma retirada de seus recursos, na tarde dessa segunda-feira (28). Enquanto o país inteiro assistia ao jogo da seleção brasileira, o orçamento para as nossas mais diversas despesas (luz, pagamentos de empregados terceirizados, contratos e serviços, bolsas, entre outros) era raspado das contas das universidades federais, com todos os compromissos em pleno andamento.

Após o bloqueio orçamentário de R$ 438 milhões ocorrido na metade do ano, essa nova retirada de recursos, estimada em R$ 244 milhões, praticamente inviabiliza as finanças de todas as instituições. Isso tudo se torna ainda mais grave em vista do fato de que um Decreto do próprio governo federal (Dec. 10.961, de 11/02/2022, art. 14) prevê que o último dia para empenhar as despesas seja 9 de dezembro. O governo parece “puxar o tapete” das suas próprias unidades com essa retirada de recursos, ofendendo suas próprias normas e inviabilizando planejamentos de despesas em andamento, seja com os integrantes de sua comunidade interna, seus terceirizados, fornecedores ou contratantes.

Como é de conhecimento público, em vista dos sucessivos cortes ocorridos nos últimos tempos, todo o sistema de universidades federais já vinha passando por imensas dificuldades para honrar os compromissos com as suas despesas mais básicas. Esperamos que essa inusitada medida de retirada de recursos, neste momento do ano, seja o mais brevemente revista, sob pena de se instalar o caos nas contas das universidades. É um enorme prejuízo à nação que as Universidades, Institutos Federais e a Educação, essenciais para o futuro do nosso país, mais uma vez, sejam tratados como a última prioridade.

A Andifes continuará sua incansável luta pela recomposição do orçamento das Universidades Federais, articulando com todos os atores necessários, Congresso Nacional, governo, sociedade civil e com a equipe de transição do governo eleito para a construção de orçamento e políticas necessárias para a manutenção e o justo financiamento do ensino superior público."

Matéria publicada originalmente no portal G1


Foto reprodução: DW Brasil | picture-alliance/dpa/ Fredick Von Erishen

Após desmonte sob Bolsonaro, setor cultural espera retomada

Soraia Vilela | DW Brasl

Nos quatro anos de governo Jair Bolsonaro, o setor cultural enfrentou cortes e reduções em uma dimensão até então desconhecida. Os membros do Grupo Técnico (GT) da Cultura, que integra a equipe de transição do futuro governo Luiz Inácio Lula da Silva, encontram-se reunidos em Brasília, a fim de deliberar sobre medidas de reestruturação e sobre a revogação de decretos que dificultaram ou inviabilizaram as atividades culturais no país.

Entre as primeiras medidas asseguradas como prioridade por membros do GT está a recriação do Ministério da Cultura (MinC) – extinto via medida provisória editada em 1° de janeiro de 2019, o primeiro dia do governo Bolsonaro, e rebaixado a uma Secretaria Especial vinculada primeiro ao Ministério da Cidadania e depois ao do Turismo.

No entanto, é consenso entre profissionais do setor que recriar o MinC apenas não basta: é necessário readequar seu orçamento, suspender mudanças feitas na aplicação de determinadas leis e reconstruir a estrutura de fomento que foi desmantelada nos últimos quatro anos.

Além disso, é preciso recuperar cargos que foram transferidos da Cultura para as pastas da Cidadania e do Turismo, por exemplo. "Estamos falando de uma estrutura institucional drasticamente reduzida e precarizada nas suas condições mais básicas de trabalho", afirma a deputada federal Áurea Carolina (Psol-MG), uma das coordenadoras do GT da Cultura.

"Cenário de terra arrasada"

"A situação é de calamidade, não só por causa da extinção do MinC, mas também pela depauperação do conjunto das instituições: a Cinemateca pegou fogo, a Fundação Casa de Rui Barbosa perdeu grande parte dos seus pesquisadores, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) teve suas atribuições subvertidas, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) não tem condições de cuidar das próprias instituições ligadas ao governo federal nem de produzir uma política articulada", aponta Márcio Tavares, Secretário Nacional de Cultura do Partido dos Trabalhadores (PT) e também coordenador do GT.

Áurea Carolina, que foi vice-presidente da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados entre 2019 e 2021, salienta que será preciso restabelecer "uma estrutura robusta de políticas culturais que havia sido construída anteriormente a duras penas, durante anos".

Segundo ela, as informações analisadas pelo GT no momento deixam claro "como o desmonte está diretamente relacionado ao sequestro total da máquina pública", com "episódios de autoritarismo, censura e dirigismo nos editais públicos". Para a deputada, "é um cenário de terra arrasada".

Revisão após esvaziamento da Lei Rouanet

Uma das certezas de alteração das políticas culturais a partir de 2023, de acordo com Tavares, é a revogação imediata do decreto do governo federal que esvaziou a Lei Rouanet. "É preciso instituir um novo decreto que faça com que o mecanismo funcione com transparência e diligência", assegura.

Essa revisão dos mecanismos de fomento via Lei Rouanet é também um dos pontos defendidos pela "Carta do Rio Grande do Sul", documento divulgado ao fim do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, que reuniu em meados de novembro delegações das cinco regiões do país. 

"Houve uma política deliberada de desmonte da cultura brasileira. Identificamos, nos últimos quatro anos, um compromisso de bases ideológicas autoritárias e persecutórias associadas à Lei Rouanet", diz Beatriz Araújo, titular da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul que coordenou o Fórum.

"Houve cooptação política de raiz conservadora e descaso oficial com o patrimônio brasileiro, os museus, as bibliotecas, as fundações e as manifestações artísticas. Vivenciamos o cancelamento do pluralismo das nossas expressões identitárias e ações deploráveis contra povos originários, comunidades quilombolas, expressões religiosas de matriz africana e a cultura negra em geral", completa a secretária.

Fundamental para os signatários da Carta, segundo Araújo, é também a aplicação imediata das Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2. "Essas leis são estruturantes para a cultura brasileira, seu impacto positivo é imenso. Com elas, serão mais de R$ 18 bilhões aplicados sistematicamente, ao longo de cinco anos, para 5.570 municípios do país. E, nesse conjunto, as leis propõem que o poder público preveja ações afirmativas para os grupos mais vulneráveis."

Descentralização da política cultural

Garantir uma política cultural descentralizada, que inclua a diversidade e dê atenção a manifestações fora dos grandes centros, é outra preocupação dos profissionais do setor.

Para isso, "é fundamental um levantamento minucioso para identificar as ilegalidades, localizar os recursos, saber o que será necessário para desobstruir os processos", defende Araújo.

A gestora cultural Dane de Jade, coordenadora do Escritório Regional Cariri, vinculado à Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, concorda ser essencial que o próximo governo retome políticas descentralizadas. "No momento, temos uma lista enorme de urgências diante do que herdamos do governo Bolsonaro", diz.

São demandas que, uma vez resolvidas, trarão benefícios imediatos, dada "a interseção do setor com diferentes esferas econômicas – do turismo à arquitetura, da economia criativa à gestão de eventos". "Um setor que gera empregos diretos e indiretos e estabelece um diálogo com todos os pilares da vida em sociedade: educação, espaço urbano, política, arte", analisa a gestora.

O exemplo do audiovisual

A retomada de políticas de descentralização é também uma reivindicação dos profissionais ligados ao audiovisual no país. Durante o atual governo, a Secretaria do Audiovisual (SAV) foi descaracterizada de suas funções, aponta Cíntia Domit Bittar, sócia da Novelo Filmes, sediada em Florianópolis, e diretora da Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API).

"Reestruturar a SAV e fomentar sua capacidade de formação técnica especializada é sem dúvidas uma das ações que esperamos. É importante prever formações de profissionais, levando em consideração diagnósticos das áreas de maior necessidade. E é necessário não só formar, como também proporcionar oportunidades de qualificação de agentes já atuantes no mercado", diz Bittar. 

Durante os últimos quatro anos, o cinema brasileiro sofreu uma paralisação inédita nas estruturas de fomento. O governo Bolsonaro, segundo Bittar, "será lembrado na história como aquele que fez realmente tudo o que podia para destruir o audiovisual brasileiro independente".

Etapas do desmonte

Além do "apagão de dados e pesquisas sobre o desenvolvimento do setor" nos últimos quatro anos, Bittar cita "a indicação de nomes notoriamente incapazes de gerir pastas importantes da cultura", bem como o desmonte da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e a paralisação de programas importantes da Agência Nacional do Cinema (Ancine).

Retomar as atividades do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), mantendo a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), é considerado essencial para o financiamento do audiovisual. As arrecadações via Condecine fluem para o FSA, operado pela Ancine, e, portanto, abdicar desses recursos coloca em risco toda a atividade cinematográfica no país.

"Já tratamos da volta da Condecine, porque esse será um instrumento fundamental nos próximos anos", garante Tavares.

Entre outras demandas do setor, estão ainda, de acordo com Bittar, a nomeação de pessoas que compreendam e trabalhem a favor do audiovisual independente, políticas voltadas para a diversidade e pluralidade, investimentos para aumentar o número de salas de exibição, criação de salas independentes e a manutenção da "cota de tela" (mecanismo que obriga as salas brasileiras a exibir filmes nacionais por um número mínimo de dias por semana).

Políticas culturais como políticas de Estado

A chave para prevenir tais cenários de destruição no futuro está, portanto, "na transformação de políticas culturais em políticas de Estado", acredita Tavares.

Uma das medidas preventivas nesse sentido é, segundo Áurea Carolina, o Marco Regulatório do Fomento, sugerido em projeto de lei que visa reduzir as desigualdades de acesso aos mecanismos de fomento das políticas culturais. "Isso é importante justamente para que a cultura não fique à mercê de possíveis gestões autoritárias no futuro", defende a deputada.

Além disso, sugere Bittar, "também se faz necessária uma campanha informativa e pedagógica, para que o povo brasileiro compreenda a importância das  políticas culturais, de forma que esses temas sejam defendidos por toda a sociedade com propriedade e com a garra de quem sabe o impacto do setor na economia, na geração de emprego e renda, no turismo, na memória, na identidade, enfim, em nossa soberania nacional".

Matéria publicada originalmente no DW Brasil


Jantar com supremacista branco aumenta fritura de Trump no Partido Republicano

Thiago Amâncio*, Folha de S. Paulo

Alvo de fritura por setores do Partido Republicano após um resultado abaixo do esperado nas midterms e uma série de investigações que ganham corpo contra ele, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump deu um jeito de subir ele mesmo a temperatura do óleo.

O político recebeu em seu resort de Mar-a-Lago, na Flórida, Nick Fuentes, notório supremacista branco, em um jantar que contou com a presença do rapper Kanye West, ou Ye, como ele se apresenta hoje.

O supremacista branco Nick Fuentes, conhecido por opiniões racistas e antissemitas
O supremacista branco Nick Fuentes, conhecido por opiniões racistas e antissemitas - William Edwards - 9.mai.17/AFP

O encontro se deu dias depois de Trump se apresentar como pré-candidato à Presidência em 2024 e ver crescerem as cobranças pelo desempenho ruim do partido nas eleições de meio de mandato —ele bancou candidatos inexperientes e extremistas, que afastaram eleitores moderados dos republicanos.

Nesse contexto, receber um racista declarado e um rapper envolto em controvérsias de mesmo quilate na semana do Dia de Ação de Graças, um dos feriados mais importantes do país, só aumentou a pressão.

Fuentes, 24, é considerado supremacista branco pelo próprio Departamento de Justiça dos EUA. Ele foi expulso de redes sociais como YouTube e hoje usa seu podcast para propagar abertamente um discurso antissemita e racista —ele nega o Holocausto, por exemplo.

Ele participou da marcha racista "Una a direita", na Virgínia, em 2017, que reuniu supremacistas e neonazistas e terminou com três mortos. Depois que Trump perdeu a eleição para Joe Biden, em 2020, instou apoiadores do republicano a "invadir o Legislativo de todos os estados até 20 de janeiro", data em que o democrata tomou posse, e liderou manifestantes nas imediações do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, em Washington, quando o prédio foi invadido.

Críticos do ex-presidente foram rápidos em subir o tom. "Andar por aí com um supremacista branco antissemita e pró-Putin não é complicado; é indefensável", disse a deputada Liz Cheney, da ala mais anti-Trump do Partido Republicano e que integra o comitê da Câmara que investiga o ataque ao Congresso.

Senadores também se manifestaram, e até um governador, Asa Hutchinson, do Arkansas, criticou o jantar. "Não acho boa ideia um líder que é visto como exemplo pelo país e pelo partido se encontrar com um racista e antissemita declarado", disse ele à rede CNN. "Fique longe disso." Hutchinson, republicano, prepara-se para dar lugar a Sarah Huckabee Sanders, do mesmo partido.

Mesmo aliados próximos fizeram questionamentos, caso de David M. Friedman, advogado do político e ex-embaixador em Israel. "Ao meu amigo Donald Trump: você é melhor do que isso", escreveu ele no Twitter, chamando Fuentes de escória humana, e o encontro, de inaceitável. "Conclamo que você [Trump] rejeite esses vagabundos e relegue-os para a lata de lixo da história, onde pertencem."

Cresce dentro do partido a dúvida quanto à capacidade do ex-presidente de ganhar uma nova eleição, enquanto nomes como o de Ron DeSantis ganham cada vez mais força. O governador reeleito da Flórida, visto como uma espécie de Trump da nova geração, preferiu se manter distante da controvérsia.

Outro pré-candidato, o ex-vice de Trump, Mike Pence, não fez o mesmo. "O presidente errou em dar lugar à mesa a um nacionalista branco, antissemita e negacionista do Holocausto. Ele deve pedir desculpas."

O político até tentou se distanciar e escreveu em rede social que não conhecia Fuentes. "Kanye West me ligou para jantar em Mar-a-Lago. Pouco depois, apareceu de forma inesperada com três amigos, sobre os quais eu não sabia nada", afirmou. "Jantamos na noite de quinta-feira com muitas pessoas no pátio. O jantar foi rápido e desimportante. Depois eles foram para o aeroporto."

A questão aqui é que, além de Fuentes, Ye é acusado de racismo e antissemitismo —e sua aproximação com o ex-presidente também incomoda a ala mais ao centro do partido.

O rapper Ye, com boné com o lema político de Trump, em encontro com o então presidente na Casa Branca, em 2018 - Kevin Lamarque - 11.out.18/Reuters

O rapper se lançou pré-candidato à Presidência na última semana e disse que foi a Mar-a-Lago pedir que Trump seja seu vice —o que, segundo o próprio músico, foi rejeitado de pronto. "Trump começou basicamente a gritar comigo e dizer que eu iria perder. Isso já funcionou com alguém alguma vez na história?", disse ele, em um vídeo publicado no Twitter e depois deletado. "Eu disse: 'Calma, calma, calma, calma, calma, Trump. Você está falando com Ye'."

Os democratas aproveitaram a oportunidade oferecida pelo jantar. Biden, questionado no fim de semana sobre o caso, foi seco: "Vocês não querem ouvir o que eu acho disso". Nesta segunda (28), a porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, afirmou que "não há lugar para esse tipo de forças vis na sociedade" e que não se manifestar contra o racismo "também é incrivelmente perigoso".

O caso coroa uma nova fase ruim para Trump, que viu voltar ao noticiário uma antiga acusação de agressão sexual. No mesmo dia em que entrou em vigor em Nova York uma lei que permite que vítimas de crimes do tipo processem seus abusadores mesmo que o episódio tenha acontecido há muito tempo, a jornalista E. Jean Carroll abriu uma ação contra Trump por difamação e agressão. O estupro teria ocorrido em 1995, e ela já havia processado o ex-presidente por difamação em 2019. Ele nega as acusações.

*Texto publicado originalmente na Folha de S. Paulo