Day: novembro 22, 2022

Erasmo Carlos morreu nesta terça-feira (22) aos 81 anos no Rio de Janeiro | Foto: Divulgação

Erasmo Carlos morre aos 81 anos no Rio de Janeiro

CNN Brasil*

Morreu no Rio de Janeiro na tarde desta terça-feira (22) o cantor, compositor e ator Erasmo Carlos, aos 81 anos. Ele estava internado no Hospital Barra D’Or, na zona oeste do Rio de Janeiro, desde a segunda-feira (21) com um quadro de síndrome edemigênica, doença que retém líquidos na corrente sanguínea.

No dia 2 deste mês o artista teve alta hospitalar após 17 dias de internação no mesmo hospital. Ele realizou uma bateria de exames e readequação dos medicamentos de uso contínuo, segundo sua assessoria de imprensa.

Após a saída, Erasmo comemorou nas redes sociais a alta hospitalar e agradeceu a todos que torceram por sua recuperação.

“Bem simbólico… depois de me matarem no dia 30, ressuscitei no Dia de Finados e tive alta do hospital!!!!”, escreveu Erasmo, fazendo uma referência a notícias falsas que foram veiculadas reportando que ele havia morrido.

O artista trabalhava ativamente e no fim de semana foi um dos vencedores do Grammy Latino de Melhor Álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa com “O Futuro Pertence À… Jovem Guarda”. Ele também usou seu perfil no Instagram para comemorar.

Ao longo de mais de 60 anos de carreira, foram mais de 680 músicas e 640 gravações. O artista era casado e deixa três filhos.

Pioneiro no rock brasileiro, Erasmo fez parte da Jovem Guarda, movimento cultural brasileiro da década de 1960, ao lado de Roberto Carlos e outros grandes nomes da música que marcou gerações e a história da música brasileira.

Sua carreira começou ainda na adolescência, na década de 1950, ao integrar a banda The Sputniks, ao lado de Tim Maia, Roberto Carlos, Arlênio Lívio, Edson Trindade e Wellington Oliveira.
Após o desentendimento entre Tim Maia e Robertos Carlos, Erasmo e outros amigos da Tijuca, na zona norte do Rio, onde o artista cresceu, formaram o The Boys of The Rock, que posteriormente passou a se chamar The Snakes. O grupo acompanhou os dois cantores em seus respectivos shows.

Após o fim do grupo em 1961, poucos anos depois, o músico voltou a acompanhar Roberto Carlos. Dessa vez na gravação de “Splish Splash”, numa versão para o português feita por Erasmo. O sucesso do disco foi o nascimento da lendária parceria entre Roberto e Erasmo.

Nessa época, ele começou a compor versos para diversos artistas.

Em 1965, ao lado de Robertos Carlos e Wanderléa, Erasmo estreou o programa Jovem Guarda, na Record TV, que deu nome ao movimento musical influenciado pelo pop britânico que introduziu o rock no Brasil. O programa foi ao durante três anos e colocou o trio como os principais nomes do rock brasileiro.

Nos anos 1970, o músico teve suas raízes influenciadas pelo MPB, que geraram diversos álbum mesclando o rock com a música popular brasileira.

Ao longo de 60 anos de carreira, o músico lançou 29 álbuns e 5 discos ao vivo. Erasmo acumula diversas parcerias de sucesso com artistas como Renato Russo, Leo Jaime, Kid Abelha, Tim Maia e, claro, Roberto Carlos.

Como ator, ele participou de seis filmes. Sua última aparição foi em “Modo Avião”, da Netflix.

Amigos, como Boninho, diretor artístico da TV Globo, lamentaram a perda do artista.

Texto publicado originalmente na CNN Brasil.


Em defesa da democracia | Foto: Shutterstock

Sem o direito de errar

Luiz Werneck Vianna*, Esquerda Democrática

Sob condução perita, a democracia conquistou uma nova oportunidade para tentar se impor na vida política dos brasileiros. Não foi uma vitória fácil e não encontra pela frente um céu de brigadeiro, mas um cenário tempestuoso carregado de ameaças. O capitalismo autoritário de estilo vitoriano teve quatro longos anos para instalar minas e casamatas em sua defesa, e operou a partir de um plano de estado-maior, favorecendo sem meias medidas interesses já constituídos como os do agronegócio e os das finanças, ao lado dos novos que estimulava com recursos políticos, especialmente na fronteira amazônica com a mineração e as madeireiras, fazendo vistas grossas à invasão de terras e à depredação do meio ambiente. Nessa faina seu lema implícito foi o de que não existe essa coisa chamada sociedade, os apetites de acumulação não deveriam conhecer freios regulamentadores do direito.

Os resultados eleitorais estampam o sucesso dessa empreitada com sua expressiva votação entre os eleitores de renda mais alta, embora insuficiente para sua vitória, que significaria a legitimação de um regime autocrático de pendores fascistas. A reação a essa política demofóbica foi caracterizadamente classista. Opuseram-se a ela os pobres, as mulheres ainda sujeitas ao patriarcalismo milenar em nossa história e as regiões desfavorecidas no capitalismo brasileiro, como o Nordeste.

A vitória eleitoral da coalizão democrática, embora tenha desatado esperança e júbilo, vem à luz num cenário hostil, com a arregimentação de setores renitentes à derrota nas urnas em aberta conspiração em favor de uma intervenção golpista a ser desfechada por militares. O caminho da democracia brasileira é o de pedras, e avançar nele está a requerer manobras ainda mais audaciosas do que as praticadas na campanha eleitoral, como a de ampliar alianças em direção às forças políticas agrupadas no chamado centrão, assim como as de representação do agronegócio que possam se associar na defesa do meio ambiente.

Nesse sentido, marcham em boa direção as tratativas realizadas no processo da transição para o novo governo sob a condução do vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, atento às necessidades de preservar e alargar uma coalizão política do tipo "geringonça", onde caibam alhos e bugalhos, tal como já ocorreu em Portugal, que possam vir a garantir sustentação ao governo democrático, desafiado antes mesmo de nascer pela grei dos derrotados nas eleições em movimentos subversivos, mas que conta a seu favor com um inédito apoio no cenário internacional.

A vitória em nosso país do campo democrático sobre os iliberais e negadores dos processos de globalização e das políticas ambientalistas transcendeu suas fronteiras, fato testemunhado pelo reconhecimento imediato, logo que fechadas as urnas, por parte do governo de Biden, da Alemanha, da França e de outras potências ocidentais, a que não faltou a presença dos principais países da nossa região. Tal rápida e vigorosa movimentação blindou o resultado das eleições, reforçada pela feliz oportunidade aberta pela conferência climática com sede no Egito, para a qual foi convidado o presidente eleito Lula, quando, além dos pronunciamentos importantes sobre a temática do clima que enunciou, teve a oportunidade de corpo presente de obter reconhecimento por parte de altos dirigentes nacionais. Tacitamente, o mundo desenvolvido deixava o recado de que a solução brasileira importava a todos.

A natureza estratégica das relações internacionais para o destino da democracia brasileira foi ainda mais realçada com o fracasso da chamada onda trumpista nas eleições legislativas nos Estados Unidos, assegurando-se ao governo Biden o comando do Senado a partir de uma campanha em que o tema da defesa da democracia e do meio ambiente ocupou papel de centralidade. O fato de bons ventos vindos de fora serem propícios aos bons propósitos do governo Lula-Alckmin para nada servirá se as velas não enfunarem em boa direção, guiadas por uma pilotagem consciente dos riscos presentes na situação, em que uma encarniçada oposição do bolsonarismo e dos grossos interesses a ele associados, temerosos de uma eventual perda dos seus privilégios, não perde de vista uma intervenção golpista.

Na Inglaterra da 2ª Guerra Mundial, sob os pesados bombardeios da aviação nazista, dizia-se, referindo-se aos pilotos britânicos que porfiavam por rechaçar os ataques aéreos, que nunca tantos dependeram de tão poucos. Os membros do governo de transição, que ora saem em busca dos caminhos difíceis que viabilizem nosso reencontro com um Estado democrático, não têm o direito de errar. Certamente não é tarefa fácil compatibilizar a responsabilidade social com a fiscal num país em que boa parte do seu povo vive abaixo da linha da pobreza. Os que não estiverem à altura do desafio que deixem seus lugares para os de melhor têmpera, que encontrarão os meios para vencer.

* Sociólogo, Puc-Rio

Texto publicado originalmente no Facebook da Esquerda Democrática.


Fifa Exemplo de espaço da FIFA Fan Festival | Crédito: Divulgação

Catar: mitos e verdades do país sede da Copa do Mundo

Catraca livre*

Catar é um país pequeno situado no Oriente Médio. A península tem apenas 11,571km 2 fazendo fronteira terrestre unicamente com a Arábia Saudita, e possui mais de 560 km de praias banhadas pelo Golfo Pérsico. O país é rico em petróleo, dono da terceira maior reserva de gás natural e da maior renda per capita mundial.

Como país monárquico, o Catar é governado pela família Al Thani desde meados de 1825. Em 1916, tornou-se protetorado britânico permanecendo assim até 1971, ano de sua independência. A religião islâmica rege todos os âmbitos do país: cultura, política e valores do cotidiano. Um lugar tão diferente dos padrões ocidentais acaba trazendo dúvidas e atiçando a curiosidade das pessoas que querem conhecer mais sobre o país que sediará a Copa do Mundo de 2022.

Aqui vamos desmistificar algumas impressões e trazer outras informações que vão fazer você querer conhecer o Catar. Para começar nossa jornada é interessante saber que a capital do país é Doha e qatari, qatariano ou qatarense é aquele que nasce no país, mas apenas 15% da população é nativa. Aqui vivem pessoas de aproximadamente 90 países, sendo a maioria do Egito, Índia, Filipinas e Bangladesh. O árabe é o idioma oficial, porém 80% da população fala inglês. Quanto ao dinheiro, a moeda é o qatari rial (QAR), que equivale em média a R$ 1,50.

Mesmo com a cultura islâmica bem forte no dia a dia das pessoas, é possível ouvir os cinco chamados das mesquitas na hora da reza, é fácil adaptar o jeito ocidental durante sua permanência aqui. O país é um dos mais seguros do mundo, então a liberdade em ir e vir está assegurada em qualquer horário. Como já falado, o inglês facilita sua comunicação com os locais, a leitura de placas também com tradução, rádios com músicas estrangeiras, culinárias
diversas e atrações para todos os tipos de pessoas.

O fim de semana é diferente

Outra curiosidade é sobre as horas e os dias da semana. Aqui a semana começa no domingo e vai até quinta-feira. Sexta-feira e sábado são os dias destinados ao fim de semana. Porém, em relação ao nosso fim de semana, aqui difere um pouco. A sexta-feira equivale ao nosso domingo, isso porque para os mulçumanos esse dia é sagrado e a partir do meio dia, eles se reúnem para a oração nas mesquitas para celebrar o “salat al Jumah”. O sábado é como o
nosso, todos os estabelecimentos abertos e a vida noturna agitada. Caso você queira ligar daqui para o Brasil para contar suas aventuras, saiba que o fuso horário é de seis horas a mais em relação ao horário de Brasília. Apenas um adendo, whatsapp aqui funciona apenas para mensagens e ligações e chamadas de vídeo são bloqueadas.

Símbolo da riqueza

Sendo um país rico, o turista encontra algumas extravagâncias pelas ruas de Doha e não falo só pelos modelos luxuosos que circulam por aqui. Não é apenas o veículo que mostra o status do proprietário, mas as placas com numerações diferentes ou quantidades de dígitos comprovam a influência e riqueza de quem os dirige. Por exemplo, uma placa padrão tem seis números com ordem aleatória, mas para aquele que pagar mais, a placa pode ter seis números escolhidos ou até menos dígitos. Uma placa com apenas três dígitos certifica o poder e dinheiro do motorista. O custo para isso é caríssimo. Para se ter uma dessas, basta participar de um leilão. Em maio deste ano foi realizado um leilão de placas com o logo da Copa do Mundo e o valor mais alto por uma placa foi de 1,8 milhões de qatari rials.

As mulheres usam burca?

Em relação ao cotidiano do Brasil, há algumas diferenças e estando por dentro vai te ajudar a evitar qualquer saia justa. Como moradora aqui há quase dois anos o que mais me perguntam é sobre como se vestir. Não, eu não uso burca e nem as mulheres mulçumanas. As mulheres qataris usam um vestido preto longo e de mangas longas chamado abaya. Para cobrir o cabelo, elas usam um lenço, chamado hijab. Os homens usam a roupa tradicional, o thobe, que é uma camisa branca que vai até os pés. Na cabeça usam um lenço chamado ghutra.

Há sim um dress code que é basicamente você usar roupas que cobrem os joelhos e os ombros, mas isso não te impede de usar blusas e vestidos de alça, basta ter sempre um lenço para cobrir os ombros caso seja necessário ou pedido. Em alguns lugares, como o bairro The Pearl, a vestimenta é liberada, então você encontra pessoas com shorts, saias curtas, decotes, etc.

Beijo é proibido?

Nós brasileiros somos muito afetuosos, estamos sempre abraçando, dando beijos, andando de mãos dadas…. Pois saiba que aqui no Qatar essas demonstrações em público não são bem vistas, independente do sexo e do estado civil do casal.

Pode beber na rua?

Beber aqui também requer algumas regras. Entrar no país com bebida alcoólica é proibido. Aqui os lugares para beber são restritos aos restaurantes e bares de hotéis autorizados, ou em casa. Em bares, por exemplo, uma cerveja long neck chega a custar aproximadamente R$ 65. Já para os residentes, e que não sejam mulçumanos, existe uma única loja no país que vende bebidas e carne de porco, e é necessário obter uma licença e marcar horário para a visita. Diferente do álcool, a carne suína é proibida em qualquer estabelecimento no Qatar.

E na Copa, como ficará a questão da bebida alcóolica para os turistas? Durante o Mundial será permitido o consumo no FIFA Fan Festival e nos arredores dos estádios em horários próximos aos jogos. Além disso, bares e restaurantes que já servem bebidas alcóolicas continuarão com o serviço normalmente.

Como faz com o calor de quase 50°C?

O clima aqui também influencia bastante o dia a dia de quem mora e vem visitar Doha. Toda a cidade tem um sistema de ar condicionado nos principais pontos turísticos seja ao ar livre, como no Souq Waqif, Katara e Msheireb (a refrigeração sai pelo chão), como em locais fechados. Isso é necessário porque no verão as temperaturas chegam a quase 50 o C. Mesmo nós brasileiros, acostumados ao calor, não conseguimos aguentar.

Outro problema durante essa estação é a umidade alta. Não é à toa que durante a estação a cidade fica vazia, porque a maioria aproveita as férias escolares e viaja para destinos mais amenos. O melhor dos mundos é quando o outono chega em meados de outubro (ainda é quente, por volta de 32 o C) até o final do inverno, que dura até março. É por isso que a Copa será realizada entre os dias 20 de novembro e 18 de dezembro. Será a primeira vez que o Mundial não acontecerá no meio no ano. A razão para a mudança é exatamente por conta das altas temperaturas nos meses de junho e julho no Oriente Médio. Para o período dos jogos é esperada temperatura média de 25 o C. Apenas uma dica, a noite o termômetro cai um pouco mais, por isso esteja preparado para o frio do deserto.

Agora que você já tem todas as informações sobre o Catar, viu que não é nenhum bicho de sete cabeças, que o povo árabe é tranquilo e te receberá de braços abertos, vale incluir uma visita para cá sendo para a Copa do Mundo 2022 ou para qualquer outro momento.

*Juliana Lauar é jornalista que se mudou, há dois anos, para o Catar movida pelo calendário da Copa do Mundo. 

Texto publicado originalmente no portal do Catraca livre.


Manifestantes protestam durante funeral de três iranianos mortos baleados durante manifestação | Foto: Alireza Mohammadi/ AFP

Mais de 300 já morreram em protestos no Irã, diz agência da ONU

g1*

Mais de 300 pessoas já morreram durante os protestos que tomaram conta do Irã e que pedem o fim do regime islâmico nos dois últimos meses, segundo levantamento da agência das Organizações das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos apresentado nesta terça-feira (22).

O país vive a maior onda de protestos de sua história, que eclodiram em reação ao caso da jovem curda Mahsa Amini, de 22 anos, que apareceu morta após ser presa no fim de setembro pela chamada polícia dos bons costumes do país por "uso inadequado" do véu islâmico, obrigatório no Irã.

As reivindicações, contra a repressão às mulheres, rapidamente se tornaram o maior movimento contra a República Islâmica desde a sua proclamação, em 1979.

O governo tem respondido com repressão às manifestações, e há diversos relatos apontam que tiros vindos de policiais durante os atos são os responsáveis pela maior parte da morte.

A agência da ONU não sustenta diretamente essa informação, mas descreve um "endurecimento da resposta das autoridades aos protestos que resultaram em mais de 300 mortes nos últimos dois meses".

"Instamos suas autoridades a atender às demandas das pessoas por igualdade, dignidade e direitos, em vez de usar força desnecessária ou desproporcional para reprimir os protestos", disse o porta-voz do chefe de direitos humanos da ONU, Volker Turk.

Os números apresentados pela ONU são similares aos da Organização Não Governamental (ONU) Iranian Human Rights Watch, , a principal organização de monitoramento das manifestações. A ONG fala em 380 mortes desde o início dos protestos. Ainda segundo esse balanço, 45 eram crianças.

Texto publicado originalmente no portal g1.


Presidente da FIFA, Gianni Infantino | Foto: Wikimmedia Commons

Guerra de quadrilhas por trás da Copa no Qatar

Leo Eiholzer e Andreas Schmid*, Outras Palavras

Uma rede de espionagem trabalha em segredo. Agentes de inteligência planejam influenciar eventos mundiais agindo secretamente. Hackers roubam informações controversas. E um cliente obscuro financia todo o projeto com centenas de milhões de dólares.

Esta é a história de uma operação secreta global.

A investigação realizada pela equipe investigativa do canal suíço SRF, a “SRF Investigativ”, mostra os detalhes de como o Estado do Catar espionou autoridades do futebol mundial. E como os críticos da próxima Copa do Mundo, de fora da FIFA, também foram visados.

O objetivo final desses esforços: evitar que o Catar perdesse a candidatura à Copa do Mundo depois que muitas críticas foram levantadas, quando a FIFA concedeu o torneio ao país autoritário em 2010.

A dimensão das atividades de espionagem é considerável. Uma única sub-operação envolveu a mobilização planejada de pelo menos 66 agentes ao longo de nove anos. O orçamento totalizou US$ 387 milhões. E as atividades abrangeram cinco continentes.

Os mais altos escalões do governo do Catar estiveram envolvidos nas atividades de espionagem, incluindo o atual chefe de Estado, o Emir do Catar.

Os documentos mostram que o país desértico queria garantir que nenhuma mudança de posição dentro da FIFA, nenhuma nova amizade, nenhuma aliança potencialmente perigosa, nada que pudesse comprometer a realização da Copa do Mundo de 2022 no Catar escapasse de sua atenção. O objetivo era obter o controle absoluto. Ou “penetração mundial”, como está escrito em um documento da operação de espionagem.

Para isso, o Catar contratou a empresa privada estadunidense Global Risk Advisors (GRA). A equipe da empresa é formada por ex-membros das agências de inteligência dos Estados Unidos. Seu fundador é o ex-agente da CIA, Kevin Chalker.

A Suíça foi um local chave na operação. O espião-chefe e seus clientes do Catar se encontraram em Zurique. E foi na Suíça que eles espionaram vários indivíduos. Assim, presume-se que os crimes foram cometidos por ordem do Catar.

Chalker nega todas as acusações. O estado do Catar não respondeu às perguntas. Logo após o contato da SRF, o emir do Catar reclamou em um discurso público sobre uma “campanha” contra seu país.

A investigação da SRF constatou que as vítimas estavam completamente à mercê dos agentes que as espionavam. Suas contas de e-mail, computadores, telefones, amigos e até familiares se tornaram alvos dos guerreiros das sombras do Catar.

A operação visava mais do que obter informações. A investigação conclui que houve uma mão invisível tentando controlar o direcionamento da FIFA durante os últimos dez anos. Os espiões afirmam ter penetrado na mais alta instância decisória da FIFA, o Comitê Executivo.

Esta é a história do “Projeto Sem Piedade”.

A história se passa em um mundo de bastidores. Os espiões são invisíveis. Suas atividades, no entanto, têm consequências na vida real. Em lugares reais.

Em 5 de janeiro de 2012, um ciberataque contra um cidadão suíço é lançado. Um ex-assessor do presidente da FIFA, Joseph Blatter, recebe e-mails estranhos. Seus remetentes parecem querer que ele abra os anexos das mensagens por todos os meios. Eles tentam repetidas vezes.

Se ele tivesse clicado nos arquivos, um software teria sido instalado secretamente em seu computador. Sem que ele percebesse, o software copiava todos os dados de seu disco rígido e os enviava aos hackers.

O homem sentado atrás do computador é Peter Hargitay. Oficialmente, ele atua como conselheiro, mas dentro da FIFA, ele é considerado uma espécie de porta-voz, um influente agente de poder nos bastidores. Ele havia sido próximo do então onipotente presidente Joseph Blatter. Mais tarde, ele foi consultor da associação australiana de futebol e de seu presidente, Frank Lowy, um bilionário. Hargitay deveria ajudar a Austrália a sediar a Copa do Mundo de 2022 e, portanto, trabalhou em estreita colaboração com Lowy.

Sem dúvida, o computador de Hargitay continha informações valiosas. Um tesouro para quem deseja ter uma boa noção do que realmente acontecia na FIFA.

Quem poderia querer tais informações tão desesperadamente a ponto de estar preparado para o risco de tomar um processo?

O líder indiano

Hargitay é cidadão suíço; sua empresa tinha um escritório em Zurique na época. Ele apresentou queixa e o ataque ao informante da FIFA se tornou um caso para as autoridades suíças.

As evidências apontaram rapidamente para a infraestrutura de uma empresa de TI com sede na Índia, a Appin Security. A SRF obteve registros do processo criminal de Zurique. Os hackers parecem ter sido descuidados em seu trabalho. O servidor que eles usaram para o ataque contém muitas evidências que indicam o envolvimento da Appin.

A Appin é uma empresa evasiva. Na época, era controlada por um empresário indiano. Oficialmente, a Appin oferecia apenas serviços jurídicos, incluindo proteção contra ataques de hackers.

Um representante legal do empresário disse à SRF que seu cliente era “um empresário internacional de sucesso com boa reputação. Ele nunca foi questionado pelas autoridades policiais em nenhum país. Ele nega claramente todas as conexões com quaisquer atividades ilegais”.

No entanto, os ataques que traziam a impressão digital da Appin começaram a atrair atenção em todo o mundo. Eles aparentemente não seguiam nenhum padrão, como se a empresa indiana estivesse atacando aleatoriamente.

De acordo com a investigação da SRF e reportagens da mídia internacional, um modelo de negócios relativamente novo está por trás do método: uma empresa ataca alvos por uma taxa e fornece as informações ao cliente. Chama-se “hackeamento de aluguel”.

O ataque ao colaborador da FIFA, Peter Hargitay, foi apenas um serviço contratado.

Mas quem é o cliente?

Documentos mostram que Peter Hargitay era alvo de uma rede secreta de espionagem que trabalhava para o governo do Catar. Um documento de planejamento altamente confidencial da Global Risk Advisors revela o que provavelmente aconteceu no caso de hackeamento. E mostra que os cidadãos suíços foram, ao que tudo indica, atacados em nome do governo do Catar.

Os documentos revelam um plano para uma campanha global de difamação, uma manipulação cínica da base de poder da FIFA. A ideia apresentada no documento era coletar informações incriminatórias sobre os membros da FIFA Hargitay e Lowy e vazá-las para o Federal Bureau of Investigation, o FBI.

O documento é intitulado “Project Clockwork: Concept of Operations” (Projeto Engrenagem: Conceito de Operações) e é datado de dezembro de 2011 – apenas um mês antes de Peter Hargitay receber os primeiros e-mails infectados.

O verdadeiro alvo era Lowy, não Hargitay, como mostram os documentos. Lowy estava trabalhando em estreita colaboração com Hargitay para a candidatura australiana à Copa do Mundo. A razão para os esforços dos espiões contra Lowy parece óbvia: o australiano era um duro adversário da realização da Copa do Mundo no Catar e havia dito publicamente que o país desértico poderia perder o direito de sediar o torneio.

O documento de planejamento diz, sob o título “o que devemos realizar”: “plano de 9 meses para neutralizar o papel e a influência de […] Frank Lowy”. Também menciona que Lowy era um alvo difícil. Sua riqueza e rede lhe davam acesso a consideráveis meios  ​​na área de contra-espionagem. O risco para os diretores da Global Risk Advisors, caso alguma coisa desse errado, foi considerado alto. O documento também especifica que o “Prazo exige ataque de força bruta”. Além disso, o documento apresenta uma foto de Peter Hargitay.

Na seção intitulada “Andando na corda bamba”, os agentes expõem como pretendiam neutralizar Lowy e Hargitay. Aparentemente, eles tinham informações internas a respeito de uma investigação das agências policiais dos EUA e planejavam usar essa investigação para seus próprios fins.

O documento alega conexões entre Hargitay, Lowy e a candidatura russa para a Copa do Mundo de 2018 e pergunta: “Podemos ajudar a conectar os pontos?”. E em seguida: “Fornecer provas de apoio às agências policiais relevantes”.

Uma investigação do FBI teria destruído a reputação de Lowy e Hargitay em âmbito global. Eles teriam sido efetivamente “neutralizados”.

De acordo com os documentos, o Catar aprovou o “Projeto Engrenagem”. E um mês após a elaboração do documento de planejamento, o computador de Hargitay foi hackeado. Que o ataque tenha sido realizado por outra empresa não é algo incomum. A Global Risk Advisors frequentemente recorre aos serviços de subcontratados para realizar operações, mostra a investigação da SRF. Essa abordagem torna mais difícil atribuir o ataque à empresa de Chalker. E mais ainda identificar o Catar como cliente. Em um documento, a empresa se compromete explicitamente a fornecer um “bode expiatório” e “para-raios” para desviar as suspeitas.  

Chalker identificou Hargitay como um alvo importante muito antes do ataque cibernético contra ele. Ele havia dito isso aos associados na época. Chalker até tinha um codinome para Hargitay: “Broken Arrow”.

A ponta de um enorme iceberg

O plano para comprometer Lowy e Hargitay, no entanto, representa a ponta de um enorme iceberg. Nos anos seguintes à decisão sobre a Copa do Mundo, que aconteceu no final de 2010, uma operação de espionagem e manipulação não detectada que ninguém poderia imaginar se desenrolou nos bastidores da FIFA.

A SRF obteve uma série de documentos que descrevem a operação. Os repórteres receberam as informações de várias fontes que autorizaram o acesso a elas.

O cérebro por trás das atividades de espionagem é Kevin Chalker, ex-membro da Agência Central de Inteligência (CIA), o serviço de inteligência internacional dos EUA. 

Chalker – de cabelos castanhos e barba ruiva – trabalhava para a CIA há pelo menos cinco anos. E não trabalhou como analista em algum escritório, atuou como “oficial de operações” e, portanto, em uma área do serviço de inteligência que realiza atividades secretas. Um verdadeiro espião.

Chalker deixou a CIA há vários anos. Posteriormente, ele primeiro negociou para trabalhar para a Diligence, uma empresa britânica de espionagem particular. Mas acabou fundando sua própria empresa, a Global Risk Advisors. Sua equipe consiste principalmente de ex-membros dos serviços de inteligência dos EUA. Por fim, a Global Risk Advisors estava trabalhando para o Catar.

Um advogado de Chalker negou todas as alegações quando procurado pela SRF para comentar o caso: “A Global Risk Advisors e o senhor Chalker não sabem nada sobre esses supostos novos hacks ou outras más condutas sugeridas em sua investigação e certamente não participaram deles de forma alguma”. Além disso, “Você afirma ter documentos da GRA para apoiar algumas das falsas acusações. Se você realmente tiver algum documento, como jornalista você deve questionar sua autenticidade”.

A SRF empregou uma série de medidas para verificar a autenticidade dos documentos. Chalker não quis comentar sobre questões específicas quanto à natureza do papel que desempenhou no Catar.

O presidente da FIFA, Joseph S. Blatter, anuncia que o Catar sediará a Copa do Mundo de 2022, em 2 de dezembro de 2010. Keystone / Walter Bieri

A investigação da SRF mostra que inicialmente, antes da premiação da Copa do Mundo em dezembro de 2010, Chalker espionou as várias licitações. Mas, com as críticas levantadas sobre corrupção e violações de direitos humanos no Catar após a conquista da Copa, o alvo mudou. Agora, a tarefa era impedir, a qualquer custo, que a FIFA tirasse a Copa do Mundo do Catar.

Chalker e sua empresa desenvolveram o plano que não deixaria nada ao sabor do acaso.

O “Projeto Engrenagem” e as atividades contra Lowy e Hargitay eram apenas parte desse plano.

A próxima parte foi o “Projeto Sem Piedade”. A descrição do projeto revela o quão elaborada era a trama do serviço de inteligência e quão ambicioso era o projeto.

“O Catar deve obter informações preditivas para alcançar a consciência informacional total”, diz o documento. O plano era conhecer os planos e intenções de vários alvos com antecedência, incluindo os de “figuras críticas dentro da FIFA”, do “presidente da FIFA Joseph Blatter” e dos “membros-chave do FIFA ExCo – presentes e futuros”. A sigla significa Comitê Executivo da FIFA.

“O objetivo final é alcançar a penetração de abrangência mundial”, especifica o documento. Os Global Risk Advisors pretendiam não perder nada. Nenhuma mudança em nenhum plano, nenhuma mudança de posição dentro da FIFA. O objetivo era obter o controle absoluto.

Especialistas em TI e especialistas em “coleta técnica” deveriam ser destacados para o projeto.

Segundo documentos internos da empresa, o “Projeto Sem Piedade” foi aprovado pelo Catar, com orçamento de US$ 387 milhões.

Esta foi apenas a “menor” opção das três apresentadas. Mas, aparentemente, causou impacto. Um documento diz: “A maior conquista até hoje do Projeto Sem Piedade […] veio de operações de penetração bem-sucedidas visando críticos vocais dentro da organização da FIFA”.

Outro documento descreve as atividades da seguinte forma: “[O projeto] é projetado para esconder o papel do Catar nas operações, enquanto utiliza tecnologia e inteligência humana para […] manipular o sentimento público”.

Os mais altos escalões do governo do Catar estiveram envolvidos nas atividades de Chalker, apurou o SRF Investigativ. De acordo com documentos analisados ​​pela SRF, o então herdeiro do trono e atual emir Tamim bin Hamad Al-Thani ordenou pessoalmente a obtenção de registros detalhados de telefone e SMS de vários membros do Comitê Executivo da FIFA antes do anúncio do país sede da Copa do Mundo.

O quanto exatamente o Emir estaria envolvido depois que a Copa do Mundo foi concedida ao Catar ainda não está claro. A operação ainda tinha um codinome para ele – “Apex” – anos depois.

Claramente, no entanto, Chalker e Qatar estavam mais do que prontos a assumir riscos e não tiveram qualquer constrangimento em mirar em figuras proeminentes. Um documento obtido pela SRF indica que Michael Garcia, principal investigador do Comitê de Ética da FIFA, pode ter se tornado alvo de operações. O documento intitulado “Target Profile” contém várias páginas descrevendo Michael Garcia.

Segundo a agência de notícias Associated Press, o FBI está investigando Chalker há vários meses. Além das possíveis violações à lei na área de lobby e exportação de tecnologia sensível, os promotores estão se concentrando nas atividades de vigilância de Chalker em nome do Catar. A Associated Press já publicou relatórios sobre as operações de Chalker para o país desértico em conexão com a Copa do Mundo.

Nem a embaixada do Catar em Berna nem o Escritório de Comunicações do Governo em Doha responderam a vários pedidos de informações da SRF. Logo após os pedidos, o emir fez um discurso na Assembleia Consultiva do Catar, uma espécie de parlamento sem poder, no qual mencionou que o Catar havia sido vítima de uma “campanha inédita” depois que o país foi escolhido como sede da Copa do Mundo. Ele disse: “Logo ficou claro para nós que a campanha continua, se expande e inclui invenções e padrões duplos, até atingir uma ferocidade tal que fez muitos se perguntarem, infelizmente, sobre as verdadeiras razões e motivos por trás dessa campanha”.

Operação de vigilância na Suíça

A investigação da SRF mostra que a Suíça foi fundamental para a operação de inteligência do Catar.

Segundo a investigação, Chalker, a mando do Catar, viajou a Zurique com o objetivo de grampear quartos de hotel de membros do Comitê Executivo e de jornalistas.

Um documento inclui fotos obviamente tiradas em segredo como parte de uma operação de vigilância. Elas foram tiradas no luxuoso hotel Baur au Lac, em Zurique. E mostram pessoas ligadas à FIFA reunidas com dirigentes e jornalistas.

Uma foto de vigilância de um evento da FIFA no Baur-au-Lac Hotel em Zurique. SRF

Os agentes aparentemente se sentiram à vontade na Suíça. De acordo com a investigação, Chalker se reuniu com seus clientes do Catar em Zurique para discutir as operações. Pelo menos um membro da Global Risk Advisors fixou sua base permanente na Suíça, depois que o Catar foi escolhido como sede da Copa do Mundo de 2022.

Isso é um problema. Espionar em nome de um terceiro país em solo suíço é proibido. Tais atividades podem ser indiciadas como espionagem.

No entanto, Chalker conheceu um de seus contatos mais próximos, um alto funcionário do Catar chamado Ali Al-Thawadi, em Zurique. Seu codinome era “Shepherd” (“Pastor”). Ele é o chefe de gabinete do irmão do atual emir, Mohammed bin Hamad bin Khalifa Al Thani, também conhecido como MBH.

Além disso, dois jovens tinham laços estreitos com Chalker na operação de espionagem em nome do Catar: Ahmad Nimeh, oficialmente consultor da candidatura do Catar, e um catariano chamado Ahmed Rashad. Ambos os homens têm conexões com uma misteriosa empresa com sede em Doha chamada Bluefort Public Relations. Nimeh esteve ligado às chamadas “operações negras” relacionadas à Copa do Mundo pelo jornal britânico The Sunday Times em 2018. Nimeh é genro de Patrick Theros, ex-embaixador dos Estados Unidos no Catar. Outro parceiro próximo de Nimeh, Nikos Kourkoulakos, estava trabalhando oficialmente para a candidatura do Catar à Copa do Mundo.

De acordo com o registro de empresas, Ahmad Rashad, colega de Nimeh, é o acionista majoritário da Bluefort Public Relations.

A investigação da SRF descobriu que uma pessoa-chave para a próxima Copa do Mundo, Hassan Al Thawadi, supervisionou a operação de espionagem em nome do Catar. Ele foi o CEO da bem-sucedida candidatura à Copa do Mundo e é o atual secretário-geral do Comitê Supremo, órgão que organiza a Copa do Mundo no Catar.

A FIFA aparentemente permaneceu alheia à operação de espionagem. O ex-presidente da entidade, Joseph Blatter, disse em entrevista à SRF: “Que houve um caso de espionagem organizada na FIFA, foi algo que me surpreendeu. E é alarmante”. Vários documentos mostram que Blatter era de grande interesse para os espiões. Mencionam, por exemplo, que os “planos e intenções” de Blatter devem ser conhecidos com antecedência.

A Chalker e a Global Risk Advisors estão atualmente enfrentando uma ação civil relacionada a supostas atividades semelhantes. A ação foi movida por Elliott Broidy, aliado do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Dados privados de Broidy vazaram para jornais em 2018, e ele acusa Chalker e sua empresa de um ataque de hackers em nome do Catar. Chalker nega todas as acusações. O processo ainda está pendente.

“Câncer do futebol mundial”

Houve uma figura no futebol mundial que pareceu importante o suficiente para os espiões do Catar lhe dedicarem um projeto inteiro: “Projeto Riverbed”. O codinome foi usado para o cartola do futebol alemão Theo Zwanziger.

Segundo documentos obtidos pela SRF, o Catar investiu US$ 10 milhões para espionar e influenciar Zwanziger. A Associated Press reportou a mesma cifra nesta primavera.

Zwanziger atuou como presidente da DFB, a Associação Alemã de Futebol, até 2012. E como membro do Comitê Executivo da FIFA até 2015 e, portanto, um executivo de futebol extremamente influente, associado a figuras poderosas na política mundial, ele era uma voz crítica e provocativa contra o Catar. A certa altura, ele chamou o Catar de “o câncer do futebol mundial”.

O Catar queria parar isso. Segundo documentos, uma rede foi construída em torno de Zwanziger, composta por pessoas que iriam influenciá-lo em benefício do Catar.

Para neutralizar Zwanziger, os espiões contaram com métodos de inteligência, como especificam os documentos.

Eles mencionam “operações ocultas”. Também em sua mira estava a “Família Riverbed” – que é a família de Zwanziger. Os atacantes do Global Risk Advisors aparentemente construíram relacionamentos com pessoas próximas a Zwanziger. Criaram uma rede de “recursos, fontes e contatos” ativos nos cinco continentes, trabalhando para influenciar Zwanziger.

Zwanziger receberia persistentemente uma mensagem: “A Copa do Mundo de 2022 no Catar é boa para o mundo”.

Para salvar a Copa do Mundo, o Catar queria calar as críticas. Os esforços da operação não deixaram de surtir efeito em Zwanziger. Ele foi enquadrado dentro da Fifa, como diz hoje. Ele liderou um grupo de trabalho que pressionou por mais direitos humanos e menos críticas ao Catar. Em entrevista à SRF, ele disse: “Várias pessoas me orientaram nessa direção. Claro, isso era do interesse do Catar. Para provocar precisamente essa mudança de pensamento.”

Mas esses esforços, de acordo com Zwanziger, não tiveram o efeito pretendido em suas opiniões. Na entrevista, ele disse: “O que eles subestimaram, porém, é que eu não abri mão da minha opinião no processo. Esta decisão [dar o mundial ao Catar] foi – como eu já disse – um câncer para o futebol mundial. A partir daí surgiram muitas correntes que prejudicaram o futebol mundial. Ainda hoje tenho essa opinião.”

No que diz respeito à operação de espionagem contra ele, Zwanziger acha que a FIFA tem a obrigação de agir. Ele disse: “Isso é um escândalo. Deve ser enfrentado por aqueles que estão no comando. O presidente da FIFA, Infantino, seria o primeiro. Mas ele não fará isso, é claro, porque é um vassalo do Catar.” 

A FIFA e Gianni Infantino se recusaram a comentar.

Visando os sindicatos

A Confederação Sindical Internacional (ITUC) apresentou outro problema para o Catar. Durante anos, a federação sindical, que inclui 200 milhões de filiados, repetidamente levantou questões sobre a Copa do Mundo no Catar. E trabalhou para garantir que o sofrimento dos trabalhadores no Catar chamasse a atenção do mundo e comovesse as pessoas.

O sindicato foi vítima de um ataque cibernético no final de 2015. Alguém havia copiado o e-mail da então porta-voz de mídia para o secretário-geral. E os e-mails logo apareceram – em versão alterada, segundo o sindicato – na mídia.

O ataque trazia as impressões digitais de Global Risk Advisors. A SRF obteve um documento, no qual a Global Risk Advisors identifica o sindicato como um problema tão sério para o Catar quanto a FIFA ou o Conselho de Cooperação do Golfo – importante grupo de países em nível diplomático.

Os espiões também traçaram uma rede detalhada de relacionamentos de pessoas que trabalham para o sindicato e de que forma elas estavam ligadas à FIFA. Este documento menciona a porta-voz da mídia, que foi hackeada.

Atenção do FBI

Apesar de nunca ter disputado uma partida de futebol profissional na vida, Sunil Gulati é uma das figuras mais importantes do futebol nos EUA. Ele começou carregando as toalhas dos membros da seleção nacional de juniores, antes de avançar para o cargo de presidente da Federação de Futebol dos Estados Unidos. Por décadas, ele foi o indivíduo mais influente do futebol estadunidense. As fotos tiradas naquela época o mostram com Barack Obama, Bill Clinton ou Joe Biden.

No auge de seu poder, Gulati foi espionado, seu computador foi hackeado, aparentemente sem que isso tivesse sido notado. A evidência do ataque a Gulati parece inexpressiva a princípio: uma pasta digital comum.

No entanto, a pasta contém aproximadamente 800 arquivos, todos roubados do computador de Gulati. O hacker parece ter copiado todos os arquivos PDF, Word, PowerPoint e Excel naquele computador. E essas cópias chegaram à SRF.

Os arquivos incluem documentos confidenciais, como o contrato de trabalho do então técnico da seleção americana Bob Bradley, além de cartas de e para Gulati e outros dirigentes da FIFA. O ataque não poupou a vida privada de Gulati. Há um livro de fotos nos arquivos, por exemplo, documentando os anos de infância de Gulati, e há dados de saúde.

A minuta do contrato com o novo técnico da seleção americana, Bob Bradley, contém todos os detalhes do emprego.SRF

Gulati era concorrente direto do Catar, dois anos antes, durante o processo de definição da sede da Copa do Mundo. Ele foi presidente da candidatura estadunidense para a Copa do Mundo de 2022, período durante o qual a Global Risk Advisors se interessou por ele e preparou a seu respeito um dossiê pessoal de várias páginas.

Os metadados mostram que os últimos arquivos de Gulati foram editados na primavera de 2012. Portanto, o ataque hacker provavelmente ocorreu apenas algumas semanas após o ataque a Hargitay. Os membros da FIFA, SRF, conversaram para considerar Gulati um crítico do Catar. 

Não há dúvida de que alguém cuja identidade ainda não foi esclarecida queria saber o que havia no computador de Gulati. E que eles não hesitaram em lançar um ataque cibernético contra um cidadão americano, embora o FBI investigue estritamente os crimes cibernéticos.

A inação das autoridades suíças

Agentes espionam o mundo do futebol em nome do Catar há dez anos. A SRF descobriu que o Ministério Público de Zurique sabia sobre uma suposta atividade da rede de espionagem desde o início. Eles estavam cientes do hack no computador de Peter Hargitay desde 2012 – quando os invasores iniciaram suas operações. E era óbvio que o caso Hargitay era importante.

No entanto, nada de mais aconteceu em relação às investigações do Ministério Público. Os promotores se omitiram em ações investigativas óbvias. O exemplo mais contundente disso diz respeito ao CEO da empresa indiana Appin Security, que havia sido considerado suspeito no caso. O promotor inicialmente perguntou ao CEO se ele estaria disposto a responder perguntas sobre o caso. Um advogado informou ao Ministério Público que o empresário estaria disposto a fazer isso por escrito. Mas então o promotor simplesmente não enviou nenhuma pergunta. Ainda não está claro o porquê.

Por fim, o Ministério Público encerrou o caso oito anos depois por falta de vias investigativas adequadas. O Ministério Público de Zurique disse em comunicado à SRF que, por motivos legais, não pode comentar suas próprias atividades no processo. Um porta-voz escreveu que houve esforços abrangentes para essa investigação que foi realizada dentro das disposições legais. O porta-voz disse ainda: “Não houve exercício de influência sobre nenhum membro do Ministério Público”.

O ex-CEO vive hoje na Suíça. No outono de 2020, logo após o encerramento da investigação, ele comprou uma mansão impressionante. De acordo com o cartório de registro de imóveis, ele pagou 13,5 milhões de francos suíços à filha de um oligarca ucraniano na transação. Ele agora se apresenta como um renomado investidor em startups e teve sua foto tirada para a edição francesa da revista suíça Bilanz.

O que ele teria testemunhado se tivesse sido solicitado em 2013? A história teria tomado outro rumo? Os espiões do Catar teriam reduzido seus esforços por medo de serem expostos? Não haverá resposta para tais perguntas.

Neste momento, com a Copa rolando, milhões estão de olho no Catar. Mas talvez ninguém veja as coisas da maneira que o Emir sempre desejou. Se a Copa do Mundo de 2022 for uma celebração do futebol, será manchada por agentes de inteligência, mentiras e manipulações.

*Texto publicado originalmente no site Outras Palavras


Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Nas entrelinhas: PEC da Transição troca o Bolsa Família pelo orçamento secreto

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Não gosto de afirmações categóricas na política, porque ela é como uma nuvem, como dizia o governador mineiro e banqueiro Magalhães Pinto. Você olha pro céu, parece um elefante; olha novamente, já virou um jabuti; olha de novo, e desaba um aguaceiro danado. A nuvem desta semana no céu de Brasília é a PEC da Transição, que está sendo objeto de intensas negociações entre representantes da equipe de transição, sob coordenação do senador eleito Wellington Dias (PT), ex-governador do Piauí, e os caciques do Centrão, liderados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Ontem, o ex-ministro do Planejamento e da Fazenda Nelson Barbosa rebateu as críticas à PEC da Transição com uma comparação que soa como música para os políticos do Centrão: disse que o governo Lula em 2023, o seu primeiro ano de mandato, gastará menos do que o governo Bolsonaro em 2022, ou seja, no seu último ano. Segundo o relatório de orçamento mais recente, o atual governo deve gastar o equivalente a 19% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2022, ao passo que a proposta do novo governo é reduzir esse percentual para 17,6% do PIB.

Segundo Barbosa, haveria um espaço de até R$ 136 bilhões para elevar despesas sem interferir nessa proporção gasto/PIB. Nessa contabilidade, ocorreria uma “recomposição fiscal” e não uma “expansão do gasto”. O espaço para aumentar gastos públicos em 2023 sem aumentar as despesas, em relação a esse ano, seria de R$ 136 bilhões, o que representa quase 69% dos R$ 198 bilhões previstos na PEC da Transição (valor que ficaria fora do teto de gastos). O gasto com o Bolsa Família ficaria fora do teto de forma permanente, num total de R$ 175 bilhões anuais, além de investimentos adicionais de até R$ 23 bilhões, para o Orçamento 2023. Qual o custo de um acordo no qual o governo Lula não teria que se preocupar com a aprovação de recursos para o Bolsa Família durante todo o mandato?

O cientista político Paulo Fábio Dantas, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pôs o dedo na ferida: a pressão dos atuais congressistas sobre o futuro governo para aprovar a exclusão do Bolsa Família do teto de gastos seria “a fixação explícita, na mesma PEC, da imperatividade da execução das emendas do relator, porta de entrada de uma constitucionalização do ‘orçamento secreto’, antes que a ministra Rosa Weber o anule”. Sua conclusão decorre de uma entrevista do líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), na sexta-feira, na qual essa raposa felpuda do Congresso afirmou que a equipe de transição teria assimilado a legitimidade das “emendas de relator”. Faz sentido, porque não foram poucos os parlamentares da oposição, inclusive do PT, que se beneficiaram dessas emendas neste ano eleitoral.

Orçamento fatiado

Voltando aos números da PEC, com o Bolsa Família fora do teto de gastos, haveria um espaço de R$ 105 bilhões no Orçamento que estavam reservados para o Auxílio Brasil e que poderão ser destinados à recomposição dos orçamentos da Saúde, da Educação e outras despesas da área social. Como esses gastos são permanentes, a reação do mercado financeiro ao acordo em curso vem sendo muita negativa, porque a conta não fecha em quatro anos. Quem entende de contas públicas afirma que 77,1% do PIB de endividamento corresponde a R$ 7,3 trilhões. Esse patamar é muito elevado para os países emergentes, cuja média é de 65% de endividamento. Isso aumentaria nossos indicadores de risco financeiro e afugentaria investimentos externos.

Tudo seria fácil, se não fossem as dificuldades, como diria Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, o humorista Barão de Itararé. Para viabilizar o Bolsa Família por quatro anos, antes mesmo de tomar posse, com uma oposição de extrema direita rosnando na porta dos quartéis e pedindo intervenção militar, Lula precisa contar com amplo apoio no Congresso. Sua bancada pode chegar a 139 deputados e 15 senadores. Ou seja, é impossível aprovar qualquer coisa sem os partidos de centro que o apoiaram no segundo turno e o Centrão. Além, disso, há 172 deputados da base bolsonarista que não se elegeram e são feras feridas no plenário da Câmara, que somente Arthur Lira pode controlar.

O senso comum é de que um acordo com Lira seria construído com base na sua reeleição à Presidência da Câmara, mas isso é considerado favas contadas. Ou seja, ocorreria mesmo que Lula estivesse articulando outro nome para comandar a Casa. O acordo seria outro: trocar o Bolsa Família pela manutenção do orçamento secreto durante os quatro anos. Mesmo assim, há quem duvide do acordo, como o vice-líder do PP, Doutor Luizinho (RJ): “Por que entregar quatro anos se o Orçamento da União precisa ser negociado todo ano?”

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-pec-da-transicao-troca-o-bolsa-familia-pelo-orcamento-secreto/

Foto: reprodução / Flickr

A militância pró-mercado da imprensa já não comove um Brasil arrasado pelo sofrimento

The Intercept Brasil

Diário do Brazil, 21 de setembro de 1884: o país caminhava para finalmente decretar a abolição quando o periódico estampou o terror do mercado com a futura libertação de milhares de pessoas: “A desconfiança é geral. O capital se retrai”. Fomos o último país do mundo a dar fim ao sistema escravocrata.

O Globo, 26 de abril de 1962: o mercado chorava e rangia os dentes com a criação do 13º salário mínimo, que virou lei em julho de 1962 no governo do presidente João Goulart: “desastroso”, dizia a manchete. O 13º era uma demanda antiga de trabalhadores como ferroviários e metalúrgicos cansados de receber somente um panetone e um vinho barato como gratificação no final do ano.

Folha de S.Paulo, 11 de novembro de 2022: após um breve discurso no qual Lula criticou as regras fiscais do Brasil e sugeriu um Bolsa Família fora do teto de gastos, o periódico estampou: “Citi diz que mercado pode ter se enganado em relação a Lula”. No mesmo dia, o jornal publicou um editorial cravando, apenas duas semanas após a eleição, que o presidente eleito “conseguiu derrubar grande parte das esperanças de que seu governo vá adotar uma política econômica racional e socialmente responsável”. “Mau começo” é o título do texto.

COMO PODEMOS VER, a instituição mercado parece ser ainda mais frágil do que o candidato derrotado à presidência da República, cujos olhos estão marejados desde a noite de 30 de outubro (embora o Citibank tenha tido o maior lucro em 10 anos em 2021, quando enfrentávamos o auge da pandemia). Bastou o primeiro “se retrair” e parte dos jornais retomou o papel de arautos do fim do mundo.

Mas, depois de um impeachment vergonhoso; da prisão e impedimento de candidatura de Lula; de quase 700 mil mortos pela covid-19; de o ministro Paulo Guedes querer combater o vírus “com reformas”; depois do aumento do assassinato de pessoas negras mesmo durante o lockdown; depois das filas dos caminhões de lixo para obter comida; depois do desespero das pessoas sem acesso a oxigênio nos hospitais; depois da inauguração do touro dourado da B3 no centro enquanto milhões padeciam… não dá simplesmente para sentir dó de um mercado quase sempre refratário ao sofrimento da masileira.

E aqui é preciso perguntar: o que entendemos por mercado? Essa instituição é, muitas vezes, tratada pela imprensa como um ente abstrato e quase fantasmal. Ou, no extremo oposto, como uma rede supostamente homogênea que conecta desde os maiores clientes e altos funcionários de um grande banco a uma cidadã de classe média que guarda o pouco dinheiro que resta em uma aplicação financeira qualquer.

Há nos dois tratamentos uma mistura de enganação e de hipocrisia. Porque o mercado é coisa concreta – e é extremamente hierarquizado em seus interesses e poderes. É, a grosso modo, o conjunto dos cinco maiores bancos do Brasil e mais um punhado de grandes fundos de investimento. E é esse mercado que esperneia diante da possibilidade de repartir uma parte do orçamento público que captura (de dinheiro de impostos, sobretudo) com aqueles que não possuem esse poder de chantagem – e não conseguem expressar suas vontades nos espaços dos editoriais.

Se esse mercado está sempre tão à vontade para apitar sobre questões que interferem na vida – e na morte – da população, vale perguntar:

Onde estava o mercado quando milhares de famílias foram despejadas durante a pandemia?

Onde está o mercado enquanto pessoas negras são continuamente dizimadas?

Onde está o mercado enquanto diversos povos indígenas são mortos e/ou sofrem ameaças de garimpeiros?

Onde estava o mercado quando, nos últimos meses, o candidato derrotado saiu explodindo teto, parede e piso de gastos?

Por qual razão o mercado realiza a todo momento uma espécie de chantagem quando projeta qualquer mínima  chance de uma economia não voltada somente para atender aos seus próprios gemidos?

Se imprensa e mercado se incomodam com o valor de R$ 175 bilhões que seriam empregados anualmente para o pagamento de R$ 600 do Bolsa Família, como pensar nos cerca de R$ 100 bilhões gastos, também anualmente, somente para cobrir os custos do Judiciário? E o que dizer da tolerância com os cerca de R$ 42 bilhões líquidos pagos a militares da reserva e a seus familiares somente em 2020, como mostra esse texto de Felipe Betim?

Sobre que setores na prometida reforma administrativa e previdenciária precisamos mesmo falar? Que superprivilégios (e eles são bastante desiguais na administração pública) deveriam ser urgentemente revistos? Por que os rendimentos dos superricos continuam sendo menos taxados do que os da população mais pobre? E por que lucros e dividendos não são taxados de maneira justa no Brasil?

É claro que não dá para fazer uma leitura binária de um assunto tão tentacular. Ainda que timidamente, a heterogeneidade desse mercado se manifesta, com um ou outro CNPJ interessado nas questões sociais. Mas é justamente binarizando o tema – sendo tchutchuca com o mercado e tigrona com as políticas públicas de combate à pobreza – que a imprensa trata o assunto na maioria das vezes.

Lembro bem quando, em 7 de abril de 2021, nomes importantes do empresariado brasileiro se reuniram para jantar com Jair Bolsonaro em um rega-bofe à base de champanhe Veuve Clicquot no Jardim América, em São Paulo. Estavam lá pessoas como Rubens Ometto, da Cosan, Flávio Rocha, do Grupo Guararapes Riachuelo, Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, o “Tutinha” da Jovem Pan, e Paulo Skaf, ex-Fiesp. Bolsonaro, acompanhado pelos ministros da Economia Paulo Guedes e da Saúde Marcelo Queiroga, esculhambou medidas de isolamento e chamou governadores a favor do lockdown de “vagabundos”. Foi ovacionado.

Naquele dia apenas, o país registrou 3.733 mortes por covid-19. No podcast Café da Manhã, da Folha, uma jornalista disse que os empresários não eram ideológicos, mas “pragmáticos”.

Ao lado de Marcelo Queiroga, ministro da Saúde, Paulo Guedes, ministro da da Economia dá entrevista após jantar com empresários e o presidente Jair Bolsonaro, na casa do empresário Washington Cinel em São Paulo (SP).

O ministro da Economia Paulo Guedes – o mesmo que sugeriu combater o coronavírus com reformas – fala à imprensa após jantar em que Jair Bolsonaro recriminou medidas de contenção da pandemia de covid-19. 

Foto: Mathilde Missioneiro/Folhapress

‘Aprendam a repartir o pão’

Não tenho dúvida de que o sofrimento coletivo pelo qual passamos – e que infelizmente não era uma novidade para milhões de pessoas – deixou alguns aprendizados necessários. Entre eles, a clareza de que desigualdade social não é uma abstração, mas uma realidade que define nossa vida, nossa morte, nosso gozo e nossa dor.

Talvez, justamente por isso, nos deparamos com um fato que me parece inédito nessa nova “retração” do mercado após declarações sobre gastos sociais: as reações ao drama repercutido pelos editoriais foram majoritariamente desfavoráveis à imprensa e ao mercado. Em redes sociais e nas caixas de comentários das matérias, a maioria das manifestações observava, em que se pese a necessidade do controle da inflação e responsabilidade fiscal, que um país arrasado pela incompetência e pilhagem não pode continuar a responder prioritariamente a um clube seleto – que não se incomoda com o fato de os 10% mais ricos ganharem quase 60% de toda a renda do Brasil, segundo o World Inequality Lab.

No Instagram da Folha, os comentários no post que critica a declaração de Lula expressam o espanto e a raiva de leitoras e leitores. “Eu fico impressionada como a Folha não se constrange em naturalizar a fome num país que produz riqueza como o Brasil”, disse Gabi da Pele Preta.

No Twitter, outros tantos seguem a mesma linha: “Não adianta espernear, o combate à fome será prioridade no governo Lula. Esse é o recado do Leonel Brizola para o mercado (Faria Lima). Engulam o choro e aprendam a repartir o pão!”, escreveu Cássia Andrade em um tuíte acompanhado por um discurso de Brizola, falecido em 2004. “Teto dos gastos e Paulo Guedes. Guedes furou o teto dos gastos por quatro anos. Gerou um rombo nas contas públicas. Por que o ‘mercado’ e a grande imprensa nunca cobraram nada dele? Por que protegem tanto Guedes?”, questionou Uallace Moreira.

Desigualdade social não é uma abstração, mas uma realidade que define a nossa vida, nossa morte, nosso gozo e nossa dor.

No UOL, o jornalista Chico Alves escreveu que a “Devoção da imprensa ao ‘mercado’ não faz bem ao Brasil”. Monica de Bolle, economista e professora da Universidade Johns Hopkins, foi sintética: “e que esses últimos quatro anos sirvam para mostrar ao jornalismo econômico que sua relevância depende do entendimento de que a população que não trabalha no mercado não está interessada em análise econômica de elevador e sem compromisso com o país”.

Ela está coberta de razão: o jornalista que se comporta como ativista da bolsa de valores deixa de atuar como mediador entre instituições e população, função que, pelo menos em tese, deveria cumprir.

O mercado, por exemplo, tem relação direta com o fato de uma mãe precisar atuar como doméstica na pandemia e ainda ter que levar seu filho para o trabalho. O mercado tem relação direta com o fato de essa mulher perder o seu filho para o racismo. Não precisamos que os jornais nos digam isso – eles nunca disseram, na verdade. Aliás, essa é outra maneira de lembrar que responsabilidade fiscal e responsabilidade social andam juntas, ainda que não exatamente do jeito que costumamos ser alertados sobre esse fato.

Mas nós passamos por uma inflexão enquanto sociedade – e tenho a impressão de que setores relevantes de nossa imprensa ainda não compreenderam isso. Não tenho dúvidas de que mudanças na postura de diversos veículos (sobre racismo, xenofobia, misoginia, entre outros temas) nasceram da pressão do público.

Um exemplo eloquente aconteceu após a divulgação de uma capa do jornal Aqui PE, do Diário de Pernambuco. Falei a respeito dele no meu último livro e o trago também aqui: em 1° de setembro de 2017, o Aqui PE publicou uma foto com a imagem de uma mulher negra morta, caída no chão e com parte da calcinha e das nádegas à mostra. Dizia a manchete: “Flanelinha assassinada a pauladas no Recife Antigo”. A imagem das regiões íntimas de Diana gerou reações por parte de diversos setores da sociedade. Vinte e cinco entidades ligadas à defesa dos direitos das mulheres e coletivos que atuam como observatórios da mídia publicaram uma nota de repúdio. A seguir, um trecho:

Ao reforçar estereótipos de gênero, retroalimenta uma cadeia de argumentações misóginas, racistas e classistas, as quais podem desembocar num amplo feixe de práticas violentas. O Aqui PE precisa se retratar publicamente e manter uma linha editorial coerente com o jornalismo, enquanto campo mediador de sentidos. Do contrário, continuará apenas alimentando ódio e manchando essa profissão tão nobre e relevante para a vida em sociedade.

O caso chegou ao Ministério Público de Pernambuco, que instaurou uma ação civil pública. A partir dela, foram acertadas as etapas da retratação e reparação que o jornal deveria cumprir. Assim, o Aqui PE publicou um “Erramos” na capa. Depois, publicou uma série de matérias sobre direitos humanos, com a violência contra mulheres abrindo o especial. Finalmente, jornal e entidades que assinaram a nota se comprometeram a realizar um seminário sobre direitos humanos para profissionais e estagiários.

É um caso que ilustra bem: uma sociedade atenta e cansada da militância jornalística antimulheres, antinegros, antipobres consegue mudar a qualidade daquilo que é dito e visto sobre nós. Uma sociedade cansada da militância jornalística pró-mercado pode fazer o mesmo.

*Recentemente, o jornalista Rodrigo Alves, do podcast Vida de Jornalista, reuniu profissionais de todo país (tive a sorte de estar entre elas e eles) para perguntar o que esperar do jornalismo após essas eleições e o que aprendemos nesses terríveis anos com Bolsonaro. Recomendo a escuta e atenção especial ao que diz minha colega Nayara Felizardo, aqui do Intercept, sobre a necessidade da descentralização das coberturas jornalísticas.

*A pesquisa sobre as capas de jornais trazendo antigas notícias sobre o mercado foi realizada por Marcelo Moutinho.

Matéria publicada originalmente no Intercept brasil


Foto: reprodução: Hugo Barreto / Metrópoles

Transição tenta conquistar votos de governistas pela aprovação de PEC

Sandy Mendes | Metrópoles

Na tentativa de conseguir aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, um grupo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) busca aliados do atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), para negociar apoio. A proposta garante o pagamento de R$ 600 para beneficiários do Auxílio Brasil (que voltará a se chamar Bolsa Família) e o aumento real do salário mínimo.

A minuta do texto foi entregue ao Senado Federal na última quarta-feira pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB), coordenador transição. O relator do Orçamento de 2023, Marcelo Castro (MDB-PI), recebeu o documento.

O PT trabalha para montar uma “força-tarefa” pela PEC. Para isso, deu aos aliados a função de se dividirem para conversar com o Congresso e negociar a aprovação do texto, que começará a tramitar no Senado. O tempo hábil da proposta é curto, já que as atividades do Legislativo devem encerrar em 18 de dezembro.

A chegada de Alckmin nesta terça-feira (21/11) a Brasília será também no sentido de reforçar o contato com parlamentares. A ideia é que ele tenha uma série de conversas com congressistas, no sentido de ganhar apoio para a aprovação da proposta.

Além disso, a ideia é que o bloco de apoio dentro do Congresso trabalhe intensamente nos próximos dias. Entre os principais articuladores estão: relator Marcelo Castro, senadores Paulo Rocha (PT-PA), líder do partido na Casa Alta, Jaques Wagner (PT-BA) e Wellington Dias (PT-PI), escolhido por Lula para negociar a peça orçamentária do próximo ano.

Ao Metrópoles Dias afirmou que Castro estará junto da nova bancada eleita para dialogar acerca do texto:

“Junto com equipe Técnica e relator do orçamento, o [senador] Marcelo Castro está ajudando nas apresentações e diálogo com os mais mais próximos ao governo eleito e também com líderes da oposição, para o convencimento e entendimentos com o objetivo de viabilizar a aprovação da PEC”, disse.

Nesta segunda-feira (21/11), a bancada do PT se reuniu para discutir as medidas que podem ser incluídas ou retiradas da proposta. Há, no momento, uma incerteza sobre por quanto tempo o montante ficaria de fora do teto. Os parlamentares discutem, por exemplo, a alternativa de fixar o prazo em quatro anos para excepcionalizar o benefício do Bolsa Família. O teto de gastos é a regra fiscal que limita o crescimento das despesas da União à inflação do ano anterior.

Antes, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirmou que “o mais provável” é que a retirada das despesas com o Bolsa Família do teto de gastos ocorra por quatro anos, o período completo do mandato conquistado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Geraldo Alckmin (PSB). Expoentes do Centrão, como o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), insistem em aplicar a medida apenas no ano que vem.

PEC alternativa

O senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) apresentou, na segunda-feira (21/11), uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) alternativa ao texto da PEC da Transição.

A medida apresentada pela equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prevê que quase R$ 200 bilhões fiquem fora do teto de gastos. A proposta de Vieira defende o limite de R$ 70 bilhões fora.

No texto, o parlamentar afirma que a redução de R$ 175 bilhões para R$ 70 bilhões seria suficiente para a ampliação do Bolsa Família, garantindo o valor de R$ 600 mensais, mais R$ 150 por criança de até 6 anos. O objetivo do documento é assegurar o pagamento de R$ 600 mensais aos beneficiários, além de garantir uma quantia adicional, no valor de R$ 150, a ser paga para famílias com crianças menores de 6 anos. Estima-se que só essa medida chegue a R$ 175 bilhões.

Articulações

O líder do PT na Casa Alta, senador Paulo Rocha, deverá conversar com o também líder do governo de Bolsonaro, Carlos Portinho (PL-RJ), que se mostra relutante em aprovar o projeto que ele tem considerado como “PEC da Gastança” e do “cheque em branco”. Nas redes sociais, Portinho tem feito duras críticas à PEC, mas defende a manuntenção do benefício social em R$ 600, uma vez que já fazia parte da pauta de releeição de Bolsonaro.

“Queremos o auxílio de 600, mas não há cheque em branco como cogita a PEC do Fim do Teto! Não vamos quebrar o Brasil ou condenar nosso futuro”, escreveu no Twitter.

O partido do futuro presidente planeja, ainda, uma conversa isolada com os membros da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). A PEC precisará passar pelo colegiado antes de ser levada ao plenário dos senadores. Além disso, ela terá de ter o apoio de, no mínimo, um terço da Casa, 27 senadores.

De acordo com o senador eleito Wellington Dias, a expectativa para que a PEC seja aprovada é alta. Isso porque o trabalho, segundo ele, está sendo construído em “sintonia” com o Legislativo.

“O nosso trabalho é feito em sintonia com os presidentes das duas Casas legislativas”, afirma Dias.

O ex-governador do Piauí também afirma que o novo governo conta com a ajuda de parlamentares que já presidiram o Legislativo e foram líderes, além de presidentes de partidos e governadores.

O PT também tem como aliada a senadora Simone Tebet (MDB-MS). A parlamentar já presidiu a CCJ e hoje integra o grupo de transição de Lula, na área de desenvolvimento social.

Segundo Dias, espera-se que a PEC seja aprovada até o final de novembro pelos senadores e siga para a Câmara dos Deputados no começo de dezembro.

Matéria publicada orginalmente no Metrópoles


Charge parece que os golpistas estão muito animados. que nada . é gol da seleção

Revista online | Confira charge de JCaesar sobre Copa do Mundo e manifestantes

Sobre chargista

* JCaesar é o pseudônimo do jornalista, sociólogo e cartunista Júlio César Cardoso de Barros. Foi chargista e cronista carnavalesco do Notícias Populares, checador de informação, gerente de produção editorial, secretário de redação e editor sênior da VEJA. É autor da charge publicada pela Revista Política Democrática Online.

** Charge produzida para publicação na Revista Política Democrática Online de outubro/2022 (49ª Edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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Foto reprodução: Nádia Pontes / DW Brasil

Joenia Wapichana: "Foi um mandato de resistência à boiada"

Nádia Pontes | DW Brasil

Perto do fim de seu mandato como deputada federal, Joenia Wapichana, a primeira mulher indígena eleita para o Congresso, sabia que teria uma estreia difícil. Líder do seu partido (Rede) na Câmara, a advogada diz ter evitado muita "tratorada" e "boiada" nos embates com deputados, em referência a projetos de lei considerados anti-indígenas e antiambientais.

Formada em Direito pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), ela atua há décadas como assessora jurídica em movimentos indígenas. Em 2008, foi a primeira advogada indígena a defender no Supremo Tribunal Federal (STF) o polêmico caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Durante a recente 27ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP27), no Egito, ela conversou com a DW sobre suas expectativas em relação a um Ministério dos Povos Originários, promessa de campanha do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva que foi confirmada após a vitória dele na corrida presidencial contra Jair Bolsonaro.

"Esperamos, principalmente, um avanço na proteção territorial", disse Wapichana sobre a demarcação de terras indígenas, paralisada sob Bolsonaro.

"Nós esperamos muito tempo por uma recomposição do Estado brasileiro que reconhecesse a importância dos povos indígenas. Então esse espaço tem que ser de respeito. Os povos indígenas têm toda a capacidade hoje de estarem fazendo e encaminhando suas próprias demandas", afirmou.

DW: A senhora está chegando ao fim do mandato de deputada federal, eleita como a primeira mulher indígena na Câmara. Como foram esses quatro anos de trabalho sob o governo de Jair Bolsonaro?

Joenia Wapichana: Foram difíceis, mas quem disse que seria fácil? Dentro de um governo fascista, negacionista, dentro de um governo anti-indígena, antiambientalista.

Foi um momento de resistência, de resiliência, mas também de mostrar a capacidade de uma indígena vinda de Roraima, um estado que rebate direitos indígenas como demarcação das terras e que tem posicionamento antiambiental. Um estado com uma série de casos a serem resolvidos, como a invasão dos garimpeiros na Terra Indígena Yanomami.

A minha atuação parlamentar, a partir do meu estado, do meu povo, sendo indicada a partir de uma assembleia indígena, mostrou que é possível fazer uma política diferente. Uma política que vem trazer o olhar indígena, a questão do valor da coletividade, de manter a floresta em pé. Como indígena originária, eu diria que foi um mandato de resistência. Não tem nome mais apropriado que esse.

Tentamos resistir à boiada, à tratorada, seguramos o máximo possível todos os projetos antiambientais e anti-indígenas. Conseguimos segurar muitas coisas. Acho que esta nova legislatura que vem aí vai continuar sendo uma questão de resistência, mas também propositiva.

O meu mandato contou muito também com o apoio da sociedade civil organizada, que nos deu a força para ser coerentes com os compromissos que nosso país precisa avançar.

Mesmo com essa maioria bolsonarista dentro do Congresso, dentro da Câmara, onde eu estava, a gente conseguiu algum espaço para propor projetos de extrema importância.

Aqui na Conferência do Clima eu falei sobre isso, sobre o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) da Segurança Climática. Foi fruto de uma mobilização de pessoas em todo o país. Nós conseguimos aprovar o relatório na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no mês passado.

Foram muitos embates com a bancada ruralista?

Muitos. Mas a gente conseguiu manter alguns direitos. Lutamos no momento que era mais necessário em favor dos povos indígenas. Fui relatora do projeto que foi aprovado, o plano de enfrentamento à covid.

Além do negacionismo de Bolsonaro neste desgoverno, a gente enfrentou anos de uma pandemia que matou muitos brasileiros e afetou também as comunidades indígenas. Então, o fato de eu ser parlamentar permitiu que outras autoridades pudessem ouvir os povos indígenas e a gente pudesse construir uma política para salvar vidas.

O mandato teve essa visão de trazer os povos indígenas não só pela voz, pelo simbolismo, mas pela capacidade que nós temos de representar o nosso povo politicamente dentro do Parlamento brasileiro e, assim, usar as ferramentas que o Parlamento nos dá.

Congresso que assume no ano que vem contará com duas mulheres indígenas eleitas e um grande número de candidatos que se elegeram apoiando Bolsonaro. O que esperar desta legislatura?

A gente já tinha um Congresso, digamos, bastante pesado. Infelizmente, o Executivo também era pesado. O governo fechou o diálogo com povos indígenas, rompeu com toda a sociedade civil, fechou participação.

Agora vem o governo Lula, que eu defendi, mesmo sendo ameaçada lá no meu estado de Roraima por garimpeiros. Mas eu vejo que é um novo governo que vai dar possibilidade de diálogo. 

Agora a gente tem uma questão essencial, que é o presidente Lula no Executivo, que é uma pessoa que tem demonstrado abertura para o diálogo, principalmente, e maturidade muito importante de exercer uma presidência e juntar pessoas.

Espero que esse seja o diferencial desta legislatura em que, antes mesmo de ele tomar posse, já inicia diálogo com os partidos. É assim que é a política, uma conversa, um diálogo, para ter espaço para propor e decidir.

A partir do Executivo, é possível trabalhar políticas públicas, reformar, resgatar, recuperar agendas importantes, como a socioambiental, indígena, climática. Dá para fazer ações e programas positivos no sentido de proteger a floresta, os guardiões que estão na ponta.

Eu sei que vai ser um desafio muito grande. No Brasil, como em todo o mundo, existe uma crise social, uma crise econômica, que a gente precisa conciliar. Mas só o fato de ter um compromisso afirmado, e reafirmado pelo presidente aqui na COP, nos dá a clareza que vai ser importante ele ali, mesmo tendo um Congresso majoritariamente tendo sido eleito pelo bolsonarismo.

Como a senhora imagina um Ministério dos Povos Indígenas, algo inédito na história do país?

Primeiro, que precisa ser em construção com os povos indígenas. Um espaço de articulação, de fortalecimento das políticas públicas, de direito, de implementação. Nós temos muitos planos, mas falta implementação. 

Esperamos diálogo com os povos indígenas, que vêm de diferentes regiões, biomas, culturas. Esperamos, principalmente, um avanço na proteção territorial.

Nós esperamos muito tempo por uma recomposição do Estado brasileiro que reconhecesse a importância dos povos indígenas. Então esse espaço tem que ser de respeito. Os povos indígenas têm toda a capacidade hoje de estarem fazendo e encaminhando suas próprias demandas.

Foram quatro anos de desmonte de políticas públicas e que merecem urgência. Seria o ministério para fortalecer a relação dos indígenas com o Estado brasileiro.

https://www.youtube.com/watch?v=b1XbbOqIeWA

Matéria publicada originalmente no DW Brasil


Sede da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) - Foto: Agência Brasil

GT de Comunicação que tirar EBC e Correios da lista de privatizações e fala em "BBC brasileira"

Cristiane Sampaio,* Brasil Fato

O Grupo de Trabalho (GT) de Comunicação que integra a equipe de transição de governo vem discutindo a retirada dos Correios e da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) da lista de privatizações.

As duas empresas entraram na mira do ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, em meio a uma lista de dezenas de empresas públicas ameaçadas de desestatização pela política neoliberal do atual governo. A proposta, entretanto, enfrenta ampla resistência de setores trabalhistas, populares e acadêmicos especialistas no assunto.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a pesquisadora Helena Martins, integrante do GT e professora do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará (UFC), explicou que o debate ainda será amadurecido dentro do grupo, que, assim como os demais GTs da transição, trabalha atualmente em um diagnóstico da sua respectiva área da administração federal para produzir um relatório final que será entregue ao futuro governo.

A ideia é que a gestão Lula assuma a presidência tendo um raio X da atual situação do Poder Executivo federal, que passou por diferentes reformas administrativas nos últimos anos, com deslocamento e junção de órgãos, bem como com o desmonte de uma série de políticas públicas.

"Há uma compreensão da necessidade de uma empresa pública de comunicação. O próprio Lula falou isso na campanha, [falou] que o Brasil precisa ter uma BBC. Tem todo um cenário hoje de produção audiovisual diversificada, espalhada nas periferias do Brasil, etc. A própria OCDE fez um relatório sobre análise de radiodifusão e telecomunicações e colocou como uma das recomendações para que o Brasil venha a integrar a OCDE, o fortalecimento do seu sistema público [de comunicação]", argumenta Helena Martins.

"Sendo assim, não teria o menor sentido o Brasil caminhar no contrário disso, inclusive no contrário do que diz a Constituição em relação à complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal. Então, há uma perspectiva forte de se afirmar o caráter público da EBC", emenda Helena, ao citar o artigo 223 da Carta Magna.

Criada em outubro de 2007, durante a segunda gestão Lula (2007-2010), a EBC nasceu para dar materialização a esse princípio constitucional. A empresa teve a criação chancelada, primeiro, pela Medida Provisória (MP) 398 e, na sequência, pelo Decreto nº 6246. Aprovada pelo Congresso Nacional, a MP se converteu depois em Lei nº 11.652/2008, que oficializou o nascimento da estatal.

Ficaram a cabo da EBC os canais de rádio e TV que até então eram administrados pela Radiobras, estatal extinta naquele ano. Atualmente a estatal responde pela TV Brasil, além de diferentes rádios e portais. A empresa viveu um desmonte especialmente entre os governos Temer (2016-2018) e Bolsonaro (2018-2022), com extinção do Conselho Curador, política permanente de censura e perseguição a jornalistas, entre outros problemas relacionados ao aparelhamento político da estatal.

"Além disso, a mistura que o governo Bolsonaro fez entre TV Brasil e NBR [TV de perfil governamental], acabando com o caráter público da EBC, é uma mistura muito criticada, por tudo que foi dito e visto até aqui", acrescenta Helena Martins.

A meta de privatizar a empresa surgiu, então, como o ápice do movimento de desmonte que tem atingido a EBC. Apesar de carecer ainda de uma decisão final do GT das Comunicações, a retirada da estatal da lista de privatizações tende a receber espaço no relatório final que será produzido pelo grupo.

Na última sexta-feira (18), Helena Martins declarou, em sua conta no Twitter, que ainda não há decisões definitivas a esse respeito, mas que o assunto está sendo discutido.

A equipe tem se reunido diariamente no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em Brasília (DF), desde o último dia 11. A rotina dos trabalhos inclui a escuta de uma série de interlocutores de órgãos integrantes da arquitetura do universo da comunicação no âmbito da administração. Já foram ouvidos pelos especialistas, por exemplo, a Secretaria de Radiodifusão, a Secretaria de Telecomunicações e o presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Carlos Manuel Baigorri.

Edição: Thalita Pires

*Matéria publicada originalmente no Brasil de Fato


Santos Cruz é um dos generais mais respeitados de sua geração e teve passagem-relâmpago pelo governo Bolsonaro| Foto: reprodução BBC News Brasil /REUTERS/ADRIANO MACHADO

Governo Lula não precisa temer militares, diz general Santos Cruz

Leandro Prazeres | BBC News

É nesse clima de tensão que o general da reserva Carlos Alberto Santos Cruz disse em entrevista à BBC News Brasil que o novo governo do PT não tem motivos para temer a atuação dos militares nos próximos quatro anos. Ele diz apostar em uma relação harmônica entre Lula e os militares.

"Do meu ponto de vista, não precisa temer nada. Nem o governo e nem a população", disse Santos Cruz.

O general da reserva é um dos militares mais respeitados de sua geração. Comandou o contingente militar de missões de estabilização da Organização das Nações Unidas no Haiti e na República Democrática do Congo. Em 2018, foi um dos primeiros oficiais de alta patente a apostar na candidatura vitoriosa de Bolsonaro em 2018.

Em janeiro de 2019, foi nomeado como ministro da Secretaria de Governo da Presidência, mas ficou no cargo por apenas seis meses. Em junho daquele ano, foi exonerado por Bolsonaro após virar alvo de ataques da chamada ala ideológica do governo na época comandada pelo escritor Olavo de Carvalho, morto em janeiro deste ano.

Desde sua saída, Santos Cruz vem tecendo críticas ao atual presidente e, neste ano, chegou a colocar seu nome à disposição para formar uma chapa à Presidência ao lado do ex-juiz federal e atual senador eleito Sergio Moro. Mesmo na reserva, ele é frequentemente procurado por interlocutores interessados em saber como funcionam as engrenagens das Forças Armadas do Brasil às quais ele serviu por mais de quatro décadas.

À BBC News Brasil, Santos Cruz também disse que acreditar que Lula tem experiência política e saberá lidar com as Forças Armadas e também rechaçou a tese difundida por apoiadores de Bolsonaro e mencionada em uma nota assinada pelos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica há duas semanas segundo a qual as Forças Armadas teriam uma função "moderadora" na República brasileira.

"Qualquer interpretação de que as Forças Armadas são um poder moderador está completamente errada", disse.

Confira os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Qual é a origem das desconfianças e tensões dos militares das Forças Armadas em relação ao presidente eleito Lula?

Santos Cruz - Eu não vejo essas tensões porque nós tivemos anteriormente dois mandatos do atual presidente eleito e não houve nenhuma dificuldade de relacionamento. Houve respeito institucional e houve um orçamento regular. O Brasil, naquele período, participou de missões de paz dentro do esforço de política exterior do Brasil. Houve vários projetos (estratégicos) das Forças Armadas que são daquela época. Temos todas as condições de contornar esse período de política conturbada, de muito fanatismo político, e termos um relacionamento respeitoso sem maiores problemas.

BBC News Brasil - Já houve manifestações de diversos militares que não veem com bons olhos a eleição do presidente Lula. Por que, na sua opinião, parte dos militares não se sente satisfeita com a eleição do presidente Lula?

Santos Cruz - Em primeiro lugar, o militar como eleitor tem direito de votar em quem ele quiser. Ele tem direito de gostar ou não da eleição, de ficar satisfeito ou não. Isso é no nível de aceitação individual. Agora, é importante separar o que é individual do que é institucional. Sem dúvida nenhuma, no meio militar teve gente que votou no atual presidente Bolsonaro e gente que votou no presidente Lula. Outra coisa é a aceitação institucional. Institucionalmente, você não pode ter restrição à eleição. É preciso fazer essa diferença. Eu vejo que todos, não só os militares, mas todas as pessoas em carreiras de Estado, mesmo aquelas que tenham votado em outro candidato, precisam aceitar o resultado da eleição. Isso está um pouco difícil para algumas pessoas, mas não vejo dificuldade institucional.

BBC News Brasil - O novo governo do presidente Lula precisa temer os militares de alguma forma nesses próximos quatro anos?

Santos Cruz - Eu não posso falar pelos militares porque eu sou da reserva. Quem dirige os destinos das instituições militares hoje são os seus comandantes, que são pessoas extremamente capacitadas e preparadas [...] que chegaram à situação de comandante por mérito. [...]

O que eu falo é pessoal e baseado na cultura militar em que eu fiquei por mais de 45 anos [...] Eu acho que o povo brasileiro tem que continuar confiando, como sempre fez, nas instituições e nos comandantes atuais. É importante que essas instituições se comportem de forma apolítica, sem preferência de nomes e de partidos. Isso é fundamental para toda a sociedade brasileira. Isso vale não só para a instituição militar, mas para outras como a Receita Federal, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal [...] Elas precisam ter esse comportamento porque a briga política sempre vai existir de quatro em quatro anos. Mas as instituições do Estado têm que dar essa tranquilidade para a nossa população.

BBC News Brasil - O senhor disse que a população brasileira precisa continuar confiando nas Forças Armadas, mas o governo do presidente Lula pode confiar nas Forças Armadas?

Santos Cruz - Todos os governos podem confiar nas Forças Armadas. Todos. Comecei a votar em 1974 e todos os governos tiveram o trabalho das Forças Armadas em prol da nossa população em todos os momentos de crise…

Apesar do relativo bom relacionamento entre Lula e os militares em seus dois primeiros mandatos, é grande a expectativa sobre como será essa relação em seu terceiro governo

BBC News Brasil - Mas general, existe uma desconfiança em relação ao compromisso das Forças Armadas na manutenção do regime democrático nos próximos quatro anos por conta do histórico recente de proximidade entre os militares e o governo do presidente Bolsonaro que, em vários momentos, colocou em xeque o sistema eleitoral. Por isso, volto a perguntar: o presidente Lula precisa temer o compromisso das Forças Armadas com o regime democrático?

Santos Cruz - Do meu ponto de vista, não precisa temer nada. Nem o governo e nem a população.

Você está correto na sua interpretação de que houve muita confusão do governo com as Forças Armadas. Isso aconteceu e a imagem transmitida era de vinculação das Forças Armadas com o governo. Só que isso não é real. Isso foi fabricado porque o tempo todo o discurso (de Bolsonaro) foi 'o meu Exército', 'sou o comandante-em-chefe'. Tudo isso foi transmitindo a ideia de que as Forças Armadas estavam vinculadas ao governo, à pessoa ocupando a função de presidente. Mas isso aí não é real.

As Forças Armadas têm o seu posicionamento que é constitucional. Acho que não só o próximo governo pode contar (com as Forças Armadas), mas este governo também pode contar com ela. Agora, não se pode contar com as Forças Armadas para sair da Constituição.

BBC News Brasil - Alguns números indicam que possa ter havido mais de 3mil militares em cargos dentro do atual governo. O presidente Bolsonaro usou os militares ou os militares usaram o presidente Bolsonaro?

Santos Cruz - Sem dúvida nenhuma, o presidente da República e toda a estrutura de governo convidaram um número muito grande de militares para participar do governo. Isso causou um desequilíbrio de representação social. O Brasil tem pessoas ótimas, especialistas em todas as áreas, inclusive nas Forças Armadas. Mas esse grande número desequilibrou e chamou a atenção da sociedade. Não são as pessoas que exploraram o governo. Foi o governo que causou esse desequilíbrio. As Forças Armadas como instituição jamais pleitearam posições no governo.

BBC News Brasil - A imagem dos militares sai melhor ou pior do governo presidente Bolsonaro?

Santos Cruz - Eu penso que sai um pouco desgastada pelo comportamento presidencial, sem dúvida nenhuma. Mas mesmo com algum desgaste, ela segue muito preservada.

BBC News Brasil - Quais os pontos mais sensíveis, na sua opinião, que deveriam ser observados pelo novo governo do presidente Lula para evitar tensões com os militares?

Santos Cruz - Eu não vejo muita dificuldade. Você tem que manter um orçamento, tem que manter os projetos estratégicos das Forças Armadas e tem que prestigiar a hierarquia e disciplina, que são a base das Forças Armadas. Tem que evitar qualquer discurso político no interior de unidades militares [...] O discurso tem que ser de incentivo profissional e não sobre política partidária [...] é preciso manter os projetos especiais, talvez até fazendo um orçamento fora do regular. É respeito institucional. Fui oficial no governo do presidente Fernando Collor de Mello que sofreu impeachment, no tempo do presidente Lula, da ex-presidente Dilma Rousseff, de Michel Temer e José Sarney e sempre houve um relacionamento bom e respeitoso. É isso que tem que ser feito. O atual presidente eleito sabe disso. Ele tem experiência de dois mandatos e sabe qual é o relacionamento com as Forças Armadas e como ele se mantém respeitoso.

BBC News Brasil - Em geral, a esquerda é criticada por supostamente tensionar as relações com os militares, mas as Forças Armadas vêm usando a ordem do dia referente ao dia 31 de março para celebrar a data em que ocorreu o golpe militar de 1964. O senhor acha que usar a ordem do dia nesse contexto contribui para esse tensionamento?

Santos Cruz - Sobre o 31 de março de 1964, eu tinha 12 anos de idade na época. Então, eu vivi dos 12 aos 33 anos de idade dentro do período dos governos militares. Eu tenho uma boa imagem daquela época. Só que isso também não significa que aquilo seja um modelo político a ser seguido. Não é. Foi um período de exceção. Temos que entender que por melhor que seja a imagem do período, aquele período não serve como modelo político porque foi uma época de exceção.

Tem que haver entendimento dos dois lados. [...] Estamos falando de um período que ocorreu há quase 60 anos. Era outro mundo, eram outras condicionantes políticas, outra política internacional, outras tensões internas.

Foi uma decisão daquela época e eu penso que, naquela época, foi a decisão correta. Eu sou dessa geração. Então, (fazer) uma análise agora, 60 anos depois, é completamente diferente. Agora, tem que haver entendimento dos dois lados. Só que como tem muita gente viva que participou (daquele período), particularmente o pessoal que era dos movimentos revolucionários de guerrilha, então ainda existem os problemas pessoais… ainda é uma história muito viva e precisa haver um pouco de tolerância e conversa.

BBC News Brasil - O senhor disse que, naquele contexto, o golpe de 1964 foi a decisão correta a se tomar. Hoje, sabe-se que durante esse período, que o senhor mesmo classificou como período de exceção, houve tortura, desaparecimentos, assassinatos. O senhor acha que essas práticas também foram corretas à luz daquele momento?

Santos Cruz - Claro que não. O que está errado está errado. Uma coisa é fazer uma análise política, outra coisa é pegar determinados fatos que aconteceram. É claro que está errado. Temos que ser muito honestos nesta análise.

BBC News Brasil - Recentemente, houve o lançamento de um filme chamado Argentina 1985, que conta a história do julgamento de membros da junta militar que comandou a Argentina entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80. Tenho duas perguntas. A primeira é: o senhor viu o filme? A segunda é: no Brasil, pela Lei da Anistia, esse tipo de julgamento não ocorreu. O Brasil errou ao não julgar os militares envolvidos em graves violações de direitos humanos durante o período da ditadura militar?

Santos Cruz - Em primeiro lugar, eu não vi o filme. Em segundo lugar, a sociedade argentina decidiu dessa forma. Já a sociedade brasileira decidiu pela anistia e eu acho que foi o correto porque você tem que pacificar o país [...] eu acho que o Brasil acertou na sua busca pela paz, pelo processo de anistia. Já a sociedade argentina, com outra característica, uma outra paixão política, com outra alma, decidiu de outra forma. Não vou comparar porque são sociedades distintas que decidiram por um caminho que elas acharam melhor.

BBC News Brasil - Na semana passada, comandantes das três forças militares divulgaram uma nota em que voltaram a usar o termo moderador para classificar a atuação dos militares dentro do dentro da democracia brasileira. Na Constituição Federal, porém, não existe poder moderador. Minha pergunta é: por que parte dos militares insiste em propagar a ideia de que as Forças Armadas seriam os moderadores da democracia brasileira?

Santos Cruz - Isso aí tem origem e consequências. Em primeiro lugar, nós tivemos uma interpretação de um jurista, o Ives Gandra Martins, que ressuscitou, faz algum tempo, a ideia de que as Forças Armadas seriam um poder moderador. O Brasil não tem poder moderador. O que está escrito na Constituição não dá nenhuma pista, nenhum direito explícito de que as Forças Armadas possam interferir no funcionamento dos outros poderes. Qualquer interpretação de que as Forças Armadas são um Poder Moderador está completamente errada, completamente equivocada. Qual é o nosso poder moderador? Nossa Constituição, nossas leis, nossos parlamentares, nosso Judiciário e nosso Executivo com todos os defeitos que eles têm. Eles são obrigados a procurar uma conciliação. Eles são obrigados a procurar a harmonia prevista na Constituição sem interferência da área militar.

BBC News Brasil - Na sua avaliação, os comandantes das três forças erraram ao utilizar o termo moderador para classificar o papel das Forças Armadas na democracia brasileira.

Santos Cruz - Eu teria que reler a nota agora. Eu olhei muito por cima. O termo traz esse trauma. Tem que ver se foi isso exatamente o que eles queriam dizer. Acredito que não foi utilizado com a ideia de interferência porque não tem como interferir. A população elegeu um novo Congresso. Então, esse Congresso tem que tomar consciência da atribuição dele e é isso que vai moderando e regulando o relacionamento. Então, eu não acredito que eles tenham colocado esse termo uma ideia de interferência.

BBC News Brasil - O Ministério da Defesa divulgou um relatório sobre o sistema eletrônico de votação do Brasil. Nenhuma fraude foi apontada, mas no dia seguinte, após repercussão negativa entre apoiadores do presidente Bolsonaro, o Ministério da Defesa soltou uma nota dizendo que, apesar de não ter encontrado nenhuma fraude, não poderia descartar a sua ocorrência. Como o senhor analisa a participação dos militares ao longo dessas eleições? Ela foi adequada ou contribuiu para tensionar o ambiente político?

Santos Cruz - Não foi adequada e eu acho que contribuiu para a confusão. O erro começa quando convidam as Forças Armadas para participar do processo. O outro erro é quando as Forças Armadas aceitam (o convite). A responsabilidade de transmitir segurança no processo para a sociedade brasileira é do TSE e não das Forças Armadas. Ele (TSE) tem um conjunto de instituições que fazem essa avaliação [...] Você tem a Unicamp, UnB, USP, partidos políticos, Polícia Federal [...] Não era o caso das Forças Armadas participarem. Muito menos num ambiente politizado.

Sobre o relatório técnico, eu não tenho conhecimento para analisar o parecer. Só que depois saiu uma nota que fala: 'Não posso comprovar, mas não posso descartar'. Num ambiente desses, você tem que ser muito mais taxativo. Você tem que dizer: 'Não existe condições de comprovar a fraude'. Porque essa é a dúvida da população. Você precisa deixar isso claro. E essa dubiedade dá chance para extremistas de um lado interpretarem de um jeito e os extremistas de outro interpretarem de outro. Isso acaba não colaborando com a pacificação das coisas.

BBC News Brasil - Na sua avaliação, os militares brasileiros estariam dispostos a embarcar em uma nova empreitada de Bolsonaro nas urnas, em 2026?

Santos Cruz - Então Não. De jeito nenhum. Não embarcaram antes e nem embarcarão depois. Agora, cada um tem sua opção política. Não tem nada de errado em um eleitor optar por um candidato ou por outro. Não podemos criticar um eleitor porque ele escolheu Bolsonaro, Lula, Simone Tebet, ou seja lá quem for. E não se pode nem criticar quem anulou o voto porque ele anulou o voto por não se sentir representado. Por isso tem a tecla de anulação. Então, eu acho que os militares nunca embarcaram, não vão embarcar em ondas pessoais e vamos respeitar todo mundo que votou num candidato ou em outro. Seja ele militar ou civil.

BBC News Brasil - Civil ou militar: qual o melhor perfil para o comando do Ministério da Defesa?

Santos Cruz - Civil ou militar? Que ele seja competente, seja ele civil ou militar. Não adianta você colocar um civil ou militar que seja incompetente.

BBC News Brasil - Além do senhor, um dos generais mais conhecidos do Brasil é o general da reserva Eduardo Villas Boas. Em 2018, ele publicou um tuíte que foi encarado por alguns analistas como uma ameaça ao STF às vésperas do julgamento de um recurso da defesa do ex-presidente Lula contra a sua prisão. Mais recentemente, ele voltou ao Twitter para se manifestar sobre a eleição do presidente Lula. Qual sua avaliação sobre a conduta de Villas Boas?

Santos Cruz - Villas Boas é uma pessoa por quem eu tenho uma amizade muito especial. Sobre aquela manifestação na época do julgamento no STF, a responsabilidade ficou com ele. Na época, apesar de ser comandante do Exército, ele disse em um livro que consultou os demais (membros do Alto-Comando do Exército), então mais tarde ficou parecendo uma coisa institucional. Mas na época em que ele fez (a postagem), explicou, não ficou institucional. E eu não acredito que o STF se intimidou com aquilo.

BBC News Brasil - Mas isso faz diferença?

Santos Cruz - Faz, porque tem gente que pensa que o STF votou o recurso por conta do tuíte. Não tenho a mínima sensação de que o STF se influenciou por aquilo. Agora, a manifestação mais recente dele de que reprovava a eleição do Lula, eu não vejo assim. Eu li e não achei tão clara essa reprovação. Ele falou mais sobre o nosso problema, essa disputa toda apesar de as eleições já terem acabado. Parece que não terminou.

Mas acho que tem que respeitar a eleição. A maioria do povo brasileiro votou e acho que tem que respeitar. Não tem motivo para não respeitar. Pode até cometer as dificuldades de aceitação de quem perdeu. Mas tem que respeitar essa eleição como todas as outras foram respeitadas. Villas Boas é um amigo, uma liderança muito grande, mas eu vejo dessa forma os tuítes dele de 2018 e de agora. No entanto, qualquer referência que possa confundir a população com a aceitação do resultado eleitoral, eu acho que dificulta o bom andamento.

BBC News Brasil - Não ficou claro para mim, general, qual é a sua opinião sobre o tuíte dele na época do julgamento do STF?

Santos Cruz - Acho que o tuíte dele não interferiu em nada o STF. Não é com um tuíte que você vai interferir no STF.

BBC News Brasil - Mas independente de ter interferido ou não, a dúvida é: a atitude dele como comandante do Exército na época foi correta ou não?

Santos Cruz - Olha, eu não vou analisar a correção porque ele estava numa função de comando onde há responsabilidades políticas e não só operacional. Eu não me manifestaria. Já ele se manifestou, mas tem que ver quais as condicionantes dele na condição de comandante de uma força armada que era diferente da minha que estava na reserva.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63711057