Day: novembro 21, 2022

Foto: Senado Federal

George Gurgel de Oliveira: O 20 de novembro, a população afrodescendente e os desafios da sociedade brasileira

Cidadania23*

Devemos aproveitar o mês de novembro para uma reflexão sobre o presente e o passado da sociedade brasileira em relação à sua história, desde a chegada da população negra como escrava, das suas lutas pela libertação e a realidade da população negra hoje no Brasil.

Saber como tudo isso se desenvolveu e os fundamentos da escravidão no Brasil, assim como o processo de libertação da escravatura até à atualidade, são desafios para avançarmos e superarmos a difícil realidade enfrentada pela população negra ainda hoje na sociedade brasileira.

As lutas de libertação da população negra

A escravidão africana, até meados do século XIX, era um dos fundamentos da vida econômica na América e na Europa. Fazia parte da estrutura das relações políticas, econômicas e sociais, assim como tornou-se base de acumulação de riqueza dos países europeus, inclusive da Inglaterra, berço da revolução industrial.

A cultura do racismo nasceu como uma maneira de exclusão dos povos africanos da vida e das conquistas da sociedade humana durante o século XV, foi se desenvolvendo e deixando marcas profundas até à atualidade. Desde então, o escravismo passou a ser diretamente relacionado aos povos africanos, como uma maldição, a partir de uma visão cultural e religiosa eurocêntrica nas colônias da América, na Europa e no próprio continente africano. O Brasil foi o país de maior concentração de escravos africanos do mundo. Chegou a uma população de 5 milhões de escravos ao longo de mais de 300 anos em que perdurou o escravagismo negro em nosso país.

A escravidão na América já tinha precedentes no continente: houve escravização de indígenas e com a chegada de Cristovão Colombo, em 1492, iniciou-se um massacre e o escravismo destas populações indígenas em todo o continente americano, inclusive no Brasil, a partir da colonização portuguesa.

A abolição da escravatura em nosso país, em 13 de maio de 1888, assinada pela princesa Isabel, foi fruto das lutas históricas e das mudanças que já vinham acontecendo na sociedade brasileira, pressionada pelas transformações políticas, econômicas e sociais que aconteciam na Europa, na própria América, a exemplo do movimento de libertação dos escravos no Haiti, que foi fundamental na proclamação da República naquele pais. O fim do escravismo no Brasil atendia também aos interesses da Inglaterra em plena industrialização, que necessitava de novos mercados e de matéria prima fora da Europa para consolidar a sua hegemonia no cenário internacional.

As leis abolicionistas no Brasil promoveram a emancipação dos escravos de maneira gradual. A primeira foi a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850. Posteriormente, a Lei do Ventre Livre, em 1871, e a Lei dos Sexagenários, em 1885. Finalmente, a lei assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, aboliu a escravidão no Brasil. As principais lideranças negras abolicionistas foram: André Rebouças, José do Patrocínio e Luiz Gama. Ainda devem ser destacadas as lideranças femininas de Maria Tomásia, Adelina e Maria Firmina dos Reis, entre outras brasileiras.

Ressalte-se que a abolição da escravatura no Brasil atendeu também aos interesses das oligarquias nacionais que já não podiam manter o custo da mão de obra escrava, base da acumulação da riqueza colonial, ainda em função da realidade internacional e em razão do que o Brasil já representava em função das suas riquezas naturais, particularmente minerais, produção/potencialidades agrícola e pecuária, um espaço de acumulação e de mercado da economia capitalista mundial.

Em uma outra perspectiva, aconteceu a luta dos quilombolas. Os quilombos eram organizados como espaços de resistência, de libertação, no caminho de construção de novas relações políticas, econômicas e sociais. O de Palmares é o mais conhecido e aclamado com a liderança de Zumbi, cuja data de sua morte, 20 de novembro, passou a ser a data nacional de resistência e de luta pelos direitos da população negra no Brasil, desde 2011.

A libertação da população negra no Brasil desde os primórdios até à atualidade é o resultado das lutas de resistência dos movimentos de libertação desde quando os(as) escravos(as) chegaram ao Brasil, dos movimentos Quilombolas e dos abolicionistas, de resistências e de conquistas no processo de emancipação da população negra como parte integrante das lutas de transformação da sociedade brasileira, com seus conflitos e contradições históricos e atuais.

O 20 de novembro, dia da consciência negra, é um momento de reflexão e ação sobre a atual realidade política, econômica e social do Brasil, particularmente da população negra, na perspectiva de superação desta nossa difícil realidade que excluiu e continua excluindo a população negra brasileira.

Quais os desafios?

Os desafios históricos de inclusão da população negra na sociedade brasileira continuam atuais.

A abolição da escravatura, no século XIX, não incorporou a população negra à nova realidade política, econômica e social capitalista. Sem a terra e a escolaridade necessárias, os(as) negros(as) libertos(as), na sua maioria, ficaram à margem da sociedade brasileira, situação que continua até à atualidade, apesar das conquistas e dos avanços da população negra no Brasil, consolidadas na Constituição de 1988 e os seus desdobramentos político-institucionais.

Desde então, por tudo o que o Brasil representava e continua representando, inicialmente como Colônia, depois como Monarquia até à proclamação da República e atualmente, a população negra continua sem a devida representação na vida política, econômica e social no País. A realidade da Bahia é a mais perfeita tradução desta falta de representação política, econômica e social da população negra brasileira.

Atualmente quais são os compromissos dos que governam, da sociedade e da cidadania em geral frente a essa realidade de exclusão da população negra brasileira?

A agenda do Movimento Negro e dos outros movimentos políticos, econômicos, sociais, ambientais e multiculturais que lutam pela inclusão da população negra no Brasil deve ser a agenda de toda a sociedade brasileira, na qual a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a ciência e a tecnologia seriam os fundamentos de construção de políticas públicas afirmativas, inclusivas para a população negra e para todas as populações discriminadas da nossa sociedade.

No Brasil, particularmente os(as) trabalhadores(as) de menor renda e a população desempregada em geral, na sua maioria negra, continuam enfrentando sérias dificuldades econômicas e sociais, entre as quais a falta de uma renda emergencial permanente que lhes assegure o mínimo de dignidade para atravessarem a crise agravada com a pandemia que atinge principalmente a população de baixa renda, as mulheres na sua dupla jornada de trabalho, a população indígena e negra, historicamente excluídas no Brasil.

A inclusão da população negra – 54% da população brasileira, segundo o IBGE – deve ser realizada a partir de pautas afirmativas e de reparação com o olhar do presente no caminho de um futuro que unifique a sociedade brasileira construindo uma agenda nacional para a saída da crise no caminho da consolidação e ampliação da democracia. Os negros, homens e mulheres, e suas representações no Brasil devem estar em diálogo permanente com a opinião pública e a sociedade em geral, fortalecendo suas redes sociais e de comunicação, defendendo a melhoria das condições de vida da população negra, ampliando sua participação nas organizações do Estado, do Mercado e da Sociedade Civil; apostando em uma agenda nacional reformista que retire o Brasil desta grave crise política, econômica, social, ambiental e de valores que estamos vivendo.

Portanto, a população negra e a sociedade brasileira em geral estão desafiadas a construir uma agenda propositiva a ser pactuada para o enfrentamento dos reais problemas nacionais agravados com a pandemia: realizar as reformas no caminho de uma nova economia, pensando o Brasil nos próximos 5, 10, 15 e 20 anos, considerando a sua dimensão continental, as potencialidades nacionais e regionais, seus ativos naturais e a diversidade étnica e cultural.

A base desta reforma democrática é a educação, a ciência e a tecnologia que devem ser incorporadas como estruturantes e estratégicas, melhorando a qualidade de vida dos que trabalham, da população negra e de toda a sociedade brasileira nas próximas décadas.

Assim, a população negra e os brasileiros em geral estão desafiados à construção de uma sociedade que supere os conflitos e as contradições nela gerados historicamente, no caminho de uma sociedade mais democrática, inclusiva na sua organização política, econômica e social, e melhor distribuidora da riqueza produzida por toda a sociedade.

O novo governo que se inicia, em 2023, sob a liderança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e amparado em uma frente ampla, deve ser um momento de reflexão e avaliação da difícil realidade social, econômica e ambiental da população brasileira, na perspectiva de que nos próximos quatro anos o governo e a sociedade em geral construam políticas públicas que venham efetivamente melhorar a vida dos excluídos da sociedade brasileira, cuja maioria é negra.

Incorporar a população negra na vida política, econômica e social é enfrentar e superar definitivamente no Brasil o legado histórico e atual de exclusão da população negra na sociedade brasileira, afirmando-a como um dos fundamentos de construção de um Brasil com mais democracia, liberdade, igualdade e fraternidade.

Estamos desafiados(as)! (Blog Democracia Política e novo Reformismo – 19/11/2022)

George Gurgel de Oliveira, professor, doutor, da Oficina da Cátedra da Unesco-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia

Texto publicado originalmente no Cidadania23.


Questão migratória é um dos assuntos mais delicados da política doméstica dos EUA e um dos pontos frágeis da gestão Biden

Lula estuda anular medidas do governo Bolsonaro que facilitaram deportação de brasileiros dos EUA

Mariana Sanches,* BBC News Brasil

É o que dizem fontes especializadas em política externa ouvidas pela BBC News Brasil envolvidas na transição de governo e que devem assumir posições de relevo na nova gestão.

Entre outubro de 2019 e novembro de 2022, 7.549 brasileiros que entraram nos EUA sem vistos foram deportados em 80 voos fretados pelos americanos com destino final no Aeroporto de Confins, em Minas Gerais.

O levantamento inédito, ao qual a BBC News Brasil teve acesso, foi feito a partir de dados de desembarque desses passageiros no terminal internacional de Minas Gerais e compilados pelo sociólogo Gustavo Dias, professor da Universidade Estadual de Montes Claros.

Os voos fretados, autorizados pelo Brasil em 2019, são alvos de inúmeras denúncias de maus-tratos e abusos cometidos contra os deportados, que costumam ter os pés e as mãos algemados durante toda a viagem. Até mesmo um menor de idade brasileiro já ficou preso a algemas em um desses voos, o que provocou protestos verbais do Itamaraty junto ao Departamento de Estado americano.

"Eu não estudei atentamente essas medidas, mas, evidentemente, o governo do presidente Lula, como fez no passado, vai revisar e, se necessário, modificar ou anular, cancelar, revogar as medidas que sejam contrárias aos interesses dos cidadãos brasileiros. Como será feito isso é um detalhe que eu não tenho como responder agora", afirmou à BBC News Brasil o ex-chanceler Celso Amorim, que assessora o presidente eleito Lula no tema.

Auxiliares de Lula garantem que esse será um dos temas que o presidente eleito deve levar à mesa quando tiver sua primeira conversa de trabalho com o colega americano Joe Biden.

A revisão dessas regras, no entanto, poderá criar um dos primeiros espinhos na relação até agora positiva com o governo do democrata — já que a questão migratória é um dos assuntos mais delicados da política doméstica dos EUA e um dos pontos frágeis da gestão Biden.

Trump 'cerrou os punhos'

O número de brasileiros que se arriscam na travessia terrestre entre México e EUA deu um salto nos últimos anos, em meio a uma crise de milhões de migrantes que se avolumaram na fronteira americana sul neste mesmo período.

Ao todo, mais de 53,4 mil brasileiros foram localizados pelo serviço migratório na fronteira Sul dos EUA no ano fiscal de 2022 (encerrado em setembro passado) e 56,9 mil, em 2021, segundo o serviço de Proteção das Alfândegas e Fronteiras dos EUA (CBP, na sigla em inglês).

Estes são os números mais altos da série histórica desde 2007. De acordo com o sociólogo Gustavo Dias, que estuda as comunidades mineiras de onde saem boa parte dos jovens e adultos que decidem tentar entrar nos EUA sem visto e por via terrestre, a principal motivação desses migrantes é a busca por oportunidades de ascensão econômica, que essas pessoas se desiludiram de alcançar no Brasil.

"O governo Bolsonaro talvez seja um caso único no mundo de uma gestão que atua para dificultar a mobilidade de uma população que ele ajuda a expulsar do país", afirma Dias, em referência às medidas de facilitação de exportação.

Desde outubro de 2019, quando o republicano Donald Trump era ainda o presidente dos Estados Unidos, o Brasil passou a concordar com o envio de dois voos mensais - fretados pelos americanos - para repatriar brasileiros.

Excepcionalmente, os EUA chegaram a enviar até três voos em um mesmo mês. Na prática, isso resultou em uma devolução média de 204 brasileiros a cada 30 dias desde então.

Segundo relataram à BBC News Brasil três diplomatas brasileiros com conhecimento das negociações, o aceite para o envio de voos americanos com brasileiros ao Brasil veio depois que a gestão Trump "cerrou os punhos".

Considerado o maior aliado internacional de Bolsonaro, Trump comandou uma das políticas mais duras contra imigrantes da história dos EUA, que incluiu até mesmo a construção de um muro em trechos da fronteira com o México.

Ao Itamaraty, então comandado pelo chanceler Ernesto Araújo, a gestão Trump disse que o Brasil fazia parte de uma lista de países "pouco cooperativos" do Departamento de Segurança Interno (DHS, na sigla em inglês), porque não facilitava a deportação de nacionais que chegavam aos EUA.

E fez entender que isso afetaria o estreitamento de laços que o governo Bolsonaro buscava como prioridade. A negociação foi fundamental para que o Brasil voltasse a autorizar os voos fretados dos EUA, que não aconteciam nesses termos desde 2006.

Entre 2006 e 2019 - salvo em casos negociados especificamente - repatriações dependiam da disponibilidade de vagas em voos de carreira entre os dois países.

Como havia poucas vagas nas aeronaves de companhias aéreas comerciais, era relativamente comum que os americanos vissem estourar o prazo para que pudessem manter legalmente o migrante brasileiro detido em algum dos seus centros de detenção.

Assim, os brasileiros acabavam liberados em território americano, com uma notificação para comparecer em alguma corte migratória em alguma data específica. Parte desses migrantes jamais voltava a se apresentar às autoridades. Entre os agentes de migração dos EUA, a medida ganhou o apelido irônico de "notificação para desaparecer".

Mas os voos fretados não foram a única mudança feita pelo governo Bolsonaro para facilitar a deportação de brasileiros. Migrantes indocumentados costumam ter como estratégia se desfazer de seus documentos de identidade, para dificultar ou retardar o processo de devolução a seus países e tentar encontrar formas de não serem expulsos.

Sob Bolsonaro, os consulados brasileiros também passaram a expedir, a pedido de autoridades americanas e até mesmo contra a vontade dos cidadãos brasileiros, atestados de nacionalidade, para comprovar que se tratavam de brasileiros. E a permitir a entrada de deportados ao Brasil apenas com este tipo de documento.

Parte dos deportados brasileiros também afirma não ter sido atendido pelos americanos ao pedir assistência consular antes da deportação, o que é um direito dos migrantes. No ano passado, os EUA chegaram a deportar dezenas de crianças brasileiras filhas de haitianos para o Haiti sem o conhecimento de autoridades do Brasil, conforme mostrou a BBC News Brasil na ocasião.

"Um brasileiro ilegalmente fora do país é problema do Brasil, isso é vergonha nossa, para a gente", afirmou o deputado federal e filho do presidente Eduardo Bolsonaro, em visita a Washington em março de 2019, justificando as decisões que o governo já começava a tomar sobre o tema.

No mesmo período, a gestão Bolsonaro extinguiu a necessidade de vistos para a entrada de americanos no Brasil - em desacordo com o princípio da reciprocidade adotado até então pela diplomacia brasileira.

"Quantos americanos vão vir morar ilegalmente no Brasil, aproveitar essa brecha para entrar aqui como turista e passar a viver ilegalmente? Agora vamos fazer a pergunta contrária: se os EUA permitirem que o brasileiro entre lá sem visto, quantos brasileiros vão para os Estados Unidos se passando por turistas e vão passar a viver ilegalmente aqui?", disse Eduardo Bolsonaro, na mesma ocasião.

O fim dos vistos para brasileiros é um pedido antigo do Brasil, mas não há qualquer previsão para que isso ocorra atualmente.

Bolsonaro também desmontou a política estabelecida em decreto de Lula em 2010 para os migrantes brasileiros, com base nos princípios de não discriminação e garantia dos direitos humanos previstos na Convenção de Viena, da qual o Brasil é signatário. E desmantelou o Conselho de Representantes de Brasileiros no Exterior (CRBE), que servia como interface entre as comunidades e o governo.

"Olha, o que eu falar aqui vai dar polêmica, tá certo? Acho que, em qualquer país, as suas leis têm que ser respeitadas, né? Qualquer país do mundo onde pessoas estão lá de forma clandestina, é um direito daquele chefe de Estado, usando da lei, devolver esses nacionais. Lamento que os brasileiros foram buscar novas oportunidades lá fora e voltam para cá deportados. Lamento, mas temos que respeitar a soberania dos outros países", disse o presidente Jair Bolsonaro em janeiro de 2020, ao justificar as medidas.

Biden deportou mais brasileiros que Trump

Sob Bolsonaro, o Itamaraty tem apresentado reclamações constantes ao governo dos EUA em relação ao tratamento dado aos brasileiros devolvidos - especialmente ao uso de algemas de pés e mãos, que forçam a posição curvada das pessoas por horas seguidas.

Os americanos afirmam que trabalham em uma solução que seja customizada para o Brasil, já que não quer abrir o precedente para que outros países da região também possam contestar o uso de algemas em seus cidadãos.

"Ainda estamos tentando fazer um diagnóstico, mas o que percebemos é que esse governo só olhava pro migrante quando era pra fazer comício. Mas não cuidou, e permitir que o brasileiro seja algemado e enfiado de volta no avião não são medidas condizentes com uma política externa minimamente razoável", afirmou um integrante da equipe de transição sob condição de anonimato por não ter autorização para falar em público sobre o tema. A declaração é uma referência à motociata feita por Bolsonaro em Orlando em junho. A maioria da comunidade brasileira nos EUA votou em Bolsonaro.

Em tese, bastaria uma decisão unilateral de Brasília para que os voos americanos fossem vetados de adentrar o espaço aéreo brasileiro e para que os consulados interrompessem a emissão de atestados de nacionalidade.

A decisão, no entanto, é politicamente sensível e divide até mesmo os diplomatas do Brasil - que reconhecem o direito dos americanos de escolher a quem recebem em seu território.

E embora as medidas tenham sido negociadas por Bolsonaro com a gestão Trump, quem mais se beneficiou delas foi Biden. No período do republicano, segundo o estudo de Dias, apenas 985 brasileiros foram deportados, em 22 voos. Já com Biden na Casa Branca, foram 6.564 devolvidos em 58 voos.

"Uma coisa é falar sobre rechaçar essas regras em 2010, quando quase não entrava brasileiro nos EUA e não havia a pressão que tem hoje dos americanos para liberar documento e mandar de volta. Outra coisa é falar disso agora, a realidade mudou", disse à BBC News Brasil um embaixador que acompanha a questão consular Brasil-EUA.

Por pressão dos americanos, os mexicanos recentemente voltaram a exigir visto para a entrada de brasileiros no país. É uma tentativa de coibir o fluxo de cidadãos do Brasil na fronteira com os EUA.

O time de Lula afirma que tentará convencer os americanos de que a repressão a quem chega na fronteira não é o caminho, e sim atuar nas causas que levam esses latinos a partir de seus países. Um discurso que o próprio Biden defendeu na campanha, mas que se mostrou pouco eficiente em seu governo, quando ele lançou mão de expedientes semelhantes aos de Trump pra tentar controlar a onda migratória.

Em negociação para que os americanos façam aportes de dinheiro para a preservação da Amazônia, apoiem uma candidatura do Brasil numa eventual reforma do Conselho de Segurança da ONU e tentando reatar uma relação com os EUA abalada pelas tensões entre Biden e Bolsonaro, Lula terá que decidir se enfrentará os custos políticos que as mudanças para dificultar a deportação de brasileiros poderão acarretar.

Texto publicado originalmente na BBC News Brasil.


Fontes renováveis de energia são debatidas no COP 27 | Foto: Mohamed Abd/El Ghany Reuters

Revista online | A COP 27 fracassou?

Benjamin Sicsú*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022) 

A resposta ao título provocativo depende, claro, da premissa adotada para a análise. De todos os temas analisados no âmbito das Nações Unidas, a mudança climática é, atualmente, o que encontra maior engajamento, ainda que a intensidade das decisões seja diferente a cada rodada de discussão. 

A precariedade do contexto mundial, desencadeado pela pandemia da covid-19, e posterior invasão da Ucrânia pela Rússia, forçou países a tomarem algumas medidas que se refletiram sobre essa edição da COP, levando à leitura de que ela não teve sucesso. 

A Conferência das Partes (COP) é o órgão supremo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, adotada em 1992. As reuniões de deliberação ocorrem anualmente desde 1995. Durante duas semanas, os países avaliam a situação do clima no planeta e propõem mecanismos para garantir a efetividade da convenção.

Este ano, o encontro realizou-se no Egito e muitas das expectativas do mundo ecológico-climático não foram atendidas, o que gerou o sentimento de frustração. Mas é preciso avaliar a situação dentro do marco histórico e do contexto político mundial para se ter a real dimensão dos resultados obtidos em Sharm el-Sheikh.  

Os resultados acordados na COP de Paris, em sua edição de número 21, ocorrida em 2015, foram, até o momento, os mais impactantes para o encaminhamento de soluções visando equacionar a crise climática. Decidiu-se ali que era preciso manter a temperatura média da terra abaixo de 2 graus celsius acima dos níveis pré-industriais. 

Pactuou-se também a necessidade de realizar esforços para que esse limite não ultrapasse 1,5% acima dos níveis pré-industriais. Foi acordado, ainda, que os países desenvolvidos manteriam um fluxo regular de financiamento de recursos financeiros para os países mais pobres poderem adotar tais medidas visando a redução do aquecimento global.

Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online

De Paris para o Egito, as sucessivas COPs foram destinadas a avaliar e criar as condições de implantação dessas medidas, sendo também monitorado o anúncio feito por cada um dos países sobre quais seriam suas contribuições para o objetivo de redução da temperatura. 

Este ano, havia grande expectativa de que fossem pactuadas novas medidas em direção à eliminação do uso de combustíveis fósseis, como o carvão. Eles representam atualmente 80% das emissões que causam aumento de temperatura. Na COP 26, realizada em Glasgow, pela primeira vez, o texto final trouxe a citação ao carvão e enunciou medidas necessárias para o fim de seu uso. Não houve, então, qualquer menção ao uso de gás e de petróleo. 

Na COP do Egito, além de continuar não priorizando medidas em relação ao gás e petróleo, o acordo finalizado retirou o foco dado ao uso do carvão. No texto final, foi trocado o termo “redução gradativa” para “eliminar subsídios ineficientes”, e isso foi entendido como um retrocesso.

Em função da invasão da Ucrânia, temos que entender que, no último ano, países líderes nas medidas de contenção da temperatura, como a Alemanha, foram impelidos a adotar medidas contrárias ao enunciado em Glasgow. País da Europa mais dependente do gás russo, a Alemanha teve que acionar usinas a carvão para se contrapor à diminuição do recebimento do insumo importado da Rússia. Logicamente, esse choque de realidade refletiu-se sobre o documento final da COP 27.

Mas essa é uma situação transitória. Tão logo o mundo reequacione as consequências geopolíticas da invasão da Ucrânia, medidas de extinção do uso do carvão voltaram a ser debatidas e adotadas. As razões técnico-científicas permanecem apontando o carvão como o grande vilão do aquecimento. Portanto, esse pequeno recuo não pode ser entendido como um fracasso. Trata-se de uma acomodação política a um imperativo causado por uma situação-limite. 

O que se tem que levar em conta é que a COP 27 produziu uma grande vitória. O documento final cria, pela primeira vez, o mecanismo denominado “perdas e danos”. Por ele, os países ricos pagarão os mais pobres na implantação de medidas de combate à destruição climática. Significa que países que sofreram danos humanos e materiais por causa do aquecimento global poderão ser compensados ou indenizados pelos países que causaram a alteração. 

Essa questão, que remonta às consequências do passado colonial, terá seu mecanismo detalhado tecnicamente ao longo do próximo ano. E poderá, em sua parte operacional, ser implementada na próxima COP. Trata-se de um acordo histórico, pois, pela primeira vez, os países do passado colonizador se comprometeram a pagar àqueles que foram objetos de políticas destrutivas relacionadas ao clima.

Confira, a seguir, galeria:

Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na COP 27, no Egito | Foto: Agência Brasil
O documento final faz menção a florestas e a soluções baseadas na natureza, levando em conta as questões da biodiversidade | Foto: reprodução/Agência Brasil
O acordo finalizado retirou o foco dado ao uso do carvão. Usina de energia a carvão, em Mannheim, Alemanha| Foto: EFE/EPA/RONALD WITTEK
A COP 27 segue não priorizando medidas em relação ao gás e petróleo | Foto: reprodução | FIRJAN
A Conferência das Partes (COP) é o órgão supremo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, adotada em 1992 | Imagem: reprodução
Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na COP 27, no Egito | Foto: Agência Brasil
O documento final faz menção a florestas e a soluções baseadas na natureza, levando em conta as questões da biodiversidade | Foto: reprodução/Agência Brasil
O acordo finalizado retirou o foco dado ao uso do carvão. Usina de energia a carvão, em Mannheim, Alemanha| Foto: EFE/EPA/RONALD WITTEK
A COP 27 segue não priorizando medidas em relação ao gás e petróleo | Foto: reprodução | FIRJAN
A Conferência das Partes (COP) é o órgão supremo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, adotada em 1992 | Imagem: reprodução
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Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na COP 27, no Egito | Foto: Agência Brasil
O documento final faz menção a florestas e a soluções baseadas na natureza, levando em conta as questões da biodiversidade | Foto: reprodução/Agência Brasil
O acordo finalizado retirou o foco dado ao uso do carvão. Usina de energia a carvão, em Mannheim, Alemanha| Foto: EFE/EPA/RONALD WITTEK
A COP 27 segue não priorizando medidas em relação ao gás e petróleo | Foto: reprodução | FIRJAN
A Conferência das Partes (COP) é o órgão supremo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, adotada em 1992 | Imagem: reprodução
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Outra importante vitória é a menção a florestas e a soluções baseadas na natureza. Embora vagas, essas referências colaboram para criar uma ponte entre as COPs do Clima e as da Biodiversidade, que também são organizadas no âmbito das Nações Unidas. Passa-se a ter o entendimento de que, para resolver a crise climática, é preciso levar em conta as questões da biodiversidade. Este é um passo fundamental para o melhor encaminhamento da relação clima-biodiversidade, essencial para a sobrevivência do planeta. Já poderemos ver consequência desse novo elo nas discussões da COP 15 da Biodiversidade, marcada para dezembro de 2022, em Ottawa.

Por todas essas questões e considerando a reentrada do Brasil como um dos líderes da discussão das mudanças climáticas e o anúncio feito, pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, de adotar a política de desmatamento zero da Amazônia, considero que a COP 27 foi um sucesso. 

Sobre o autor

*Benjamin Sicsú é ex-ministro de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do governo Fernando Henrique Cardoso; presidente do conselho administrativo da Fundação Amazônia Sustentável, maior ONG a atuar na Floresta Amazônica, e integrante do Conselho Fiscal da Fundação Astrojildo Pereira.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de novembro de 2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Seleções europeias não usarão braçadeira com a bandeira LGTBQIA+

Brasil de Fato*

Traduzido a partir de El Diario

Os capitães das seleções da Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Suíça, Inglaterra e País de Gales não usarão a braçadeira com a bandeira LGTBQIA+ durante as partidas da Copa do Mundo no Catar, conforme informaram as sete federações de futebol em comunicado nesta segunda-feira (21). As seleções nacionais tomaram essa decisão depois que a Fifa anunciou que os jogadores que usarem a pulseira One Love podem receber um cartão amarelo.

Alguns atletas, como o capitão da Inglaterra Harry Kane, anunciaram sua intenção de usar uma pulseira com a insígnia do arco-íris em protesto contra a perseguição do emirado a pessoas não heterossexuais. “Como federações nacionais, não podemos colocar nossos jogadores em uma posição em que possam enfrentar sanções esportivas, incluindo reservas”, disse o comunicado conjunto das federações.

Os jogadores, eles indicaram, estavam "preparados para pagar multas que normalmente se aplicariam a violações dos regulamentos do kit". Outra coisa diferente, eles entendem, é uma sanção esportiva que pode prejudicar o desempenho das equipes no torneio. Um cartão amarelo por usar a braçadeira colocaria "os jogadores em uma situação em que poderiam ser penalizados ou até forçados a abandonar a partida". 

No futebol, um cartão amarelo significa uma sanção média (anterior ao cartão vermelho), e o acúmulo de dois cartões dessa cor implica a expulsão do jogador da partida e a proibição de participar pelo menos na próxima partida.

As federações se declararam "frustradas" com a decisão do organizador do torneio e descreveram a situação como um evento "sem precedentes". “Escrevemos à Fifa em setembro informando sobre nosso desejo de usar a braçadeira One Love para apoiar ativamente a inclusão no futebol, e não recebemos resposta. Os nossos jogadores e treinadores estão desapontados", denunciaram.

A declaração da Fifa ocorre apenas um dia depois de o presidente da entidade, Gianni Infantino, acusar os países ocidentais em entrevista coletiva por seus "duplos pesos e duas medidas" em relação ao país-sede, uma ditadura que é regida por uma interpretação dura da lei islâmica que discrimina mulheres e pune relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. "Sinto-me catariano, sinto-me árabe, sinto-me africano, gay, deficiente, trabalhador migrante", disse, respondendo às inúmeras críticas à decisão de que um torneio desta envergadura se realize num país que não cumpre os requisitos mínimos democráticos.

A vida no emirado é regida por uma legislação que pune com pena de prisão de até dez anos as relações sexuais consensuais entre pessoas do mesmo sexo. O atual código penal também prevê penas de um a três anos de prisão para quem “incitar” ou “persuadir” outras pessoas a cometerem atos de “sodomia ou imoralidade”.

*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato. Título editado


Aqualtune, Na Angotimé e Luís Gama | (crédito: Marc Ferrez, 1885/ Domínio Público - Twitter Geek Feminist)

Consciência Negra: conheça nomes que lutaram pelo fim da escravidão no Brasil

Aline Brito*, Correio Braziliense

Neste domingo (20/11) é comemorado o Dia da Consciência Negra. A data, que surgiu como uma forma de refletir sobre o valor e contribuição da comunidade negra para o Brasil, tem o papel de jogar luz sobre a resistência do povo negro e dar maior visibilidade à busca por igualdade, por direitos, e contra o racismo. Para entender o que envolve o movimento negro da atualidade, é necessário fazer um resgate histórico e falar sobre as raízes que envolvem essa luta.

O povo negro tem uma trajetória que começou muito antes da escravização, sendo alicerçada em território africano e formada por reis, rainhas, guerreiros e guerreiras de tribos que ali viviam. No Brasil, antes da chegada dos portugueses, estudos arqueológicos mostram que os primeiros habitantes eram indígenas. A chegada dos negros em solo brasileiro se confunde com a escravidão, uma vez que eles eram traficados da África para trabalharem, de forma forçada e desumana, para o império e os poderosos coloniais.

A escravidão no país começou por volta de 1530, quando os portugueses implantaram base no Brasil e, consequentemente, surgiram demandas de mão de obra. Os primeiros escravizados foram os indígenas, mas acabaram sendo substituídos pelos negros — estima-se que cerca de 4,8 milhões de africanos foram traficados para o Brasil durante todo o período que durou a escravidão.

Desde o início, essa exploração violenta da força de trabalho foi marcada pela resistência dos negros. “Essas pessoas são apagadas da história para que seja perpetuada a história branca e todos os privilégios que ela representa na sociedade. Conhecimento é poder, imagina se a população negra, que é maioria da população, mas não em espaços de poder e decisão, começa a conhecer a verdadeira história? Com certeza terão mais reivindicações, para ocupar, cada vez mais, espaços nos quais o povo negro não chega de forma proporcional. E não chega não por falta de vontade, inteligência ou talento, e sim por causa das barreiras impostas pelo racismo estrutural”, explica Luiza Mandela, mestra em Relações Étnico-Raciais.

“Não veio do céu, nem das mãos de Isabel”

Ao longo dos mais de 300 anos de exploração dos africanos no Brasil, os escravos se organizaram, de diversas formas, para resistir à escravidão e tentar fugir das senzalas. Uma personalidade muito conhecida por lutar pela libertação do povo contra o sistema escravista é Zumbi dos Palmares, um grande exemplo da batalha travada na época.

Zumbi foi líder do Quilombo dos Palmares, uma comunidade formada por escravos negros que fugiam de fazendas, prisões e senzalas. O quilombo surgiu por volta de 1580 e, em pouco tempo, se tornou o maior do período colonial, ocupando uma área equivalente ao tamanho de Portugal e com mais de 30 mil habitantes.

Apesar do Dia da Consciência Negra ser na data que marca a morte de Zumbi, uma forma de homenagem e também de garantir que a história de resistência do povo negro não seja esquecida, antes dele outros guerreiros como Ganga Zumba, primeiro líder do Quilombo dos Palmares, foram cruciais para o percurso que resultou na abolição da escravatura. Depois dele, também tiveram outros nomes tão importantes quanto, mas que não são lembrados em livros de história ou estudados dentro de salas de aula.

“A invisibilização da história negra causa impactos na construção da identidade e da subjetividade das pessoas negras. Essas pessoas crescem não se vendo de forma positiva, acreditando que não têm uma história, se achando inferiores, incapazes. Essa narrativa, que favorece a história eurocêntrica, afeta a saúde mental da população preta. Crescemos não gostando de nós mesmos por acreditarmos que não somos potentes, não temos história, nem identidade e, com isso, somos adoecidos e precisamos recorrer a tratamentos terapêuticos, psiquiátricos. E sabemos que nem todas as pessoas negras têm acesso a esses serviços”, esclarece Mandela.

De acordo com a especialista, é necessário que a população conheça a história do povo negro, para que seja descentralizada a visão eurocêntrica do Brasil, afinal, assim como mostrou o samba-enredo da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, campeã do carnaval carioca de 2019, a liberdade dos escravos “não veio do céu, nem das mãos das mãos de Isabel”.

“Brasil, meu nego, deixa eu te contar a história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar. Na luta é que a gente se encontra [...] Brasil, o teu nome é Dandara e a tua cara é de cariri [...] Salve os caboclos de julho, quem foi de aço nos anos de chumbo. Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês ”, diz a canção Histórias Para Ninar Gente Grande.

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Em 13 de maio de 1888, a princesa imperial Isabel do Brasil assinou a Lei Áurea e decretou o fim da escravidão no Brasil. No ensino básico regular, livros de história e até no imaginário de muitos brasileiros, ela foi a “salvadora” dos escravos, mas, a verdade, é que a abolição da escravatura não foi uma benfeitoria dos regentes do país na época, e sim resultado da pressão popular e do crescimento do movimento abolicionista.

Como cantou a Mangueira na maior festa popular do Brasil, no carnaval de 2019, a “liberdade é um dragão no mar de Aracati”. Nomes como Luís Gama, Luísa Mahin, José do Patrocínio, André Rebouças, Cosme Bento, Francisco José do Nascimento, José Luis Napoleão, Quintino de Lacerda, Aqualtune, Tereza de Benguela, entre muitos outros, foram negros, escravos ou filhos de escravos que, ao longo do tempo, tiveram expressiva participação no movimento que, verdadeiramente, contribuiu para a extinção da escravidão.

“O resgate da história de Dragão do Mar, José Luís Napoleão, José do Patrocínio, Luísa Mahin, Maria Felipa entre outras personalidades é de fundamental importância para que seja trazida a narrativa da luta negra , da construção da identidade positiva das crianças negras, e respeito às diferenças e a cultura afro brasileira e africana. Romper com o epistemicídio também faz parte da luta contra o racismo” afirma a professora Luiza Mandela.

Conheça personalidades importantes na luta pela liberdade do povo negro

Aqualtune

Aqualtune
Aqualtune(foto: Marc Ferrez, 1885/ Domínio Público)

Aqualtune é uma das mais antigas líderes negras no Brasil e um dos maiores símbolos da batalha pela liberdade negra do regime escravocrata. Não se tem muitos registros que contam a história dela, nem se sabe exatamente onde nasceu e quem são seus pais, mas indícios históricos sugerem que ela teria nascido no século XVI (por volta de 1600), no Congo, na África Central, e teria uma linhagem real, sendo, possivelmente, filha de um rei do Congo.

A princesa Aqualtune foi uma guerreira africana que liderou cerca de 10 mil homens guerreiros que lutaram na Batalha de Ambuíla, contra o reino de Portugal, em 1665. O reino do Congo perdeu a guerra e, com isso, Aqualtune foi capturada e traficada para a então América Portuguesa, onde hoje fica o nordeste brasileiro.

Ao chegar no Brasil, a princesa congolesa foi escravizada e levada para uma fazenda localizada no atual estado de Alagoas, onde foi estuprada pelos donos da terra e colocada junto aos outros escravos. No local, Aqualtune ouviu falar sobre a resistência negra que estava em curso no país, liderada por quilombos, e se junto a outros negros que, mais tarde, conseguiriam fugir da fazenda onde eram explorados.

Detentora de grandes conhecimentos políticos, organizacionais e de estratégia de guerra, Aqualtune foi fundamental para a consolidação da República de Palmares. Ela se tornou líder quilombola à frente de uma das moradias do Quilombo dos Palmares, se tornando mãe de Ganga Zumba, primeiro líder desse quilombo e mãe de Sabia, que, mais tarde, daria à luz a Zumbi dos Palmares.

Portanto, Aqualtune foi avó de Zumbi e, de acordo com alguns historiadores, teria morrido em 1677, durante um incêndio provocado por invasores do Quilombo dos Palmares. Apesar de ser pouco lembrada pelos livros e escolas brasileiras — que costumam citar apenas Zumbi dos Palmares como o principal líder negro da época —, a princesa do Congo foi uma figura muito importante para a história da população negra durante o Período Colonial e passou a ser símbolo de liderança e resistência contra a opressão da comunidade negra e uma personagem importante de luta das mulheres negras.

Tereza de Benguela

Tereza de Benguela
Tereza de Benguela(foto: Domínio Público)

Assim como sugere seu nome, Tereza de Benguela teria nascido por volta de 1700, em Benguela, uma cidade em Angola, na África. Foi uma líder quilombola trazida como escrava para o Brasil e liderou o Quilombo do Piolho, localizado no atual estado do Mato Grosso.

Tereza, assim como outros inúmeros escravos do Brasil Colônia, fugiu da senzala onde era escravizada e, junto com o marido, José Piolho, se abrigou no quilombo que foi o maior de Mato Grosso. Historiadores acreditam que José tenha chefiado o Quilombo do Piolho até o início de 1750, quando foi assassinado.

Depois da morte do marido, até cerca de 1770, Tereza foi a rainha do quilombo e, sob seu comando, a comunidade negra da região resistiu à escravidão durante duas décadas. Do local, a chamada Rainha Tereza coordenou a comunidade que vivia do plantio e comandou a estrutura política e econômica do grupo. Ela também criou um sistema de defesa com armas, que contribuiu para a proteção do quilombo e resistência à escravidão.

Tereza morreu por volta de 1770. Em sua homenagem, foi criado o Dia Nacional de Tereza de Benguela, comemorado em 25 de julho. Essa mesma data é dedicada ao Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha. A mulher escravizada que virou rainha é um ícone da resistência negra no país e heroína do movimento de mulheres negras.

Nã Agontimé

Representação ilustrativa de como seria a aparência de Nã Agontimé
Representação ilustrativa de como seria a aparência de Nã Agontimé(foto: Reprodução/ Twitter Geek Feminist)

Nascida no reino do Daomé no século XVIII, onde hoje fica Benim, na África, Nã Agontimé foi uma rainha africana, esposa do rei Agonglo. Após a morte do marido, a estabilidade do reino ficou abalada e um de dos filhos dela, Adandozan, tomou o trono, mesmo que o próximo rei, de acordo com as vontade de Agonglo, deveria ser o filho de Agontimé, o Gakpe.

Tremendo reação negativa à traição que cometeu, Adandozan, conhecido por ser um homem cruel, vende a madrasta, Agontimé, como escrava. Depois disso, o paradeiro da rainha se perdeu, já que o novo rei ordenou aos compradores de escravos que ela fosse rebatizada, justamente para que ninguém a encontrasse.

Por falta de registros históricos, não se sabe ao certo onde Agontimé viveu no Brasil, nem por quanto tempo. O rastro da rainha ficou perdido durante anos, até que, em 1948, um pesquisador francês Pierre Fatumbi Verger descobre vestígios de que ela conseguiu uma carta de alforria e foi uma das fundadoras da Casa da Minas em São Luiz do Maranhão.

No Brasil, Agontimé foi rebatizada como Maria Jesuína e foi pioneira na disseminação da religião de matriz africana em território brasileiro. A rainha criou o culto de tradição Ewe-Fon no país, cultuado na Casa da Minas, que, em africano, carrega o nome de Querebentã de Zomadonu e significa “Casa grande de Zomadonu”, em referência ao vodun protetor de Maria Jesuína.

Assim, o Maranhão é o único lugar das Américas onde se encontraram cultos às divindades ancestrais da realeza do Daomé, lugar onde nasceu Agontimé. Além disso, a Casa da Minas é o primeiro templo de tambor do Maranhão e serviu de modelo para a instalação de outras no Norte e Nordeste do Brasil, bem como para a implementação de outros centros de religião africana em todo território brasileiro.

Cosme Bento

Representação ilustrativa de Cosme Bento
Representação ilustrativa de Cosme Bento(foto: Reprodução/Google)

Negro Cosme, como ficou conhecido o líder quilombola Cosme Bento, liderou uma das maiores revoltas de escravos do Maranhão, a Balaiada. Nascido escravo entre 1800 e 1802, em Sobral, no Ceará, onde conseguiu alforria.

Em 1830, pouco depois de chegar ao Maranhão, foi preso por assassinato e, em 1833, conseguiu fugir da cadeira. A partir de então, passou a promover uma vasta rebelião de negros em vários pontos de trabalho escravo da região. Para não ser pego, Negro Comes se encondia em diversos quilombos e ajudava escravos a se libertarem da opressão de seus esploradores.

Negro Cosme também foi responsável por criar o maior quilombo da história do Maranhão, a fazenda Tocanguira, localizada no município de Itapecuru-Mirim, interior do estado. No local, oferecia auxílio a todos que apoiavam a luta contra o escravismo e ficou conhecido como defensor da liberdade.

O objetivo dele era criar uma outra visão de liberdade e igualdade entre os homens, buscando a insurreição contra à escravatura, em favor da liberdade. Ele foi mais que um líder entre os balaios, sendo considerado o chefe da revolta negra maranhense.

Luísa Mahin

Ilustração de Luísa Mahin
Ilustração de Luísa Mahin(foto: Reprodução/Wikipédia)

Uma das principais responsáveis por todas as revoltas de escravos na Bahia. Luísa Mahin nasceu, provavelmente, em 1812, em Costa da Mina, na África, e foi traficada como escrava para o Brasil.

Ela comprou alforria e se tornou quituteira em Salvador, onde teve um filho, o abolicionista Luis Gama. Luísa esteve envolvida na articulação de todas as revoltas e levantes de escravos que sacudiram a então Província da Bahia nas primeiras décadas do século XIX.

Luisa ajudava com a distribuição de mensagens codificadas, em árabe, por meio dos meninos que fingiam comprar seus quitutes. Essas mensagens continham informações relevantes para a resistência dos escravos e os movimentos que contribuiam para a libertação deles. Desse modo, esteve envolvida na Revolta dos Malês e na Sabinada.

A ex-escrava transformou sua casa no quartel general das revoltas de escravos e, caso o levante dos malês tivesse sido vitorioso, Luísa teria sido reconhecida como Rainha da Bahia.

Luís Gama

Luís Gama
Luís Gama(foto: Reprodução/Domínio Público)

Filho de Luísa Mahin, Luís Gama foi um dos principais nomes do movimento abolicionista no Brasil. Nasceu em 1830, em Salvador, e mesmo sendo filho de pai branco e mãe negra liberta, foi feito escravo aos 10 anos de idade.

Permaneceu analfabeto até os 17 anos, quando passou a estudar e, mais tarde, conquistou na justiça a própria liberdade. Depois disso, passou a advogar em defesa dos escravos e, aos 29 anos, já era considerado o maior abolicionista do Brasil e o único a ter sido feito escravo.

Toda a vida de Luís Gama foi pautada pela abolição da escravatura e fim da monarquia no Brasil. Ele escreveu também artigos para jornais da época, sempre sobre assuntos sociorraciais do Brasil Imperial.

Além de ajudar escravos libertos a conseguirem empregos e defender judicialmente escravos acusados de crimes, a principal atuação de Gama em prol da abolição da escravatura foi nos tribunais. Em 1880, em uma carta autobiográfica enviada ao amigo Lúcio de Mendonça, o abolicionista revela que já havia libertado do cativeiro mais de 500 escravos.

Gama também é conhecido pela maior ação coletiva de libertação de escravizados conhecida nas Américas, quando conseguiu a liberdade de 217 escravos. É dele a célebre frase “o escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”, proclamada durante um júri.

André Rebouças

André Rebouças
André Rebouças(foto: Reprodução/Domínio Público)

André Rebouças foi um engenheiro, inventor e abolicionista brasileiro. Ele é considerado um dos mais importantes articuladores do movimento abolicionista e trabalhou pelo desenvolvimento de territórios africanos.

Nascido 50 anos antes da abolição da escravatura, em 1838, ele era filho de mãe escrava e um alfaiate português. Diferente de muitos negros de sua época, Rebouças teve a oportunidade de estudar desde muito jovem e ingressou na Escola Militar do Rio de Janeiro, onde se tornou 2º tenente.

Ao lado de nomes importantes na história do Brasil, como Machado de Assis, o engenheiro foi um dos representantes da pequena classe média negra em ascensão no Segundo Reinado. Ele ajudou a criar a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, e participou também da Confederação Abolicionista.

André trabalhou também ao lado de Luís Gama no movimento em busca da liberdade da comunidade negra. Com os movimentos abolicionistas crescendo, pela atuação de nomes como Rebouças e Gama, e a pressão social contra o Império cada vez mais forte, em 1888 a escravidão é extinta no Brasil, sendo o último país das Américas a acabar com a exploração do povo negro.

Quintino de Lacerda

Quintino de Lacerda
Quintino de Lacerda(foto: Reprodução/Prefeitura de Santos)

Ex-escravo, Quintino de Lacerda se tornou um herói abolicionista. Ele foi líder do Quilombo do Jabaquara, em São Paulo, além de ter se tornado o primeiro vereador negro do Brasil e receber a patente de Major honorário do Exército Nacional.

Lacerda foi o primeiro líder político negra de Santos, no litoral paulistano, considerado o mais atuante fomentador da abolição na região e participou ativamente de grandes eventos nacionais, como a Revolta Armada e o processo de desestruturação do sistema escravista no Brasil.

O político nasceu escravo, em 1855, em Sergipe, e se afeiçoou à família para a qual foi vendido e da qual herdou o sobrenome. Depois de oito anos de serviço, ele conquistou a carta de alforria e se juntou ao movimento contra a escravidão, se tornando, nas duas últimas décadas do século XIX no Brasil, uma figura central nos movimentos sociais e debates políticos.

Além de lutar pela extinção do sistema escravista, após a promulgação da Lei Áurea, Quintino, enquanto capitão do Exército, organizou um batalhão com o objetivo de derrubar o trono brasileiro. Sendo assim, o abolicionista foi também uma figura importante para a proclamação da República.

Francisco José do Nascimento

“Liberdade é um dragão no mar de Aracati”, assim é retratado Francisco José do Nascimento no samba-enredo da Mangueira, em 2019. Conhecido como Dragão do Mar, o líder jangadeiro nasceu em 1839, em Aracati, município do Ceará.

Antiescravista, o Dragão do Mar teve participação ativa no Movimento Abolicionista no Ceará, que foi o primeiro estado brasileiro a abolir a escravidão e, por isso, ficou conhecido como Terra da Luz.

Desde 2017 reconhecido, oficialmente, como Herói da Pátria, o líder se juntou à luta contra a escravidão em 1881 quando se recusou a transpostar escravos para os navios negreiros que saíam do litoral cearense com o objetivo de vender essas pessoas no Rio de Janeiro. Esse movimento foi chamado de Greve dos Jangadeiros e resultou na abolição da escravatura no Ceará, sendo também decisivo para que a liberdade do povo negro fosse implantada no Brasil por meio da Lei Áurea.

Em 1884, Dragão do Mar foi homenageado na capa da Revista Illustrada, importante periódico abolicionista da época. “À testa dos jangadeiros cearenses, Nascimento impede o tráfico dos escravos da província do Ceará vendidos para o sul”, noticiou a revista.

Francisco José do Nascimento é, até os dias atuais, símbolo da resistência popular cearense contra a escravidão. Ele também foi homenageado pelo governo do Ceará, com seu nome dado ao Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, pelo que ele e os outros jangadeiros realizaram em nome da liberdade da comunidade negra.

José do Patrocínio

José do Patrocínio
José do Patrocínio(foto: Reprodução/Domínio Público)

Outra figura importante nos momentos decisivos do movimento abolicionista, que conquistou o fim da escravidão. José do Patrocínio foi um farmacêutico, jornalista, escritor, orador e ativista político brasileiro.

Em 1879, iniciou a campanha pela abolição da escravatura no Brasil e entrou para a Associação Central Emancipadora. Em em 1880, juntamente com Joaquim Nabuco, fundou a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão. Além disso, ele teve uma forte atuação como jornalista com artigos contra a escravidão em periódicos da época, Patrocínio também preparou e auxiliou a fuga de escravos e coordenou campanhas de angariação de fundos para adquirir alforrias, com a promoção de espetáculos ao vivo, comícios em teatros, manifestações em praça pública.

Patrocínio também participou da Maçonaria, atuando no processo de emancipação do trabalho escravo, defendendo o fim da escravidão a partir de discussões no Parlamento, de debates entre a elite branca e da defesa de uma abolição da escravatura, por intermédio da Sociedade Brasileira contra a Escravidão.

Os guerreiros e guerreiras da atualidade

134 anos depois da Lei Áurea e da árdua história dos negros em busca da própria emancipação, o Brasil ainda vive um desafio. Muito por conta da invisibilização histórica da comunidade negra no processo de abolição da escravatura, o povo negro ainda é muito associado à escravidão e vítima de um racismo estrutural.

“São muitos anos com essa associação da negritude à escravidão, mas outras histórias já estão sendo contadas. Para avançarmos precisamos estudar, para conhecermos mais a verdadeira história do povo negro, que não começou na escravidão”, destaca Luiza Mandela, mestra em Relações Étnico-Raciais.

Assim como antes de 1888 ou durante os anos seguinte à abolição, os negros lutaram e seguem lutando por direitos, igualdade e para que a história de resistência dos cerca de 500 anos desde a chegada dos primeiros negros africanos no Brasil não seja apagada. “Essas personalidades que resistiram e lutaram contra a escravidão pavimentaram o chão para que pudéssemos estar aqui vivos e resistindo, apesar de, infelizmente, o negro ainda ser o que mais morre diariamente no Brasil, sendo um a cada 23 minutos”, lamentou Mandela.

O movimento negro segue contando com nomes importantes e que são essenciais para toda e qualquer conquista dessa comunidade. Afinal, desde que o Brasil é Brasil, os direitos da população negra foram adquiridos a partir da luta travada com as próprias mãos.

Podemos destacar na história mais recente personalidades como Ruth de Souza, atriz e a primeira grande referência para artistas negros na televisão; Antonieta de Barros, jornalista, uma das primeiras mulheres eleitas no Brasil e a primeira negra brasileira a assumir um mandato popular; Conceição Evaristo, escritora e uma das mais influentes literatas do movimento pós-modernista no Brasil; Katiuscia Ribeiro, filósofa e um dos principais nomes da atualidade responsáveis por disseminar o conhecimento acerca da ancestralidade; e Abdias do Nascimento, ator e um dos maiores expoentes da cultura negra e dos direitos humanos no Brasil, tendo recebido o Nobel da Paz em 2010.

“Eu destaco nomes importantes que me inspiram a continuar no caminho da luta contra o racismo, como Christina Ramos (minha mãe e militante do Movimento Negro), Nilma Lino Gomes, Conceição Evaristo, Joana Oscar, Ricardo Jaheem, Bárbara Carine, Roberto Borges, Jurema Werneck, entre tantos outros nomes fundamentais, que precisamos conhecer”, destaca a mestra em Relações Étnico-Raciais.

Por mais que, ao longo dos anos, o povo negro tenha conseguido alguns avanços, como as Cotas Raciais, as leis Afonso Arinos e Caó, que proíbem a discriminação racial e tipificam o crime de racismo, ou a Lei 11645/08, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afrobrasileira e africana em todas as escolas públicas e particulares do ensino fundamental até o ensino médio, ainda há muito o que progredir.

Para isso, Luíza Mandela ressalta que é importante garantir que essas leis sejam aplicadas, principalmente a que determina o ensino da cultura afro nas escolas, “para que a história de resistência, potência e beleza da população negra e indígena seja contada nas escolas, universidades, imprensa e em todos os espaços”. “Mas, para isso, precisamos ter letramento racial e estudar para sairmos da visão eurocêntrica e reducionista que nos foi ensinada”, conclui.

*Texto publicado originalmente no Correio Braziliense


“O bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo no Brasil” - Foto: Christian Parente | Divulgação

Silvio Almeida: “Vamos ter que desbolsonarizar o Brasil”

Osvaldo Lyra | A tarde

O professor Silvio Almeida é um dos principais pensadores brasileiros da atualidade. Além de filósofo e advogado tributarista, ele estuda as relações raciais no pais e é enfático ao afirmar que “o racismo é uma questão estrutural, no sentido de que o racismo organiza as hierarquias sociais, a vida cotidiana, organiza o imaginário brasileiro”.

Integrante da equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, ele diz, nessa entrevista exclusiva ao A TARDE, que o “bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo”. “Vamos ter que desbolsonarizar o Brasil”, disse o filósofo, ao enfatizar que “a vitória de Lula abre espaço para a recomposição da democracia”.

Questionado sobre como pensar uma política de segurança pública e as questões raciais diante do contexto atual, Silvio Almeida diz que a “segurança tem que ser repensada sob o prisma da igualdade racial”. “Política de segurança pública é política de direitos humanos”.

Confira:

Vivemos em uma sociedade ainda muito preconceituosa, onde a capacidade das pessoas muitas vezes é medida pela cor da pele. No entanto, a gente está no mês da consciência negra. É importante pensar em ações afirmativas, ainda mais falando para a Bahia, falando para Salvador, que é a cidade mais negra fora da África?

Eu acho que o mês da consciência negra tem papel crucial para que nós possamos mergulhar na compreensão da condição negra não só no Brasil, mas no mundo. Porque a condição negra daqui também se conecta fortemente com o ser negro no mundo. E mais do que isso, as circunstâncias em que o mundo se encontra expande a importância do mês da consciência negra e a própria ideia de consciência negra. Eu digo isso porque nós estamos vivendo um contexto de crise. Quando a gente fala de crise, nós estamos falando, portanto, de um contexto em que a grande baliza civilizatória, as grandes crenças... Eu não falo de religião, eu falo das nossas crenças das instituições políticas, da regularidade da vida econômica, das nossas balizas éticas. Tudo isso está em xeque agora diante de um desarranjo que vai levando as pessoas ao desamparo, ao desespero. As condições precárias, as condições de vida, de existência rebaixadas que o racismo renegou aos negros do mundo passam a servir de parâmetro para a destruição de outras vidas que não apenas vidas negras. Isso é importante. Então, o mês da consciência negra é uma reflexão sobre a condição negra no mundo, mas é uma reflexão, e quando eu falo de reflexão não é só um olhar passivo, mas também a formulação de estratégias políticas para que nós possamos, ao pensar na condição negra, pensar também na superação dos grandes problemas da humanidade. Por isso que esse mês da consciência negra, principalmente no contexto brasileiro, em que nós estamos no período de transformação, de mudanças, uma nova fase do Brasil, é também o chamado para que nós pensemos a condição negra como condição existencial, e nesse sentido, pensar também os rumos da humanidade e do Brasil. E não é só pensar sobre as ações afirmativas. Mas pensar também em como o racismo cria um déficit naquilo que nós chamamos de humanidade. Como ele inviabiliza a criação de uma humanidade que seja projetada em direção ao futuro. 

Em seu livro “Por uma outra globalização”, o professor Milton Santos reflete sobre a globalização com fábula, com perversidade, a globalização como possibilidade, nos convidando justamente a uma nova construção global. É chegada a hora de acabarem as barreiras que impedem a igualdade entre os povos, com mais oportunidade e acesso a todos?

Sim. O professor Milton Santos, que é uma grande referência intelectual, há muitos anos enxergou isso que a gente falava. Ou seja, quando ele anunciou a necessidade de se pensar numa nova globalização, ele estava justamente falando sobre pensar uma nova forma de relações econômicas e sociais a partir desse modelo existente hoje. ]

Eu estou falando do quê? Eu estou falando que o professor Milton Santos está nos convidando a pensar como vai ser fundamental que nós mudemos a forma com que nós reproduzimos a nossa economia, além da maneira com que nós organizamos nossas instituições políticas e como elas são baseadas na violência, na repressão, na discriminação. Isso em nome de um determinado modo de organização da economia.

 Ele está nos convidando, portanto, a redesenhar, a reconfigurar a nossa forma de relação uns com os outros e a nossa forma de relação com o planeta. Ele está olhando para o regional, para o local, mas ele entende que tanto o regional como o local são resultado de uma interação com o global. Genial. 

A gente vive um tempo de retrocessos, nas mais variadas áreas, ao longo dos últimos anos do governo Bolsonaro. Qual o impacto desses acontecimentos nas discussões raciais do país, em especial nos partidos progressistas e nas instituições democráticas de direito?

Bolsonaro é um sintoma. É importante dizer isso. O bolsonarismo é um sintoma de um país que tem problemas estruturais muito graves, que carrega consigo pendências que não se resolveram ao longo da história, que se juntam mais uma vez em um contexto global de crise que vai certamente levando à ascensão de fascismos e de versões mais diferentes da extrema direita. E a nossa versão da extrema direita, a nossa versão do fascismo damos o nome de bolsonarismo.

Ou seja, é a soma das nossas deficiências estruturais, da decadência das nossas instituições políticas, e também de uma soma de sentimento de precarização da vida. O Brasil é um país que não consegue vencer a dependência econômica, o que se reflete na desigualdade profunda, reflete na precarização do trabalho, reflete nessa tentativa frequente de captura do orçamento público por parte de grupos específicos, grupos privados, empresários. E isso reflete também na violência social. Isso é a dependência econômica.

O segundo problema é a nossa aversão à participação popular nos processos políticos, ou seja, uma aversão à democracia, o autoritarismo. Nós não conseguimos criar espaços públicos de resolução de processos, formas de participação popular efetiva. ]

Então, vejam como o bolsonarismo se alimenta muito disso. E, por fim, a questão fundamental que é sua pergunta: o racismo. O racismo é uma questão estrutural no Brasil, no sentido de que o racismo organiza as hierarquias sociais, organiza a vida cotidiana, organiza o imaginário brasileiro. 

Então, não tenha dúvida. O bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo no Brasil, ao racismo escancarado, e eu vou ser mais direto ainda. Eu acho que o bolsonarismo traz para o Brasil de maneira aberta, de uma maneira mais forte algo que é tipicamente dos países como os Estados Unidos, países da Europa e África do Sul.

Ou seja, o que você tem com o bolsonarismo é o flerte com a extrema direita racista nazifascista internacional e uma construção de um pensamento de supremacia branca no Brasil. O detalhe é que eles não estavam bem delineados na realidade brasileira. Nós estamos falando de supremacismo branco, e uma espécie de demonstração escancarada de que se pensa os negros, indígenas a partir de um prisma de inferioridade.

Então, eu acho que está tudo ligado. A dependência econômica, a aversão à democracia, o autoritarismo, o racismo são problemas estruturais no Brasil que se aprofundam no momento de crise e que o bolsonarismo é o veículo fundamental disso. Uma coisa que eu acho que é nossa tarefa nos próximos anos é, tal como os alemães tiveram a tarefa de desnazificar a Alemanha, nós vamos ter que desbolsonarizar o Brasil.

Qual o papel do poder público no combate ao racismo e na promoção da igualdade racial no Brasil e como o senhor viu a vitória do presidente Lula para o combate a intolerância e ao próprio racismo estrutural do país?

O poder público tem papel fundamental. Mais uma vez, nós temos que aprender a trabalhar com as contradições e até com os paradoxos. O racismo só consegue se reproduzir se houver a participação das estruturas políticas estatais.

Ou seja, na criação de um imaginário permanente de racismo, de inferioridade dos negros e indígenas no Brasil... É fundamental que haja uma ação estatal em torno disto. As desigualdades que se refletem na vida das pessoas negras no Brasil são também parte de uma ação ou de uma omissão estatal, porque no fim das contas o estado age também se omitindo. E nesse sentido o estado é fundamental, é um território em permanente disputa. E, portanto, é fundamental uma ação estatal no combate ao racismo. Isso tem efeitos mais perversos, que é o extermínio da juventude negra que ocorre no país, nas periferias, nas favelas.

Então, se o estado é capaz de provocar isso, esse mesmo estado em disputa e nas suas contradições, ele tem papel fundamental também para barrar isso. Então, a vitória do presidente Lula é, de fato, uma abertura de caminhos e acho que se abre também a possibilidade de uma disputa por esse território, um estado que a sociedade brasileira tanto clama... Abre-se, com o presidente Lula, a possibilidade de organizarmos programas de redução da desigualdade, abre-se a possibilidade de disputarmos sim programas de proteção à juventude negra.

Ou seja, o presidente Lula nos coloca da melhor maneira possível em uma encruzilhada. O que quer dizer isso? Ele nos coloca, portanto, diante de caminhos e possibilidade, o que é uma coisa boa. Porque até então nós estávamos sem esse caminho, sem essa possibilidade. Então, agora nós precisamos escolher os melhores caminhos, disputar os melhores caminhos nessa encruzilhada que a vitória do presidente Lula nos colocou. Portanto, acho que a perspectiva em torno de um efetivo combate à desigualdade racial no Brasil agora se faz no campo da disputa institucional, o que é muito importante para nós.

O senhor é uma das grandes vozes antirracistas do país e tem boas chances, inclusive, de se tornar ministro do presidente Lula, caso a pasta da Justiça seja desmembrada da Segurança Pública e pode também lá na frente ser indicado para uma vaga no Supremo. Como estão essas articulações?

São especulações. Nada foi conversado a respeito disso. Isso é uma decisão que cabe única e exclusivamente ao presidente Lula, que pelo que eu saiba ainda não tomou nenhum tipo de decisão. O que eu posso dizer pessoalmente é que eu estou na equipe de transição para ajudar o Brasil da melhor maneira possível. E a equipe de transição serve para fazer um diagnóstico sobre o estado de coisas que se encontram no Brasil, depois da devastação que foi o governo Bolsonaro nos últimos 4 anos.

Então, o que nós vamos fazer, junto com os companheiros e companheiras da equipe de transição, é entregar ao presidente Lula esse diagnóstico, colocando todos os nossos melhores esforços para que ele possa tomar as decisões que lhe cabem e que são resultado do mandato que o povo brasileiro deu a ele.

Em relação a mim, nada posso dizer, nada foi decidido, nada foi resolvido. Não há nenhuma articulação nesse sentido e, mais uma vez, essas decisões são tomadas única e exclusivamente pelo presidente Lula e a sua equipe e estou à disposição para servir ao Brasil agora na equipe de transição na área de direitos humanos.

Como pensar uma política de segurança pública e as questões raciais diante do contexto atual do Brasil, além dos problemas estruturais, sistêmicos, históricos e sociais das causas da violência que sempre acaba penalizando jovens, negros e a população menos favorecida?

Não existe política de segurança pública que não passe por uma redistribuição do que nós entendemos por segurança. Segurança de quê? Segurança para quem? Nós pensamos segurança no Brasil como segurança para o patrimônio e segurança para as instituições e para o estado. O que nós temos que pensar agora é segurança para as pessoas. Segurança para os negros, para os indígenas.

Então, veja, o estado brasileiro historicamente tem sido veículo de desorganização da vida comunitária. O estado tem entrado nas comunidades, desorganizado a vida das pessoas em nome da segurança. Segurança dos mais ricos, dos brancos, dos moradores dos centros urbanos e das localidades mais ricas e mais abastadas da sociedade.

O que nós precisamos fazer a partir de agora é redefinir a ideia de segurança para pensar a segurança como um veículo, primeiro, de organização comunitária. Segundo, a segurança tem que ser pensada a partir de um prisma necessariamente antirracista.

Não existe a possibilidade de pensar segurança se não pensar também como a gente consegue colocar na agenda da chamada segurança pública políticas antirracistas. Eu quero dizer que o racismo é um fator de insegurança social, um fator de conflito.

Então, toda política de segurança pública que não pense na questão racial está simplesmente realimentando os instrumentos de violência e fazendo com que o estado, mais uma vez, desorganize a vida comunitária e coloque as pessoas dentro de um prisma de insegurança. Então, a gente tem que rever isso. Rever a nossa noção de segurança e, a partir daí, criar os instrumentos sociais para proteger a vida das pessoas mais pobres, para proteger a vida dos negros. E parece uma coisa muito comum, parece uma coisa trivial, mas não é trivial.

Porque, veja, o aparato de segurança não é utilizado para que as pessoas negras, as populações mais fortes sejam protegidas. Então, como é que a gente consegue criar formas, sistemas de proteção? Outra coisa que eu acho fundamental: no Brasil, precisamos ressignificar a relação entre segurança e território.

Nós precisamos estender aos territórios das favelas, das periferias, dos lugares mais pobres, mais afastados, precisamos estender também essa possibilidade de que as pessoas sejam respeitadas. Eu estou dizendo isso porque eu considero, por exemplo, que uma política de direitos humanos no Brasil não pode ser só uma política que levante bandeiras éticas e diga o seguinte: olha, nós respeitamos os direitos humanos. Não é isso. Nós precisamos, portanto, fazer da política de direitos humanos, que é uma política de segurança pública, tem que estar conectado.

Política de segurança pública é política de direitos humanos. Nós precisamos, portanto, fazer com que isso seja difundido também ideologicamente. Então, é uma disputa ideológica. No sentido de dizer que a forma correta de se pensar segurança é pensar a partir de uma política que respeita os direitos humanos. E quem não entender isso, eu falo inclusive das autoridades, tem que ser responsabilizado. Falar de direitos humanos não quer dizer que não tenhamos que usar a força do estado, que nós não tenhamos que ser mais duros. Mas essa dureza, essa força tem que ser usada para proteger as pessoas de populações mais vulneráveis.


Foto: reprodução Metrópoles | Mario Sérgio Telles / reprodução Metrópoles

Reforma tributária: CNI defende Imposto sobre Valor Agregado Único em 2023

Deborah Hana Cardoso | Metrópoles

Defendido pela indústria e pelo setor financeiro e considerado o “filé mignon” das propostas já apresentadas, o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) Único deverá reunir uma gama de tributos federais, estaduais e municipais em uma única alíquota. O novo governo já sinalizou que pretende retomar as discussões sobre uma reforma tributária no próximo ano.

Os parlamentares, no entanto, discutem duas opções: se seria aplicado o IVA Único, que reuniria todos os impostos em uma única alíquota; ou o Dual, que faria a distinção entre impostos federais e estaduais. “A CNI defende o IVA Único, como alavancador do crescimento econômico no Brasil”, explicou ao Metrópoles o gerente-executivo de economia da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Mário Sérgio Telles (imagem em destaque).

As pretensões da indústria, porém, esbarram em muitos fatores: governos federal, estadual, municipal; serviços; agro; e população. “São interesses conflitantes, que dificultam a reforma”, avalia Telles.

“Governos, estados e municípios – cada um briga para arrecadar mais. Tem as empresas, que buscam simplificação para pagar menos e ganhar mais; e o consumidor, que quer pagar menos”, explicou Jules Queiroz, doutor em direito econômico, financeiro e tributário pela Universidade de São Paulo (USP).

De acordo com Telles, o governo Lula já fez acenos positivos em relação à pauta. “Há manifestações favoráveis internas dentro do governo eleito, como Simone Tebet e o próprio Geraldo Alckmin. Também existe apoio para a reforma em diferentes níveis, incluindo integrantes do PT e da ala técnica; Pérsio Arida é favorável”, afirma.

“Ela [a reforma tributária] ajudará o Brasil a crescer. Tem efeito na produtividade, simplifica, reduz custos, evita a guerra fiscal”, disse o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB), ao jornal O Globo.

Telles foi questionado se o nome escolhido para o Ministério da Fazenda poderia influenciar o andamento da pauta no Congresso. “Não vejo que o próximo ministro seja um problema para o avanço da reforma tributária; é uma pauta que tem um apoio amplo”, declarou.

A reforma precisa andar no período da “lua de mel” do governo, ou seja, nos primeiros seis meses de 2023, quando há popularidade do presidente eleito e “boa vontade” do Parlamento. Outras gestões, inclusive a de Bolsonaro, não conseguiram avançar com a pauta. “O governo de Jair Bolsonaro autossabotou a própria reforma, pois o debate do IVA estava mais maduro, e Paulo Guedes insistiu em uma CPMF”, explicou Telles.

Impostos e federalismo

Especialistas ouvidos pelo Metrópoles consideram que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 110/2019, que pretende criar o Imposto sobre Valor Agregado (IVA), apresenta o texto mais “maduro”. O projeto segue o modelo francês de tributação, que está vigente no país europeu desde 1930 e deve desembarcar no Brasil quase 100 anos depois.

O IVA Único substituiria PIS (Programa de Integração Social), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e Imposto Sobre Serviços (ISS). “O IVA, diferentemente da Contribuição Social de Bens e Serviços (CBS), é o filé da discussão.”

A PEC nº 110/2019 une todos os tributos da Federação – não só os federais, como queria Paulo Guedes [com a CBS]”, explicou Jules Queiroz.

“Uma reforma tributária deve tributar o consumidor, e não a origem, o que beneficiaria o Nordeste e o Norte. Mas isso faria o Sul e o Sudeste perderem muito. Isso tem que ser conversado, implementado de forma gradual, para que a Federação seja reequilibrada”, completou Jules.

O popular IVA Único também recebe críticas. “Há preocupação com o federalismo brasileiro, em se manter a autonomia administrativa dos estados e municípios”, disse o advogado tributarista Bruno Teixeira, sócio do escritório Tozzini Freire Advogados. “O [IVA] Dual se adapta melhor às necessidades do federalismo brasileiro”, observou Jules.

“A reforma tem de levar em consideração as desigualdades regionais […]. Há estados que dependem de incentivos fiscais para a manutenção de sua atratividade, como a Zona Franca de Manaus”, finalizou Bruno Teixeira.


Foto: Reprodução Brasil de Fato | Brasil usa agrotóxicos proibidos na União Europeia - Foto: Getty Images

Relator da ONU falará ao Senado nesta terça (22) sobre "Pacote do Veneno"

Cristiane Sampaio | Brasil de Fato

O relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Tóxicos e Direitos Humanos, Marcos A. Orellana, falará ao Senado na próxima terça-feira (22) durante audiência pública sobre o "PL do Veneno". O emissário foi convidado pelos parlamentares da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), onde tramita atualmente o Projeto de Lei (PL) 1459/2022.

A proposta, que modifica o marco legal sobre pesticidas no Brasil e facilita o registro desse tipo de produto, está sob a alçada do Senado desde junho deste ano, após aprovação na Câmara dos Deputados.  

O texto tem alta impopularidade, especialmente entre segmentos do campo, ambientalistas e outros especialistas que alertam para os riscos do consumo de agrotóxicos. A proposta figura entre os destaques da agenda defendida pela bancada ruralista e é de autoria do ex-senador e ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi, filiado ao PP, um dos expoentes da elite agrária nacional.

A audiência do dia 22 foi solicitada pelos senadores Paulo Rocha (PT - PA), Zenaide Maia (Pros-RN), Jean Paul Prates (PT-RN), Eliziane Gama (Cidadania-MA), Dário Berger (PSB-SC) e Acir Gurgacz (PDT-RO). O evento deve contar também com a presença de representantes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Agricultura (Mapa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

O agendamento da sessão tem como pano de fundo o ímpeto da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), que tenta fazer o PL avançar na Casa, e também as manifestações já feitas pela ONU a respeito do tema. Em junho deste ano, por exemplo, uma nota de especialistas do organismo chegou a pedir ao Senado que rejeitasse o PL 1459.

O grupo destacou, na ocasião, que a eventual aprovação seria um retrocesso ambiental no país, que já vem acumulando uma série de problemas na área de meio ambiente, especialmente nos últimos quatro anos. Entre outras pontos, a ONU afirmou, no documento, que é falsa a ideia de que a adoção de agrotóxicos seja necessária à alimentação do planeta.

O relator  

Dedicado ao tema das consequências causadas pela gestão ambientalmente correta e pelo descarte de substâncias e resíduos perigosos, Marcos A. Orellana tem atuação focada na área de direitos humanos. A expectativa é de que, ao participar da audiência, ele aponte aspectos que permeiam a utilização de agrotóxicos, como é o caso do risco que oferecem para o lençol freático, a produção de alimentos saudáveis e as comunidades que vivem no seu entorno.

O relator já se pronunciou criticamente a respeito do assunto em outros momentos. Em entrevista concedida ao Brasil de Fato em junho deste ano, ele destacou, por exemplo, que o "Pacote do Veneno" pode se tornar uma das legislações mais permissivas do mundo aos agrotóxicos, qna comparação do Brasil com os demais membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

"Não há dúvida de que foi feito sob medida para os interesses de um poderoso lobby agroindustrial, em detrimento dos direitos básicos de todos à saúde, à integridade física e ao meio ambiente saudável", afirmou Orellana.

Edição: Thalita Pires

Matéria publicada originalmente no Brasil de Fato


Foto: reprodução Flickr

O encaminhamento da questão fiscal

Benito Salomão* | Folha UOL

Com o processo de transição de governo em curso, ganha relevância agora o encaminhamento da questão fiscal, dado o teor das promessas realizadas durante a campanha.

Em artigo publicado nesta Folha ("Os limites eleitorais do déficit público", 3/9), argumentei, com base em revisão da literatura empírica mais recente, que o manuseio eleitoral de expansões fiscais não seria suficiente para eleger o incumbente Jair Bolsonaro (PL). O alerta vale também para o governo que começará a partir de 2023, de forma que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) será tão mais bem-sucedido em seu terceiro mandato quanto mais capaz for de conciliar agenda social com responsabilidade fiscal.

A boa notícia é que responsabilidade social e fiscal não são agendas antagônicas. Lula foi eleito prometendo aumentar o salário mínimo e manter o valor de R$ 600 para o Auxílio Brasil, além de ampliar o benefício em R$ 200 para famílias com crianças de até seis anos. Todas as agendas com elevado impacto fiscal. Para encaminhá-las, além de outras promessas que irão demandar recursos, o governo está negociando com o Congresso mudanças no Orçamento de 2023, o que pode ser alvo de críticas de setores mais fiscalistas da opinião pública.

É importante salientar, no entanto, que o equilíbrio fiscal é um problema de otimização dinâmica. Ou seja: em modelos macroeconômicos dinâmicos, uma expansão fiscal de curto prazo das despesas públicas, a fim de fazer face a algumas necessidades, pode não ter efeitos duradouros no tempo e, portanto, não comprometer a sustentabilidade fiscal de longo prazo.

Nesses modelos, agentes formam expectativas acerca do comportamento futuro da economia. Se eles creem que uma expansão fiscal terá efeitos duradouros, passam a projetar juros e impostos mais altos, tomando posições defensivas quanto a consumo e investimento. Se, por outro lado, o governo é crível e sinaliza que a expansão fiscal estará contida em um momento do tempo, isso estimula a confiança dos agentes, que passam a cooperar com o governo em suas decisões de consumo e investimento.

Para que os fiscalistas empedernidos sejam convencidos de que o plano social de Lula não irá impor custos fiscais de longo prazo, o novo governo deverá sinalizar com uma nova regra. O teto de gastos foi a regra fiscal vigente até 2021, quando morreu após a PEC dos Precatórios. Isso custou uma sensível piora do ambiente macroeconômico brasileiro, com juros e inflação altas, além de câmbio depreciado.

Uma nova regra fiscal —sinalizada já na transição e com foco na contenção do gasto obrigatório a partir de 2024 (independentemente dos detalhes técnicos)— pode ser o ingrediente que falta para que Lula ponha em prática suas promessas de campanha, ganhando confiança, acomodando expectativas e permitindo a queda dos juros e da inflação, além do fortalecimento do real.

*Benito Salomão é Doutor em economia (UFU)

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Artigo publicado originalmente no Folha UOL


Revista online | Breve notícia da terra devastada

Luiz Sérgio Henriques*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)

Em Washington, mal começado o governo e já na primeira viagem internacional, o presidente Jair Bolsonaro (PL) cunhou a epígrafe definitiva da obra a que se dedicaria com afinco nos anos seguintes. Conservadores de variado coturno – ou melhor, reacionários do calibre de Olavo de Carvalho e Steve Bannon – ouviram-no proclamar o sentido da “missão divina” que se autoatribuía e que consistia em “desconstruir” e “desfazer” regras e valores, hábitos e instituições, antes de começar a pôr de pé a parte supostamente positiva da sua agenda. 

Livramo-nos há pouco da promessa bolsonarista da “construção” a ser cumprida em mais um mandato, mas é forçoso admitir que só quatro anos bastaram para legar um cenário de terra devastada. Em outras palavras, a metade inicial do projeto está realizada. A celebração grosseira do “politicamente incorreto” contaminou parte das elites e infiltrou-se por toda a sociedade, criando um reacionarismo de massas agressivo e destruidor. 

Juristas defenderam uma leitura golpista da Constituição – em particular, do artigo 142, simultaneamente curto e prolixo, que na aparência dá voz a quem numa democracia deve ser o “grande mudo”. Médicos militaram, e talvez militem ainda, no movimento antivacina, deixando um traço lastimável de retrocesso civilizatório. E a violência política tornou-se um recurso, quando não legítimo, ao menos aceitável para setores da sociedade contaminados pelo culto às armas e pela tentação de eliminar fisicamente o inimigo interno – se preciso for. 

Confira, a seguir, galeria de imagens:

Reprodução: Unisinos
Reprodução: Jornal da USP
Foto: Drazen Zigic/Shutterstock
Foto: Jesse33/Shutterstock
Reprodução: Proceso Digital
Foto: Day Of Victory Studio/Shutterstock
Foto: Wellphoto/Shutterstock
Foto: Jacob Lund/Shutterstock
Foto: Daniel Caballero/Valor Econômico
Foto: Vincenzo Lullo/Shutterstock
Reprodução: Unisinos
Reprodução: Jornal da USP
Young,African,American,Woman,Shouting,Through,Megaphones,While,Supporting,Anti-racism
Foto: Jesse33/Shutterstock
Reprodução: Proceso Digital
Raising,Hands,For,Participation.
Protest.,Public,Demonstration.,Microphone,In,Focus,Against,Blurred,Audience.
Female,Activist,Protesting,With,Megaphone,During,A,Strike,With,Group
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London,,United,Kingdom,,June,06,2020:,Thousandths,Of,People,Attended
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Reprodução: Unisinos
Reprodução: Jornal da USP
Young,African,American,Woman,Shouting,Through,Megaphones,While,Supporting,Anti-racism
Foto: Jesse33/Shutterstock
Reprodução: Proceso Digital
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Na verdade, a contrarrevolução política e cultural a que fomos submetidos desde 2019 – e a que, em certa medida, assistimos “bestializados” – teve mais de uma vertente. Desde logo, vimo-nos arrastados pela grande crise das democracias contemporâneas, que está longe de ter se esgotado e parece renovar-se em cada eleição e em cada momento. 

Uma crise estrutural, certamente, com aspectos até bizarros. Não é comum que alguém como Viktor Orban, autocrata de um país distante e pequeno (ainda que culturalmente muito relevante), torne-se uma espécie de ídolo global dos “revolucionários” da extrema-direita, inclusive no país-chave do Ocidente, os Estados Unidos. Mais do que ídolo, um modelo para o programa de corrosão das democracias aplicado em várias realidades nacionais. Pois a Viktor Orban fomos também apresentados na posse mesma do presidente Bolsonaro, sinalizando uma aliança e uma afinidade que até então inocentemente ignorávamos.   

Há também uma dimensão propriamente interna – ou, mais do que isto, um emaranhado de contradições que são coisas nossas e nos levaram à beira do precipício. A exasperação do conflito político, especialmente a partir de 2013, teve efeitos desastrosos, cuja enumeração exaustiva não cabe aqui.

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Mencionemos só um exemplo. Não soubemos lidar nada bem com o instituto do impeachment. Todos os governos não petistas, sem exceção, foram alvo de insistentes pedidos de impedimento por parte do PT ou de figuras próximas. E, no entanto, o impeachment de Dilma Rousseff, num contexto de recessão brutal e perda de apoio parlamentar, teve como contrapartida a acusação inapelável de “golpe”, como se 2016 tivesse sido o marco zero da ruptura institucional – o que, a bem da verdade, não tivemos em momento algum, sequer em 2018 e menos ainda, obviamente, em 2022. Aliás, com seus sinais de nova esperança, a data mais recente reuniu numa só trincheira todos os personagens de vocação democrática, inclusive os que antes se contrapuseram duramente.

Coisa bem diferente é postular que o segundo mandato do aspirante a autocrata teria aprofundado a ação da toupeira ou, para usar termo militar, o trabalho de sapa contra as instituições consagradas na Constituição. Uma democracia fortemente tutelada e uma sociedade conflagrada poderiam, em conjunto, somar a repressão “tradicional” dos aparelhos de Estado e a violência nascida das entranhas do corpo social, violando todas as dimensões da liberdade duramente conquistadas após a ditadura. E assim terminariam por se desenhar as linhas de um pós-fascismo, ou de um fascismo do século XXI, encerrando tragicamente, com um grau maior ou menor de coerção, o mais longo período de vida democrática que tivemos sob a República.  

Há quem diga que construções intelectuais dizem pouco, quase nada, sobre as lutas cruas pelo poder a que se entregam de corpo e alma as forças políticas e que são sua razão única de ser. Afinal, o cinismo autoriza a dizer que programas convincentes sempre podem ser encomendados na primeira esquina e nunca falta gente para fornecer discursos altissonantes. 

A vantagem de conjunturas críticas, como esta que ainda não deixamos para trás, é que evidenciam a conexão mais íntima entre ideias e atitudes, ideólogos e políticos – mesmo que uns sejam farsantes e os outros toscos. Uma conexão que funciona para o bem e, como acabamos de ver, vezes sem conta para o mal, o que talvez seja uma das advertências mais poderosas sobre as possibilidades de degradação social e política sempre latentes em qualquer circunstância.    

Sobre o autor

*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta

* O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de novembro de 2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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