Day: novembro 17, 2021

“Precisamos amadurecer discussão da reforma do Imposto de Renda”

Avaliação é do economista Bernard Appy, em entrevista à revista Política Democrática online de novembro

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

O economista Bernard Appy, ex-secretário executivo e de política econômica do Ministério da Fazenda, diz que o Brasil precisa avançar na discussão da reforma do Imposto de Renda. “Sem dúvida, é um daqueles temas que mais cedo ou mais tarde o Brasil vai acabar enfrentando e, espero eu, enfrentando de forma adequada”, afirma, em entrevista exclusiva à revista mensal Política Democrática online de novembro (37ª edição), lançada nesta quarta-feira (17/11).

A revista é editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. A instituição disponibiliza, gratuitamente, em seu portal, todo o conteúdo da publicação mensal na versão flip.

 “Ainda precisamos amadurecer mais na discussão da reforma do Imposto de Renda. Olhar as várias alternativas que existem e avaliar custos e benefícios de cada uma delas”, afirma Appy. Um dos maiores especialistas no sistema tributário brasileiro, ele é do Centro de Cidadania Fiscal – um think tank independente, com objetivo de contribuir para melhorar a qualidade do sistema tributário no país e para o sistema de gestão fiscal brasileiro.

Na entrevista, Appy afirma que a discussão sobre a reforma do Imposto de Renda é inevitável. “Isso vai acabar acontecendo. Caso contrário, vamos continuar sendo um país que não cresce, um país excessivamente desigual. Temos de enfrentar essas questões se pretendermos tornar o Brasil um país mais inclusivo, que ofereça perspectivas para as pessoas”, destaca.

De acordo com o economista, não adianta resolver o problema distributivo e não ter crescimento. “É fundamental abrir oportunidades para as pessoas com o crescimento econômico. E a reforma tributária trata dessas questões centrais para o futuro do Brasil: a questão distributiva, a questão do crescimento e a questão da inclusão social”, pondera.

Appy, que se dedica a desatar o complexo sistema tributário brasileiro desde a década passada, foi um dos mentores do estudo que deu base para a criação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45, do deputado federal Baleia Rossi (MDB-SP). Por decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a comissão especial da Casa que analisava o mérito da reforma tributária foi suspensa em maio passado.

O projeto da PEC 45 teve como principal ponto a unificação de tributos federais (PIS, Cofins e IPI), estaduais (ICMS) e municipais (ISS). Batizado de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), o novo tributo seguiria o modelo do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), aplicado em outros países.

Atualmente a reforma tributária está em discussão no Senado Federal por meio da Proposta de Emenda à Constitução 110/2019, que prevê a substituição de nove tributos, o IPI, IOF, PIS, Pasep, Cofins, CIDE-Combustíveis, Salário-Educação, ICMS, ISS, pelo IBS. A diferença entre as propostas é essencialmente de prazo: 2 anos de teste e 8 de transição na PEC 45 e 1 ano de teste e 5 de transição na PEC 110.     

Veja lista de autores da revista Política Democrática online de novembro

A íntegra da entrevista de Appy pode ser conferida na versão flip da revista, disponível no portal da FAP, gratuitamente. A nova edição da revista da FAP também tem reportagem especial sobre as novas composições familiares, além de artigos sobre economia, cultura e política.

Compõem o conselho editorial da revista o diretor-geral da FAP, sociólogo e consultor do Senado, Caetano Araújo, o jornalista e escritor Francisco Almeida e o tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques. A Política Democrática online é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado.

Veja todas as edições da revista Política Democrática online! 


Em intervenção inédita, gestão Bolsonaro faz seleção de questões do Enem

Desde a eleição, presidente busca controlar conteúdo, por meio de impressão prévia da prova, análises e até comissões externas ao Inep

Renata Cafardo e Júlia Marques / O Estado de S.Paulo

O governo Jair Bolsonaro tem usado diversas estratégias, como a impressão prévia de provas e a análise do banco de questões por comitês externos ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), para tentar controlar o conteúdo do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Servidores que pediram exoneração do órgão federal falam em pressão para trocar questões e o Estadão apurou que já houve supressão de itens "sensíveis" na prova que será aplicada nos dias 21 e 28 de novembro.

Segundo relatos à reportagem, 24 questões foram retiradas após uma “leitura crítica”, sob o argumento de serem “sensíveis”. Depois, 13 delas voltaram a ser incluídas e 11 foram definitivamente vetadas.

Leia Também
Bolsonaro garante Enem e diz que prova 'começa a ter a cara do

Para essa análise das questões, servidores do Inep tiveram de imprimir a prova previamente dentro da sala segura do órgão, em um procedimento não adotado em anos anteriores. A sala segura é um ambiente criado para manter o sigilo absoluto da montagem das provas, com detector de metais e senhas nas portas. Quem examinou uma primeira versão do Enem deste ano foi o diretor de Avaliação da Educação Básica do Inep, Anderson Oliveira – que está no cargo desde maio.

As comissões de montagem da prova sugeriram outras perguntas para substituir as 24 retiradas, mas o Enem acabou descalibrado – o exame tem uma quantidade de questões consideradas fáceis, médias e difíceis. Por isso, algumas tiveram de ser reinseridas no teste. Procurado, Oliveira não quis dar entrevista.

Em 2020, segundo apurou o Estadão, um dos que entraram na sala segura para ver as questões foi o general da reserva Carlos Roberto Pinto de Souza, ex-comandante do Centro de Comunicação do Exército, que ocupava o mesmo cargo de Oliveira. Ele morreu de covid e foi substituído pelo tenente-coronel-aviador Alexandre Gomes da Silva.

Neste mês, houve 37 pedidos de exoneração de servidores do Inep, que denunciaram a pressão interna e a “fragilidade técnica” da cúpula da autarquia responsável pelas avaliações do governo. O presidente Jair Bolsonaro afirmou na segunda-feira, 15, que o Enem começa agora a “ter a cara” do governo. Acrescentou que “ninguém precisa estar preocupado com aquelas questões absurdas do passado”.

O vice-presidente Hamilton Mourão, porém, negou interferência, com a alegação de que esse era o jeito de o presidente falar. Já o ministro da Educação, Milton Ribeiro, inicialmente, afirmou que teria acesso prévio às perguntas. Depois, recuou: disse na terça-feira que “não houve interferência”.

As questões do Enem são feitas por professores contratados pelo Inep há anos. Depois, comissões técnicas do órgão montam a prova de cada uma das quatro áreas, seguindo a metodologia de Teoria de Resposta ao Item (TRI), que calibra a dificuldade do exame.

Segundo servidores, porém, o atual presidente do órgão, Danilo Dupas, deixou claro que a prova não poderia ter perguntas consideradas inadequadas pelo governo. Essa pressão era entendida por servidores como um assédio moral e fez parte das denúncias. De acordo com eles, Oliveira também era pressionado e chegou a divulgar um documento dizendo que apoiava o pedido de exoneração dos seus subordinados. Eles afirmaram ainda que o clima de pressão atual já levou a uma autocensura dos grupos que escolhem as questões. Temas como sexualidade e ditadura militar, por exemplo, deixaram de ser sugeridos.

A intenção do governo de mexer no Enem paira no Inep desde a eleição de Bolsonaro, em 2018, quando ele criticou uma questão que mencionava um dialeto de gays e travestis. A então presidente do Inep era Maria Inês Fini, que criou o exame no governo Fernando Henrique Cardoso e voltara ao órgão na gestão Michel Temer. Ela conta que sempre leu o Enem antes porque esse era o seu papel, mas no computador e em “um trabalho técnico e não fiscalizador”.

“Essa coisa de considerar questões sensíveis nunca existiu”, diz. “Hoje, quem está lendo não entende nada de avaliação.” A reportagem consultou outros ex-presidentes e todos afirmaram nunca analisar a prova previamente. Procurado sobre o assunto na terça-feira, o Inep não se manifestou.

Comissão para avaliar Banco Nacional de Itens do Enem

No primeiro ano do governo Bolsonaro, uma comissão foi criada para avaliar a pertinência do Banco Nacional de Itens do Enem com a “realidade social” do Brasil. O ministro da Educação à época, Abraham Weintraub, afirmou que as questões não viriam carregadas “com tintas ideológicas”. Essa comissão chegou a desaconselhar, em 2019, o uso de 66 questões por promover “polêmica desnecessária” e “leitura direcionada da história” ou ferir “sentimento religioso”.

Neste ano, houve nova tentativa de criar comissão para avaliar as questões. O Inep preparava uma portaria para formar um grupo permanente que deveria barrar “questões subjetivas”. A ideia era que se abstivesse de “itens com vieses político-partidários e ideológicos”. O caso foi levado ao Ministério Público Federal, que recomendou, em setembro, que o Inep desistisse dessa comissão. Em resposta, o órgão afirmou que a recomendação foi atendida.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,gestao-bolsonaro-ja-cortou-questoes-do-proximo-enem,70003900649


Comissão de Juristas Negros quer observatório contra racismo

Grupo criado pela Câmara com 20 especialistas, incluindo ministro do STJ, deve sugerir mudanças na legislação

Tayguara Ribeiro / Folha de S. Paulo

A criação de um observatório permanente contra o racismo deve ser uma das propostas do relatório final de uma comissão de juristas negros criada pela Câmara dos Deputados.

O grupo foi formado para avaliar mudanças na legislação de combate ao racismo no Brasil. O texto final, que tem como relator Silvio Almeida, professor da Fundação Getulio Vargas e colunista da Folha, deverá ser entregue ainda neste mês.

A ideia do observatório é contar com a participação dos juristas, mas também da sociedade civil por meio de movimentos ou entidades organizadas, para que os integrantes do grupo acompanhem a tramitação e eventuais ajustes nas propostas da comissão.

Outro ponto que deve constar do relatório final é a sugestão de mudança das leis de cotas, com a fixação de metas objetivas, sistema de monitoramento e critério temporal passando a ser atrelado à comprovação de atingimento de metas.

"Dividimos nossa abordagem em eixos de enfrentamento ao racismo estrutural e institucional, com proposições que consideramos prioritárias e estratégicas", afirma Rita Cristina de Oliveira, defensora pública federal e uma das integrantes da comissão de juristas.

Rita Cristina de Oliveira, defensora pública, durante esta reunião da Comissão de Juristas Negros - Reprodução

Segundo ela, que também é coordenadora do grupo de trabalho de políticas etnorraciais da Defensoria Pública da União, esses eixos são de enfrentamento ao racismo nos setores econômico, público e privado, além do sistema de justiça criminal e do campo dos direitos sociais.

O sistema de Justiça brasileiro também será objeto de propostas no texto final do relatório elaborado pela Comissão de Juristas Negros da Câmara.

"De uma maneira muito especial no que concerne às dimensões criminais desse sistema, incluindo a abordagem. Isso não significa que haverá mudança no código, mas sim uma reflexão que faça com que o que é tido como ilícito penal no tema de racismo seja respeitado e de fato efetivado", explica Ana Claudia Farranha, professora de Direito Constitucional da UnB (Universidade de Brasília) e também integrante do grupo.

Com a ajuda de consultores da Câmara dos Deputados, os integrantes da comissão realizaram um levantamento dos principais projetos de lei que existem na Casa e analisaram como essas propostas poderiam ser melhoradas levando em conta os problemas relacionados ao racismo.

O relatório final também deverá apresentar sugestões a respeito da saúde das mulheres negras e propostas para o fortalecimento da lei que obriga o ensino da história africana nas escolas e que vem sofrendo dificuldades para ser implementada.

"A comissão é uma resposta ao assassinato do João Alberto Silveira Freitas, no Carrefour, no ano passado. É uma comissão para revisão da legislação, e por isso foi um trabalho muito extenso", conta Ana Claudia Farranha.

João Alberto Silveira Freitas, 40, morreu após ser agredido por seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre, em 2020 - Reprodução/TV Folha

Além dos integrantes que atuaram de forma continua na comissão, o grupo convidou diversos especialistas para debater alguns temas específicos, como é o caso de Paulo Soares, procurador federal da AGU (Advocacia-geral da União).

Ele apresentou ao colegiado análises sobre a questão dos quilombolas no país avaliando a legislação que trata do tema, segurança jurídica em relação aos territórios e ausência de recursos orçamentários para titulações.

"É importante pensar em instrumentos jurídicos que deem garatias. Não basta apresentar propostas, é preciso teorizar sobre como implementar as proposições juridicamente."

Durante o debate sobre o relatório premiliminar produzido pela comissão, no dia 25 de outubro, Silvio Almeida falou sobre a necessidade de iniciativas para a prevenção, a detecção e a responsabilização de práticas racistas no setor privado.


Foto: AFP
Foto: AFP
Foto: Olivier Doullery / AFP
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
previous arrow
next arrow
 Foto: AFP
 Foto: AFP
Foto: Olivier Doullery / AFP
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
previous arrow
next arrow

Apesar dos temas debatidos no grupo, Almeida destacou durante a análise do relatório preliminar que o racismo faz parte da estrutura da sociedade brasileira e que, por isso, o trabalho desenvolvido pela comissão enfrentará uma limitação de alcance.

"Embora essa comissão tenha no nome que vai tratar do racismo estrutural, ela vai tratar apenas do racismo institucional, que é possível, porque o racismo estrutural envolve questões que estão muito além da possibilidade de qualquer jurista, de qualquer norma jurídica, qualquer movimento institucional nos limites da sociabilidade que nos apresenta hoje é capaz de resolver", disse.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/11/comissao-de-juristas-negros-quer-observatorio-contra-racismo-e-meta-para-cotas.shtml?origin=uol


Maioria dos autocratas precisa de dois mandatos para destruir democracia

Casos da Hungria, Venezuela, Turquia e Nicarágua mostram que escalada autoritária se radicaliza a partir da reeleição

Oliver Stuenkel / El País

No começo dos anos 1990, um outsider de currículo irrisório conseguiu chegar à presidência do Peru com um discurso vago e antiestablishment. Em menos de dois anos no cargo, articulou um golpe de Estado que lhe renderia quase 10 anos no poder e uma ficha criminal enciclopédica. Em tempo recorde, a ditadura de Alberto Fujimori suspendeu o Congresso e a Constituição, acabando com a independência do Judiciário e do Ministério Público. Desde então, seu regime de perseguições, supressão da liberdade de expressão e abusos sistemáticos dos direitos humanos é o sonho de consumo de autoritários de todas as partes do mundo não apenas pela virulência, mas sobretudo pela agilidade.

O que torna o caso de Fujimori tão peculiar é a rapidez com a qual o peruano conseguiu efetivar sua passagem de presidente eleito a ditador, concentrando todo o poder no Executivo e corroendo a ordem democrática logo no primeiro mandato. Essa eficiência é motivo de admiração e inveja entre políticos com ambições autoritárias até hoje. Isso porque a maioria dos autocratas costuma demorar bem mais tempo para atingir seus objetivos, perdendo anos preciosos de poder absoluto e arriscando-se a ter seus planos interrompidos por um eventual fracasso em se reeleger. Casos como o de Hugo Chávez na Venezuela, de Daniel Ortega na Nicarágua, de Viktor Orbán na Hungria e de Tayyip Erdogan na Turquia mostram que, na maior parte das vezes, o autoritário precisa se reeleger ao menos uma vez para conseguir afundar o sistema democrático. Em todos esses exemplos, as ações do primeiro mandato já disparavam os alarmes dos observadores internacionais, mas foi a partir do segundo que o autoritarismo tirou a luva de pelica e mostrou suas garras.

As tendências autoritárias de Hugo Chávez já eram perceptíveis muito antes de ele assumir a presidência, em 1999. Afinal, sete anos antes, o então tenente-coronel já tinha feito uma tentativa de golpe contra o presidente Carlos Andrés Pérez. Mesmo assim, medidas claramente ditatoriais como não renovar licenças de canais de TV críticos ao Governo, enfraquecer a assembleia nacional e prender e intimidar juízes só começaram a ser implementadas após sua primeira reeleição, em 2006. No caso de Daniel Ortega, as coisas começaram de um jeito ainda mais sutil. Logo após sua primeira eleição, em 2006, o país sofreu uma ligeira melhora na análise do Índice Democrático da revista britânica The Economist, alcançando uma pontuação melhor que a de vários países da região, inclusive Equador e Honduras. No entanto, a partir do segundo mandato, em 2011, a democracia nicaraguense entrou em declínio permanente, com ampla cooptação do judiciário e das autoridades eleitorais. O resultado é que a eleição de fachada que lhe garantiu o terceiro mandato, em 2021, terminou com sete pré-candidatos presos a poucos meses do pleito.


previous arrow
next arrow
previous arrow
next arrow

O quadro se repete mesmo em países onde a democracia parecia mais consolidada. Quando Viktor Orbán assumiu o comando da Hungria, em 2010, o país se encontrava várias casas à frente da maior parte da América Latina no Índice Democrático da The Economist. Durante seu segundo mandato, porém, Orbán conseguiu enfraquecer as instituições húngaras de tal forma que hoje o país está com pontuação pior no Índice Democrático do que o Brasil, a Argentina e até mesmo a combalida Filipinas, cuja democracia vem sofrendo golpes consecutivos nas mãos do populista Rodrigo Duterte.

É por isso que impedir a reeleição de um autoritário é ainda mais importante do que barrar sua chegada ao poder. Na República Tcheca, a oposição entendeu o recado e tomou uma postura inédita para evitar a reeleição de Andrej Babis ao cargo de primeiro-ministro. Juntas, as três maiores frentes opositoras do país passaram por cima de discordâncias ideológicas basicamente inconciliáveis e uniram-se em uma ampla coalizão cujo único objetivo era derrotar o incumbente. Contra todas as chances e previsões de analistas políticos, a frente opositora derrotou o projeto autoritário armada apenas com a certeza de que a democracia tcheca dificilmente sobreviveria a outros quatro anos sob as rédeas de Babis. Nesse sentido, uma ajuda fundamental foi fornecida pelo próprio Babis, que deixou claro quais seriam seus planos para o segundo mandato e, na reta final da campanha, convidou Viktor Orbán para participar de seus comícios.

É verdade que cada líder autoritário segue sua própria receita, mas um ingrediente indispensável a quase todas elas é o tempo. Para implementar um regime autoritário, é preciso reduzir a independência do Congresso e do poder judiciário, e isso costuma ser um processo mais demorado. A maioria das constituições limita o poder do Executivo em nomear juízes, o que significa que o incumbente precisa de mais de um mandato para fazer alterações expressivas na composição da casa. Trump, por exemplo, conseguiu nomear 3 juízes de um total de 9 na Suprema Corte, onde o cargo é vitalício. Já Bolsonaro encerrará o primeiro mandato com 2 nomeações de um total de 11 membros do Supremo. Caso seja reeleito, nomeará ao menos outros três, já que Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber se aposentarão até 2023. Isso fora a possibilidade de utilizar artimanhas como aumentar o número de juízes, como foi feito na Venezuela em 2004, ou baixar a idade de aposentadoria para expulsar desafetos, como foi feito recentemente na Polônia e em El Salvador. Foi nesse intuito que a deputada Bia Kicis propôs, em 2019, uma PEC para reduzir a idade de aposentadoria de juízes do STF de 75 para 70. Caso a PEC seja aprovada, Bolsonaro poderia nomear seis juízes em seu segundo mandato.

Porém, há outro fator que explica por que a reeleição de um autoritário geralmente representa o começo do fim para os regimes democráticos. A primeira eleição de um candidato com retórica autoritária muitas vezes ocorre durante profundas crises econômicas, no embalo de uma retórica antiestablishment que costuma atrair eleitores. Muitos deles podem até discordar dos comentários mais radicais de um Trump, Duterte, Orbán, Babis, Erdogan ou Chávez, mas, naquele momento, não enxergam outra alternativa. Ironicamente, boa parte dos eleitores que concedem ao autoritário esse primeiro mandato pecam justamente por um excesso de confiança de que as regras do jogo político acabariam moderando seus excessos. É como se esse voto não tivesse sido no autoritário e em suas propostas, mas contra o establishment e a sensação de inação passada pelos outros candidatos. Esse voto sem grande apoio faz com que muitos desses eleitores rapidamente vivenciem um sentimento de vergonha de sua própria escolha. Do ponto de vista do autoritário, essa falta de convicção impõe certa moderação nos primeiros anos.


Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Wesllen Novaes/Fotos Públicas
Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação
Foto: Roque de Sá/Agência Senado
Foto: Sipa/USA
Foto: Roque de Sá/Agência Senado
Foto: Marcelo Seabra/Agência Pará
Foto: Guilherme Gandolfi/Fotos Públicas
Foto: Guilherme Gandolfi/Fotos Públicas
Foto: Ribamar Neto/Divulgação
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
previous arrow
next arrow
 
Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Wesllen Novaes/Fotos Públicas
Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação
Foto: Roque de Sá/Agência Senado
Foto: Sipa/USA
Foto: Roque de Sá/Agência Senado
Foto: Marcelo Seabra/Agência Pará
Foto: Guilherme Gandolfi/Fotos Públicas
Foto: Guilherme Gandolfi/Fotos Públicas
Foto: Ribamar Neto/Divulgação
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
previous arrow
next arrow

Uma vez reeleito, o autoritário ganha confiança. Enquanto a primeira vitória de um líder extremista pode ser vista como acidental, a reeleição tem um profundo impacto empoderador sobre o autocrata, permitindo uma escalada autoritária mais explícita. Mesmo um país com instituições tão resilientes quanto os Estados Unidos correria sérios riscos nessa segunda rodada. Durante a corrida de 2020, Thomas Wright, diretor do Centro de Estudos Americanos e Europeus do Instituto Brookings, escreveu que o Trump do segundo mandato seria ainda mais perigoso que o do primeiro. Após romper com o antigo chefe, seu ex-assessor, John Bolton, alertou para o fato de que a reeleição produziria um “Trump sem freios”.

Além de inflar o ego do incumbente, a reeleição de um líder com tendências autoritárias costuma abalar a oposição e a sociedade civil, dificultando qualquer tipo de reação. Diante da perspectiva de amargar oito anos na geladeira, parte dos opositores simplesmente se deixa cooptar pelo Governo. Outros perdem as esperanças e se retiram da vida pública. Foi isso que aconteceu na Venezuela, quando a segunda vitória de Chávez gerou um desânimo sem precedentes entre os opositores. Àquela altura, eles sabiam muito bem que o presidente ou seu sucessor provavelmente se perpetuariam no poder. Na Hungria, a reeleição de Orbán deu início à perseguição no mundo acadêmico, levando ao fechamento de uma das principais universidades do país.

O caso dos países que sofreram uma guinada autoritária, mas não repetiram o erro na eleição seguinte, costuma ser bem menos grave. Quase um ano após a saída de Trump, a democracia americana ainda apresenta sequelas de seu flerte autoritário, mas saiu dessa experiência relativamente ilesa. Com poucos meses da derrota de Babis, a República Tcheca ainda não deixou completamente a zona de risco, mas há grandes esperanças de que a aliança opositora leve o país a mares mais amenos. Em ambos os casos, a população soube aproveitar sua segunda chance e evitar o abismo.

Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-11-16/maioria-dos-autocratas-precisa-de-dois-mandatos-para-destruir-a-democracia.html?event_log=oklogin


Auxílio Brasil toma o lugar do Bolsa Família sob críticas e incertezas

Programa social que começou a ser pago nesta quarta-feira vai repassar 400 reais mensais a 14,5 milhões de famílias será automática

Felipe Betim / El País

O Governo Jair Bolsonaro começa a pagar nesta quarta-feira, 17 de novembro, o Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família. As críticas e incertezas sobre a nova política social são muitas, já que pretende substituir às pressas, com escassos estudos, um programa tido como exitoso nos últimos 18 anos. De acordo com as explicações do presidente da Caixa, Pedro Guimarães, os beneficiários do Bolsa Família não devem se preocupar com a transição, que será automática. “Não há necessidade de novo cadastro. Nós utilizaremos o mesmo cadastro dos beneficiários do Bolsa Família”, afirmou Guimarães. Estima-se que 14,5 milhões de famílias serão beneficiadas e, num primeiro momento, receberão em média 224,41 reais, segundo o Ministério da Cidadania. A expectativa é de ampliar para 17 milhões de famílias já em dezembro e passar a pagar 400 reais.

Mais informações
Réquiem pelo Bolsa Família, o programa eficaz (e barato) contra a pobreza se despede do Brasil

A operacionalização do programa é feita pelo Ministério da Cidadania e o DataPrev, que todos os meses farão uma reavaliação do programa. A Caixa, responsável somente pelo pagamento do benefício, disponibilizou dois aplicativos, o do Caixa Tem e do próprio Auxílio Brasil, através dos quais os beneficiários poderão consultar o benefício e as parcelas. Pelo Caixa Tem também será possível pagar boletos de concessionárias de serviços públicos, realizar transferências e, ainda, fazer compras com um cartão de débito virtual, como já funcionava com o Auxílio Emergencial.

De acordo com Guimarães, o calendário de pagamento também será o mesmo do Bolsa Família, começando nos últimos 10 dias úteis do mês, entre janeiro e novembro. Neste mês, os depósitos começam no dia 17 para os beneficiários que possuem o Número de Identificação Social (NIS) com final 1 e vão até o dia 30. Em dezembro, os depósitos serão feitos entre os dias 10 e 23.

O Bolsa Família pagava cerca de 190 reais para as famílias beneficiárias, mas o Ministério da Cidadania afirmou que o valor foi reajustado em 17,84% já neste mês de novembro, chegando a 224,41 reais de média. O Governo pretende conceder um benefício médio de 400 reais a partir de dezembro, mas o próprio Ministério da Cidadania evidencia o caráter transitório do programa. Em sua página na Internet, informa que o Governo dará “um complemento que garantirá a cada família o recebimento de pelo menos 400 reais mensais até dezembro de 2022″, ano de eleições. Depois disso, não se sabe. Esse é um dos fatores que gera insegurança aos contemplados pelo Bolsa Família, que funcionou por 18 anos.

No antigo programa, cerca 14,5 milhões de famílias eram beneficiadas, mas o Ministério da Cidadania promete que o Auxílio Brasil chegará a partir de dezembro a 17 milhões de famílias, ou mais de 50 milhões de brasileiros. “Com isso, será zerada a fila de espera de pessoas inscritas no Cadastro Único e habilitadas ao programa”, afirma a pasta. “O objetivo da medida é contemplar com o maior valor possível as famílias em condição de pobreza e de extrema pobreza, amenizando os efeitos da crise socioeconômica causada pela pandemia do novo coronavírus”.

As diferenças para o Bolsa Família

O texto da Medida Provisória (MP 1.061/21) que cria o programa Auxílio Brasil, enviado por Bolsonaro à Câmara dos Deputados em 9 de agosto, altera e acrescenta condições de acesso. A MP também não define valores nem critérios de pobreza, deixando a cargo do Governo decidir, a cada ano, quanto pagará de benefício. O Congresso tinha até o início de outubro para fazer alterações na MP e transformá-la em lei, mas acabou prorrogando o prazo. Como a MP tem validade imediata, o Auxílio Brasil já passou a valer.

Contudo, o Congresso, que já vem discutindo a criação de uma renda básica universal, deverá fazer alterações no novo programa. Portanto, ainda não se sabe quais elementos do texto MP permanecerão e o que será alterado. A Rede Brasileira de Renda Básica criticou o fato de que o atual desenho do programa cria uma série de benefícios auxiliares —“penduricalhos”, segundo especialistas— que geram ainda mais condicionantes para que as famílias tenham acesso a ele. Por exemplo, o Auxílio Brasil prevê um voucher creche para famílias que comprovem ter atividade remunerada ou emprego, ao invés de focalizar justamente nas que estão desempregas, subvertendo a lógica do Bolsa Família de combater a extrema pobreza.

O programa proposto por Bolsonaro também prevê um benefício de Inclusão Produtiva Rural e de Inclusão Produtiva Urbana, direcionados para trabalhadores rurais e das grandes cidades em atividade. Também traz um auxílio Esporte Escolar, para famílias de atletas, e uma Bolsa de Iniciação Científica Júnior. “A MP é cruel por criar categorias de benefícios que dependem de desempenho científico e esportivo que crianças e adolescentes não podem vislumbrar na rede escolar atual”, criticou a Rede Brasileira de Renda Básica quando o texto da MP foi enviado ao Congresso. A entidade também observa que a medida impõe “às famílias, majoritariamente chefiadas por mulheres, a responsabilidade de aumentar sua renda para receber o auxílio destinado à contratação de creches particulares, vinculando o direito de crianças às condições profissionais encontradas por seus pais”.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-11-17/auxilio-brasil-toma-o-lugar-do-bolsa-familia-sob-criticas-e-incertezas.html


O que alcançaram os movimentos anti-Bolsonaro?

Lideranças consideram que movimentos antigoverno que floresceram em 2020 contribuíram para desgaste de Bolsonaro

Malu Delgado / DW Brasil

George Floyd acabara de ser assassinado nos Estados Unidos, e a primeira onda da pandemia atingia seu pico no Brasil, entre devaneios antidemocráticos do presidente Jair Bolsonaro e a falta de compromisso federal com o combate à covid-19. Ao final do primeiro semestre de 2020 floresceram no país os primeiros movimentos sociais mais organizados contra Bolsonaro.

Mais de um ano depois, alguns deles se desintegraram e não sobreviveram às dificuldades de manter uma coesão durante a pandemia. Ainda assim, lideranças que ajudaram a formar frentes de resistência a Bolsonaro consideram que importantes vozes da sociedade ecoaram mais claramente e se fortaleceram, conseguindo ao menos deter absurdos extremos do atual governo e contribuindo para o desgaste e aumento da rejeição ao presidente.

"Não tenha dúvida de que o índice de rejeição que Bolsonaro tem hoje diz respeito fundamentalmente à ação dos movimentos. Se não fosse toda essa mobilização geral, prevaleceriam só as fake news de Bolsonaro, para quem todas as desgraças brasileiras são responsabilidade de outros", disse à DW Brasil Douglas Belchior, liderança da UNEafro Brasil e membro da Coalizão Negra Por Direitos, criada ao final de 2019. Para Belchior, os movimentos sociais resistiram, cada um a seu modo, e agiram dentro de seus limites.

Ações, unificadas, segundo ele, ajudaram a combater a tese antivacina que prosperava no governo Bolsonaro, intensificando a pressão internacional. Foram também essas vozes da sociedade civil, em especial a da Coalizão Negra, que forçaram a manutenção do auxílio emergencial em 2021, evitando que a miséria e a fome se alastrassem ainda mais pelo país.

"Esses movimentos sociais atuaram e pressionaram a opinião pública e as mídias. Não haveria o desgaste nacional e internacional de Bolsonaro sem isso", sentencia Belchior.


Foto: AFP
Foto: AFP
Foto: Olivier Doullery / AFP
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
previous arrow
next arrow
 Foto: AFP
 Foto: AFP
Foto: Olivier Doullery / AFP
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
previous arrow
next arrow

"Com racismo, não haverá democracia"

Estamos Juntos, Somos 70% e Basta! são exemplos de movimentos que surgiram com uma bandeira comum, a luta em favor da democracia numa reação contra atos do atual governo que esses segmentos consideraram atentados contra contra direitos, civilidade e tolerância. No entanto, para Belchior, a morte de George Floyd acendeu também o alerta no país contra o racismo.

O manifesto da Coalizão Negra Por Direitos, escrito em 2020 em paralelo a esses outros movimentos que se expandiam, adotou a seguinte frase como lema: "Enquanto houver racismo, não haverá democracia".

"Uma das primeiras ações do governo Bolsonaro foi tentar derrubar a lei de cotas raciais. O movimento negro fez uma atuação em conjunto", lembra Belchior.

"Para o maior segmento da sociedade brasileira [a população negra], o risco à democracia não é novo. Onde é que tem democracia com a polícia estourando as quebradas e as favelas como sempre fez? Onde é que tem democracia com 800 mil pessoas presas, 40% delas sem julgamento?", questiona Belchior.

Ele considera que a Coalizão Negra talvez seja o único movimento social hoje no Brasil com atividade orgânica – ou seja, organizado na ponta, pela população diretamente atingida –, algo que talvez só se assemelhe ao Movimento dos Sem Terra (MST) da década de 90.

"A gente surge [após a eleição de Bolsonaro] para fazer uma dinâmica política que os brancos sempre fizeram em nosso nome. Onde o movimento negro era a ausência? Nos espaços de poder, no parlamento e em fóruns internacionais. Eram sempre os brancos falando em nosso nome. Mas a história dá uma pirueta e nos obriga a usar essa força de rede também na ponta."

Fim da espiral do silêncio da maioria

Ex-banqueiro e empresário, Eduardo Moreira é um dos nomes mais conhecidos do movimento Somos 70%. Ele enfatiza, no entanto, que nunca alimentou o próprio ego, evitando se colocar como dono do movimento ou utilizá-lo como instrumento de poder. "Sou apenas um dos 70%", pontua.

O empresário considera que o movimento foi extremamente bem-sucedido e ainda tem ecos. O objetivo do Somos 70% era extremamente simples, e muitas vezes não foi compreendido, diz.

"Vivemos no Brasil a espiral do silêncio durante um tempo. As pessoas ouviam 30% [da população que apoia Bolsonaro] falando e se intimidavam. Não só por serem a única voz que aparecia, mas por ser também uma voz muito ameaçadora, que difamava. A ideia dos Somos 70% foi só lembrar as pessoas de que podem falar, e lembrar que elas eram a maioria. Tentavam me botar numa saia justa e perguntavam: mas o [Sergio] Moro faz parte dos 70%? Se ele não é favorável a Bolsonaro, faz. Isso é simplesmente uma estatística. Não é abaixo-assinado. Ninguém pode escolher ser contra Bolsonaro e não estar nos 70%", afirma.

Para Moreira, as atuais pesquisas de intenção de votos confirmam o desgaste de Bolsonaro e são resultado da expressão da maioria. Influente nas redes sociais, o empresário postou recentemente fotos ao lado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de Ciro Gomes, que é pré-candidato à Presidência pelo PDT.

"O Somos 70% tinha esse poder de não estar vinculado a nenhum partido político e não ter um compromisso de uma aliança. Normalmente, quando uma pessoa acaba se envolvendo em um movimento específico, se ela conversa com o Lula não pode falar com o Ciro, porque escolheu um lado. Eu sempre defendi a arena do debate. Luto pelo direito de debater. Luto pelo direito de discutir."

A voz minoritária e agressiva que calou a maioria sucumbiu, e agora a percepção geral no país é outra, diz Eduardo Moreira. O movimento, diz ele, "tomou vida própria" e o conceito de Somos 70% foi incorporado pela sociedade. Algumas estatísticas revelam isso, aponta, como o fato de 70% dos brasileiros rejeitarem a flexibilização do porte de armas; 67% acreditarem que a corrupção vai aumentar, e os mesmos 67% rejeitarem a aproximação de Bolsonaro ao Centrão. Além disso, 75% dos brasileiros acham que a democracia é o regime mais indicado, e 78% afirmam que o regime militar foi uma ditadura – todos esses dados de pesquisas recentes feitas pelo Instituto Datafolha.

O ex-banqueiro acredita que o cenário econômico caótico desmascarou a incompetência do ministro da Economia, Paulo Guedes. No entanto, Moreira não crê que haverá impeachment de Bolsonaro, por falta de interesse de grupos políticos à esquerda e à direita. A despeito da acomodação da classe política, ele vê o "antibolsonarismo consolidado".


previous arrow
next arrow
previous arrow
next arrow

Resposta da classe artística, Estamos Juntos perdeu fôlego

"No mesmo dia eu recebi um telefonema do Douglas Belchior, da UNEafro, e outro do Luciano Huck. Se os dois enxergaram naquele movimento um ponto de encontro, era sinal de que muita gente cabia ali", relata o escritor e roteirista Antonio Prata, um dos que ajudaram a organizar o movimento Estamos Juntos.

A principal ação do movimento em 2020 foi publicar um enorme

manifesto nas páginas dos principais veículos de imprensa do país, fortalecendo princípios democráticos. O Juntos reuniu assinaturas de intelectuais e políticos de diferentes espectros ideológicos em favor da democracia.

Antonio Prata considera que naquele momento, maio do ano passado, reunir assinaturas de economistas à direita e à esquerda num mesmo manifesto foi um feito relevante. Segundo ele, no auge da pandemia era impossível colocar as pessoas nas ruas, mas havia um forte sentimento, sobretudo entre setores culturais, de que era necessário formular uma ação rápida e contundente contra o atual governo, que flertava com a ideia de golpe institucional.

O movimento Estamos Juntos ganhou adesão significativa da classe artística e se espalhou como rastro de pólvora. Foram criados milhares de grupos de WhatsApp por todo o país. No entanto, hoje, os criadores do Juntos já nem fazem mais parte desses grupos, e a discussão se perdeu. Ainda assim, o escritor considera que o movimento teve um significado relevante na conjuntura de 2020.

Prata pondera que há dificuldades quase intransponíveis quando se reúnem pessoas com pensamentos muito divergentes num único movimento, como foi o caso do Juntos. Além disso, a pandemia dificultou uma organização mais efetiva, acrescenta.

"Mas pra mim deu muito mais a ideia de que é possível fazer coisas do que é impossível", sintetiza. "Não tentaria reavivar aquilo. É muita gente diferente, cabeças diferentes. Não é a turma de ninguém. Não tem um grupo com pensamento e origem parecidas. Há outros caminhos [de resistência ao governo], mas foi ótimo, abriu muitas portas, contatos", acrescenta o escritor.


Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
51434952959_9aee831217_k
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
previous arrow
next arrow
 
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
51434952959_9aee831217_k
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
previous arrow
next arrow

"Movimentos sofrem síndrome da paixão", diz filho de Herzog

Filho do jornalista Vladimir Herzog, morto na ditadura militar, o engenheiro Ivo Herzog também aderiu à onda de protestos contra Bolsonaro, mas tem uma visão bastante crítica, e amarga um pessimismo diante da apatia da sociedade brasileira.

"Eu realmente me engajei no Estamos Juntos, em meados de maio. Acho que esses movimentos sofrem da síndrome de paixão. É muito fácil se apaixonar, só que paixão tem data de validade. Não perdura. O que perdura é o amor. A paixão a gente mergulha, para de fazer tudo o que está fazendo, mas passa. Isso explica muitoesses movimentos, de maneira geral", diz.

Segundo ele, esses movimentos ganharam fôlego a partir de uma sequência de eventos negativos para o governo no ano passado, como a saída de Sergio Moro do governo, as trocas sucessivas no Ministério da Saúde, a falta de respostas na pandemia e a "flagrante intenção de Bolsonaro de atentar contra a democracia".

Para ele, o movimento Estamos Juntos cresceu muito rapidamente, o que desestrutura qualquer iniciativa. Além disso, pontua, por envolver muitas "celebridades", houve uma guerra de egos nos bastidores do movimento que prejudicou as articulações. "É isso. Perdeu o foco, se perdeu nas discussões, se queimaram pontes. Foi uma paixão avassaladora. Normalmente paixão dura dois anos. Aquela durou dois meses."

Herzog afirma que os pressupostos do movimento eram interessantes e que ele sempre insistiu na necessidade de manter uma ação suprapartidária. Defender nomes e partidos, sustenta, gera distanciamento, e não aproximação. "Nossa luta é contra esse obscurantismo, todo esse processo em que começamos a andar para trás, desde o governo Temer, na verdade", completa. 

Empobrecimento democrático

Para Herzog, é pouco provável que a sociedade civil consiga se articular de forma efetiva em 2022 contra Bolsonaro.

"Estou muito descrente. O que vai acontecer é que vamos entrar em 2022 gastando 10% do nosso tempo brigando com Bolsonaro e 90% brigando entre a gente, para ver quem vai ser o cara [candidato à Presidência]. E não vai se discutir conteúdo."

Ainda assim, Ivo Herzog acha que Bolsonaro não se reelegerá, mas o Brasil perderá a chance de debater coletivamente uma proposta de país.

"Não existe uma casa no Brasil para se debater as ideias. Os partidos políticos não são mais isso. Estão atrás de pessoas que tragam votos. Não interessa se o cara usa suástica ou a estrela de Davi. É uma loucura, e o eleitor com um mínimo de consciência se afasta deste processo", lamenta.

Para ele, o fato de o ex-presidente Lula ser "a mesma solução política há 30 anos" é sinal do empobrecimento democrático do Brasil.

"Claro que o Lula de 1989 não é o Lula de hoje, mas é uma loucura você pensar que é o mesmo cara. É desanimador. E olha as alternativas postas... Não dá para pensar no PSDB que faz Bolsodoria. O braço direito do [Geraldo] Alckmin em São Paulo era o [ex-ministro do Meio Ambiente] Ricardo Salles", critica.

Há décadas, conclui Herzog, "o Brasil normaliza o absurdo". "Não vejo ninguém fazendo uma reflexão bem estruturada para esse país."

Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/o-que-alcan%C3%A7aram-os-movimentos-anti-bolsonaro/a-59837165


Viagens de Bolsonaro e Lula ao exterior antecipam 'queda de braço' eleitoral

Jair Bolsonaro e Lula miram tanto o público externo quanto o eleitorado brasileiro nas viagens, segundo análise de especialistas

Leandro Prazeres / BBC News Brasil

Nesta semana, dois potenciais candidatos às eleições de 2022, o presidente Jair Bolsonaro, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), estão cumprindo uma intensa agenda de viagens ao exterior.

Bolsonaro faz uma visita oficial a países árabes. Lula, por sua vez, está na Europa, onde foi recebido por lideranças de centro-esquerda. Especialistas em relações internacionais ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que as duas viagens, ainda que de forma não intencional, servem para "medir as forças" de cada um na arena internacional.

Bolsonaro embarcou na sexta-feira (12/11) para uma viagem de uma semana a três países do mundo árabe: Emirados Árabes Unidos, Catar e Bahrein. Na sua agenda, Bolsonaro participou da Expo Dubai 2020, uma feira internacional onde o Brasil tem um pavilhão, encontros com empresários, políticos e com o rei do Bahrein, Hamad bin Isa Al Khalifa.

Já o ex-presidente Lula começou sua viagem na quinta-feira (11/11) com destino a quatro países da Europa: Alemanha, Bélgica, França e Espanha. Durante o tour, o ex-presidente se encontrou com líderes da centro-esquerda europeia como o provável novo chanceler alemão, Olaf Scholz, que é líder do Partido Social-Democrata, com a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, que é do Partido Socialista, e, em Bruxelas, Lula discursou no Parlamento Europeu.

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que as viagens revelam diferenças gritantes como as imagens que ambos tentam passar, mas também mostram uma preocupação com o público interno, especialmente a pouco mais de um ano das eleições de 2022.

Duelo de imagens

Para o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Guilherme Casarões, Bolsonaro e Lula travam um duelo na esfera internacional e tentam projetar duas bastante distintas.

"Essa viagens são uma medição de forças, sim. De um lado, o atual presidente vai ao Oriente Médio e adota o discurso de que está em busca de investimentos para o país. É a imagem do presidente mercador. Do outro, Lula volta à Europa com um discurso de estadista, tentando mostrar ao exterior que o Brasil tem alternativas seguras para um futuro pós-Bolsonaro", afirmou.

A professora do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/UFMG) Fernanda Cimini, também vê diferenças nas imagens que Bolsonaro e Lula tentam passar durante suas viagens.

Bolsonaro de máscara, entre homens com trajes típicos dos Emirados Árabes
O presidente Jair Bolsonaro participou da Expo Dubai, nos Emirados Árabes. Foto: Alan Santos/PR

Ela explica que Bolsonaro aproveita a viagem para vender a narrativa de que, apesar das críticas que vem recebendo nesta área, sua política externa estaria conseguindo atingir seus objetivos.

"As imagens são muito simbólicas. Quando Bolsonaro aparece sendo recebido por líderes do mundo árabe, com seus trajes típicos, tenta vender a imagem um presidente que consegue o respeito de líderes fortes com quem ele pode se sentir mais alinhado. Do outro lado, Lula tenta se posicionar como alguém com quem a comunidade internacional pode dialogar", explicou.

Reconstruir pontes versus Isolamento

Nas últimas semanas, o atual presidente foi duramente criticado por sua atuação tímida na reunião do G20, em Roma, e por sua ausência à COP 26, em Glasgow, no Reino Unido.

A decisão de não ir à conferência do clima contrastou com a tradição que o Brasil vinha tendo nos últimos anos de se posicionar como uma potência verde. Analistas afirmam que a política externa do Brasil vem conduzindo o país a um isolamento.

O governo, por outro lado, se defende afirmando que o país continua relevante na esfera internacional.

Mais uma vez, as viagens de Bolsonaro e Lula, segundo os especialistas, evidenciam as diferenças entre os dois em relação à política externa. Enquanto Lula estaria tentando "reconstruir pontes" de olho em 2023, Bolsonaro estaria refém da agenda adotada nos últimos anos.

Para o professor de Relações Internacionais da UFMG, Dawisson Belém Lopes, os destinos e a agenda de Bolsonaro refletem o seu isolamento diplomático.

"Essa viagem é, em certa medida, expressão de um certo estreitamento de possibilidades diplomáticas do Brasil neste momento. Brasil não tem relações de nível e fluídas nem com os Estados Unidos e nem com a China. Com os europeus, há problemas que se arrastam desde o início dessa gestão presidencial. O Brasil de hoje tem poucas opções", disse o professor.

Ao analisar o roteiro de Lula, o professor diz que a viagem pode ser vista como uma tentativa de "reconstruir pontes" do ex-presidente com a comunidade internacional.

Lula de máscara, rodeado de pessoas
Para Dawisson Belém Lopes, Lula está buscando 'reconstruir pontes' com atores internacionais em sua viagem. Foto: Ricardo Stuckert

"O que Lula está fazendo é uma tentativa de reconstruir pontes, de pavimentar o seu caminho para janeiro de 2023. Ele sabe que precisa de pontes com o exterior e começa por onde deveria começar, que é pela Europa, porque é lá que ele encontra um terreno mais fértil, especialmente entre líderes da centro-esquerda", explicou.

A pesquisadora do Wilson Center em Washington e professora da FGV, Daniela Campello, enfatiza o contraste entre as opções de Bolsonaro e de Lula.

"A ida de Bolsonaro ao Oriente Médio é reflexo claro da falta de espaço do Brasil na esfera internacional. Apesar de o presidente afirmar defender a democracia, ele obviamente não se manifesta sobre os regimes políticos dos países que está visitando. Por outro lado, Lula está discursando no Parlamento Europeu, está falando com prêmio Nobel de economia (Joseph Stiglitz)", disse Daniela.

Foco nas eleições

Apesar de esse "duelo" estar ocorrendo no cenário internacional, o centro da disputa entre Bolsonaro e Lula é, obviamente, as eleições de 2022. Nenhum dos dois confirmou oficialmente que será candidato, mas pesquisas de intenção de voto mais recentes colocam os dois na liderança do pleito do ano que vem. Nesse contexto, os especialistas afirmam que os movimentos feitos lá fora deverão refletir internamente.

Fernanda Cimini, da UFMG, diz que, a partir de agora, tudo o que os dois fizerem pode ou será usado como material para as eventuais campanhas de 2022.

"A política internacional também é um campo onde sobre o qual se dá a disputa eleitoral. Então, a partir de agora, viagem pra Europa, pro Golfo Pérsico, pro Nordeste, tudo será usado na disputa. A percepção de sucesso dessas viagens vai ser material de campanha, com certeza", afirmou.

Para Guilherme Casarões, a principal demonstração de que essa batalha no exterior tem foco doméstico é a forma como as militâncias tanto de Lula quanto de Bolsonaro estão abordando as viagens em seus grupos.

"De um lado, os petistas estão exaltando a forma como Lula está sendo recebido por lideranças europeias. Seria uma demonstração de que o Brasil pode voltar a ser respeitado internacionalmente. Do outro, os bolsonaristas estão enfatizando como o presidente estaria buscando investimentos ao Brasil", disse o professor.

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/11/4963674-como-viagens-de-bolsonaro-e-lula-ao-exterior-antecipam-queda-de-braco-eleitoral.html


Luiz Carlos Azedo: Viagem de Bolsonaro agrada eleitores e mira em investidores

O presidente aproveitou o périplo para reforçar sua agenda interna e agradar sua base com declarações polêmicas

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

A viagem das Arábias do presidente Jair Bolsonaro para atrair investidores mirou tanto a sua base eleitoral quanto os petrodólares com os quais o ministro da Economia, Paulo Guedes, imagina financiar a retomada do crescimento da economia no próximo ano, diante de previsões catastróficas dos analistas internacionais, inclusive os da prestigiada revista The Economist, que “erra todas”, segundo o nosso Posto Ipiranga.

No domingo e na segunda-feira, Bolsonaro participou do fórum Invest In Brasil, em Dubai, promovido pela Apex-Brasil, e visitou o pavilhão da Embraer na Dubai Airshow, evento do setor aeroespacial, e o pavilhão do Brasil na Expo 2020, onde a numerosa delegação brasileira festejou a viagem, com a primeira-dama Michele roubando a cena. Dubai é um emirado novo-rico, aberto para o mundo para não depender de uma atividade econômica sem futuro, o petróleo, e criar uma economia baseada no comércio internacional e no turismo, atividades que respondem hoje por 95% da sua economia.

Com o dinheiro do óleo, descoberto na região em 1966, voou do século 18 para o século 21 em apenas uma geração, nas asas da melhor companhia aérea da atualidade. Com um dos mais importantes hubs aeronáuticos do Oriente Médio, tornou-se um centro financeiro e de negócios que atrai executivos e milionários de todo o mundo, devido à segurança e às atrações turísticas de altíssimo luxo. É uma cidade-estado de população global (83% são estrangeiros), com um único dono, Sua Alteza Shaikh Mohammed bin Rashid Al Maktoum, conhecido como Shaikh Mo.

Ontem, a comitiva presidencial viajou para o Bahrein, onde Bolsonaro participou da inauguração da embaixada brasileira na capital do país, Manama, ao lado do rei Hamad bin Isa al-Khalifa, cujo clã Bani Utbah capturou o Bahrein de Nasr Al-Madhkur, em 1778, e desde então governa o arquipélago do Golfo Pérsico. O Brasil deve se tornar o seu principal fornecedor de minério de ferro, superando a China e os Estados Unidos. Somos o quarto destino das exportações brasileiras no Oriente Médio, atrás de Arábia Saudita, Turquia e dos Emirados Árabes Unidos. No meio do Golfo Pérsico, suas 33 ilhas, juntas, não chegam à metade da cidade de São Paulo.

Foi a primeira nação a descobrir e explorar petróleo no Oriente Médio, na década de 1960. Sua exploração é responsável por 60% das exportações do Bahrein e por 18% do Produto Interno Bruto nacional. O país também investe na diversificação da economia, com a promoção da atividade industrial e de serviços financeiros, sendo o segundo produtor de alumínio do mundo, responsável por 16% das exportações do Reino no ano passado. O país também se destaca na produção de aço. Já foi colônia portuguesa, persa e britânica, famosa por seus pescadores de pérolas. Hoje é um “case” da economia pós-petróleo. Dos seus 1,5 milhão de habitantes, 25% são paquistaneses, afegãos, indianos, norte-americanos e britânicos.

Sem constrangimentos

Hoje, Bolsonaro chega ao Catar, um emirado absolutista e hereditário comandado pela Casa de Thani desde meados do século XIX. O xeque Hamad bin Khalifa Al Thani destituiu seu pai, Khalifa bin Hamad al Thani, em 1995, com um golpe de Estado. O presidente fará um passeio de moto em Doha, cuja arquitetura futurista é de tirar o fôlego. A agenda oficial inclui uma visita ao estádio Lusail, construído para a Copa de 2022. Os jornalistas, por mudanças nas regras sanitárias de véspera, foram proibidos de entrar no emirado.

O Catar foca os investimentos em setores não energéticos, porém, o petróleo e o gás ainda representam mais de 50% do PIB do país, cerca de 85% das receitas de exportação e 70% das receitas do governo. Suas reservas de petróleo, estimadas em 15 bilhões de barris, podem durar mais 37 anos. As de gás natural, cerca de 26 trilhões de metros cúbicos, representam 14% das reservas totais do mundo, a terceira maior reserva do planeta. O país exporta petróleo e derivados para China, Coreia do Sul, Japão e Índia. Importa aviões, carros, helicópteros e turbinas a gás de Reino Unido, França, Alemanha e China.

Ao contrário do que aconteceu na viagem à Itália, onde enfrentou protestos populares, Bolsonaro não passou por constrangimentos nesses emirados, que reprimem duramente a população, mas são “cases” de modernização autoritária. Aproveitou a viagem para reforçar sua agenda interna e agradar sua base conservadora, com declarações polêmicas sobre a situação da economia brasileira, o desmatamento da Amazônia, as provas do Enem e o aumento dos servidores, anunciado para legitimar a aprovação da PEC dos Precatórios no Senado. A estratégia serviu de contraponto à viagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Europa, cujo ponto alto foi seu discurso no Parlamento Europeu, onde foi aplaudido de pé.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-viagem-de-bolsonaro-ao-oriente-medio-agrada-eleitores-e-mira-em-investidores

“Cristianismo e o islamismo têm uma influência perniciosa”, diz Soyinka

Primeiro africano negro a ganhar o Nobel Literatura, em 1986, assina um afresco sobre a violência e o fanatismo na Nigéria, mas com valor universal

Berna González Harbour / Em País

O Nobel de Literatura Wole Soyinka levou quase meio século para voltar ao romance, e o faz com uma obra monumental, um afresco nada piedoso da Nigéria atual, que bem pode se transformar em retrato universal da violência, do extremismo religioso, do fanatismo, das superstições e da utilização do povo para fins mais ligados à corrupção que ao desenvolvimento. Seu título, Chronicles from the Land of the Happiest People on Earth (Crônicas do país da gente mais feliz da Terra, em tradução literal; o livro ainda está inédito no Brasil), é obviamente satírico, muito satírico, mas o humor que ele destila vai ficando congelado na retina à medida que pastores manipuladores, políticos usurpadores e vítimas de uma violência desalmada vão desfilando numa história coral que adquire unidade pelas mãos da aberração.

Soyinka (Abeokuta, Nigéria, 87 anos) foi o primeiro africano negro a receber o Nobel de Literatura, em 1986. Sua força narrativa é em parte filha de seu olhar crítico, de um ativismo que o levou à prisão nos anos sessenta e que o fez rasgar seu green card norte-americano para denunciar Donald Trump. Claro, com sua escrita nua e sem outros rodeios além dos seus recursos literários, Soyinka transitou mais frequentemente pelo teatro, o ensaio e a poesia, que considera sua casa, em vez do romance. Isso inclusive dá mais importância a este novo livro onde expõe os piores vícios de uma sociedade que é a sua, mas pode ser a de qualquer um. O escritor passa esta semana por Madri, onde conversou com o EL PAÍS.

Pergunta. Foi difícil voltar ao romance?

Resposta. Não havia outra opção. O material vinha se acumulando comigo havia muito tempo, e ficava claro que desta vez precisaria do formato romance para expor minhas ideias. Difícil? Claro que surgiram dificuldades, por ser tão grande, mas me senti muito aliviado ao terminar. Então foi gratificante, também.Mais informaçõesQuem ganhou o Nobel de Literatura no ano em que você nasceu?

P. O senhor aborda em seu livro a corrupção política, mas também o poder religioso. A religião tem um papel maior atualmente que no passado?

R. Sim, sim. E nem sempre um papel saudável. Os nigerianos são religiosos em geral, outras sociedades resolveram o âmbito espiritual e podem dar as costas à religião, mas não é o caso de muitos países na África, e inclusive até certo ponto na Europa. Há pessoas que adquirem grande influência no Governo por professarem a mesma religião que o líder, para o bem ou para o mal. E há também o fenômeno extremista e violento, que acentua todos os outros problemas que temos.

P. Refere-se ao islamismo, ao Boko Haram?

R. Principalmente o islamismo, sim, mas também há os extremistas cristãos como Joseph Kony no leste da África. É muito violento, extremo, inclusive sádico, e sua forma de enfrentar a dissidência é mutilando narizes, lábios e outros membros. É uma aberração surpreendente. Tornou-se um inimigo da humanidade.

P. Em seu romance, o senhor funde o cristianismo e o islamismo. Por quê?

R. Tenho um problema pessoal com ambos, o cristianismo e o islamismo. Ao se pretenderem religiões mundiais que se arvoram em saber tudo, especialmente os extremistas, acreditam que não há outro ponto de vista além do seu, por isso exercem uma grande influência perniciosa que inclui o uso do medo, que é muito diferente da simples influência. Venho da religião prevalente na minha comunidade antes do cristianismo e o islamismo, que é a adoração aos orixás, e esta é a religião mais humanista que conheço, a mais tolerante. E essas duas supostas religiões globais poderiam aprender muito com esta religião, mas nos olham de cima, com desprezo. Por essas razões sou muito crítico com essas duas religiões. De resto, a espiritualidade é algo pessoal e, quando estruturada como parte do instinto da comunidade de compartilhar experiências, ela é boa. O problema surge quando intervém na vida civil.

P. E por que se tornaram tão poderosas?

R. Por muitas razões, também a econômica. Na Nigéria há seitas que prometem uma vida material melhor em troca de segui-las. Usam a miséria e a privação econômica para gerar esperanças, e quando não conseguem o prometido dizem que é porque você não tem fé suficiente. E há a política. Tem gente que abraça outra religião porque é a que está no poder. E depois vem a insegurança das pessoas que preferem pôr toda sua existência nas mãos dos outros, porque não se sentem bem consigo mesmos. É uma mistura desses fatores.

P. O senhor conhece bem os Estados Unidos. A religião se tornou muito poderosa lá também.

R. Muito. Nas últimas décadas, o poder não era considerado um monopólio dos anglicanos brancos. Quando Kennedy se apresentou como católico e ganhou a presidência, foi um fenômeno ver como se salientou a ideia de que isso não ameaçava os direitos. Faz tão poucas décadas que os americanos aceitaram um católico. Depois chegou Ronald Reagan, cuja mulher olhava bola de cristal, era muito supersticiosa e influenciou seu marido com seu olhar religioso e de extrema direita. A extrema direita religiosa nos EUA tem muitos seguidores, e seus eleitores fazem o que mandam.


Foto: AFP
Foto: AFP
Foto: Olivier Doullery / AFP
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
previous arrow
next arrow
 Foto: AFP
 Foto: AFP
Foto: Olivier Doullery / AFP
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
previous arrow
next arrow

P. O senhor destruiu sua carteira de identidade de residente nos EUA quando Trump venceu. Arrepende-se hoje que ele não está mais?

R. Não, não, não me arrependo, não podia fazer outra coisa. Esse homem era racista, era um maníaco xenófobo, insultava outras nacionalidades, chamava-os de países de merda. Abertamente. Ele era. Representava o pior dos preconceitos norte-americanos e o retrocesso político, mas foi muito útil porque o que fez foi lembrar que americanos não são tão desenvolvidos, intelectual nem filosoficamente. O pior de tudo na campanha dele foram as execuções sumárias de negros por parte da polícia, de gangues. Morreram muito mais negros de forma extrajudicial pelas mãos da polícia durante a campanha de Trump do que em qualquer campanha presidencial na Nigéria. Eu vi, como antes tinha visto a etapa mais progressista, quando Obama, um negro, pôde se tornar presidente. Mas a direita extrema estava decidida a que isso nunca mais voltasse a ocorrer; Trump viu isso e aproveitou. Para mim, é um inimigo da humanidade. Por isso disse que, se fosse eleito, não queria mais fazer parte dessa comunidade. Então rasguei meu green card e quando preciso ir aos EUA tiro o visto e pronto. A Embaixada dos EUA não tem nenhum problema, me deixam ir, porque lá tem gente boa, o que faz que eu me sinta atraído pelos EUA. Não soltam os cachorros em mim quando chego, pelo contrário, me dão esse visto normal.

P. O movimento Black Lives Matter o surpreendeu?

R. Absolutamente. Houve surtos, mas era a primeira vez que ele atraiu a consciência do mundo. O Black Lives Matter foi muito útil também para o continente africano, porque perante os líderes homicidas podemos dizer: vidas negras importam também na África, então prestem atenção. Isso teve eco em muitos lugares e não me surpreendeu em nada.

P. Também destaca em seu romance a enorme violência, os estupros, as crianças transformadas em vítimas.

R. É um fenômeno que admito que me surpreende. O mundo onde cresci nunca teria tolerado esse nível de crueldade na humanidade. As causas são o desespero econômico, um niilismo decorrente da sucessão do pior tipo de líderes, que infectou ou despertou algo latente na sociedade. Não sabemos como foi, mas nas últimas duas décadas vimos a desvalorização do ser humano, e a religião tem muito a ver com isso. As pessoas se viram sacudidas por explosões em mercados, em fábricas, em escritórios, nas ruas. Há um movimento que se dedica à morte como uma forma de espiritualidade, aos sequestros, como o Boko Haram. E ao longo dos anos a sensibilidade em relação aos outros seres humanos diminuiu. É como uma inoculação no subconsciente, como se consentíssemos com esta violência e depois começássemos a praticá-la porque você se acostuma. Estes grupos extremistas religiosos tiraram o valor da vida e viraram uma infecção, uma doença, e inclusive alguns dos líderes tradicionais recorreram a fazer coisas que não faziam. Há sacerdotes que participam deste sacrifício humano porque lhes dá riqueza, e enquanto o fazem estão louvando a Deus. A aberração se tornou hábito, como a “nova normalidade” da covid-19 — odeio essa expressão—, essa aberração virou moda.

P. Como seu livro foi recebido?

R. Foi um fenômeno incrível, porque os políticos que protagonizam meu livro me procuraram, e inclusive algum famoso que utilizei como modelo veio me fazer perguntas. Um deles subiu ao palco e eu lhe disse: “Antes de abrir a boca, espero que você tenha notado que está no livro”; ele disse: “Sim, sim, mas quero lhe fazer uma pergunta do mesmo jeito”. O que mais me surpreendeu foi a quantidade de políticos que apoiaram o livro de forma ativa.

P. Como definiria sua literatura?

R. Não me considero romancista. Sou dramaturgo. Sinto-me mais à vontade com o teatro e a poesia. Gosto sobretudo de escrever peças de teatro. E acredito na natureza eclética da literatura, o que significa que não persigo nenhum estilo em particular. Simplesmente permito que a musa opere em mim para enlaçar forma e fundo. E espero não pertencer a nenhuma escola.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/cultura/2021-11-16/wole-soyinka-tanto-o-cristianismo-como-o-islamismo-tem-uma-influencia-perniciosa.html


Elio Gaspari: A China jogou pesado

Pequim aderiu à diplomacia de segunda

Elio Gaspari / O Globo

A revelação veio do repórter Marcelo Ninio. Depois que a China suspendeu a importação de carne bovina brasileira, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, pediu hora para falar ao telefone com seu equivalente, e Pequim respondeu que ele estava sem espaço na agenda. No pedido, não se havia especificado dia nem hora. A resposta esfarrapada foi grosseria inédita para uma diplomacia experimentada como a do Império do Meio.

De um lado, ela mostra como a China é capaz de jogar bruto quando acha que está numa posição de força. De outro, ensina que o governo do capitão cultiva malcriações delirantes, mas é, acima de tudo, disfuncional.

A China embargou as importações de carne bovina no início de setembro, acompanhando uma iniciativa pontual do governo. Suspendeu as vendas por causa da ocorrência de dois casos da doença da vaca louca. Desde então, foram remetidas informações às autoridades sanitárias chinesas, mostrando a natureza isolada dos episódios. Passaram-se mais de dois meses, e o embargo continua. Se o ano terminar sem que a barreira seja levantada, a pecuária brasileira poderá perder até R$ 10 bilhões em negócios.

O recurso a embargos comerciais como forma de pressão diplomática é coisa velha. O pelotão palaciano acredita em mulas sem cabeça e cultivou a crença segundo a qual os chineses precisam das proteínas brasileiras. Os fornecedores da Europa e do Cazaquistão agradecem, pois estão ocupando o espaço aberto no mercado chinês.

A disfuncionalidade do governo brasileiro tem de tudo. Já houve um chanceler que dizia ser um pária orgulhoso, e o presidente diz o que lhe vem à cabeça. O Itamaraty perdeu a relevância nas negociações internacionais. Foi substituído por uma diplomacia de compadrio de maus resultados. Joe Biden está na Casa Branca, e Steve Bannon, guru de Trump e de Bolsonaro, está sem o passaporte. O embaixador do Planalto para a África do Sul (Marcelo Crivella) está no sereno, sem agrément. O telefonema do capitão ao presidente Cyril Ramaphosa resultou num desprestígio inútil. O caso do embargo ilustra quanto custa desprezar a máquina institucional do Estado.

A funcionalidade exigiria que o assunto, apesar da natureza comercial, fosse coordenado pelo Itamaraty. Ministros de outras pastas ajudam, orientam, mas não devem tomar iniciativas. Quando a ministra Tereza Cristina anunciou, em meados de outubro, que estava disposta a ir a Pequim para negociar o fim do embargo, foi para a chuva. Ao pedir agenda para um telefonema a seu colega chinês, molhou-se. É verdade que não lhe restavam outros caminhos, pois a embaixada do Brasil em Pequim ficou sem canais para cuidar de um assunto como o embargo, já que o Planalto já fez sucessivas malcriações com a embaixada chinesa em Brasília. A reciprocidade, como o hábito de escovar os dentes, faz parte do cotidiano da diplomacia.

O tranco chinês era coisa previsível, questão de quando e como. O silêncio numa questão que envolve o agronegócio e o Ministério da Agricultura indica que há um certo método do jogo bruto. Deram um joelhaço nos aliados potenciais numa negociação racional. Foi o recado de uma diplomacia de segunda classe, recíproco, porém de má qualidade.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/opiniao/a-china-jogou-pesado-25279360


Maria Felisberta Baptista Trindade morreu em 13 de novembro de 2021, aos 91 anos, no Rio de Janeiro

Felisberta: marca da memória por justiça social e democracia

Professora aposentada da UFF foi um dos grandes nomes do PCB no Rio de Janeiro e morreu no sábado (13/11)

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

Educação é a palavra que resume a trajetória da pedagoga Maria Felisberta Baptista Trindade. Ela passou por salas de aula do ensino fundamental ao nível superior, sempre usando sua profissão como meio de ação transformadora e em defesa da justiça social e da democracia. A Fundação Astrojildo Pereira (FAP) lamenta a morte dela, no sábado (13/11), aos 91 anos.

Ela atuou na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), como professora, coordenadora do curso de pedagogia, diretora e membro titular do Conselho Universitário. Graduada em pedagogia, também ensinou língua portuguesa, na educação fundamental.

Felisberta, como é lembrada carinhosamente por parentes, amigos e admiradores, teve a vida marcada por atuação em movimentos sociais e políticos. O nome dela ecoou, em diversas esferas, como referência de mulher, professora, gestora pública e militante.

Uma parte de sua especial história está contida no documentário Felisberta, Uma Mulher de Luta.

https://youtu.be/xWyFcEP2k-o

Exerceu, em Niterói, os cargos de coordenadora-geral de Planejamento, secretária municipal de Educação e Cultura, presidente da Fundação Municipal de Educação, presidente do Conselho Municipal de Ciência e Tecnologia e membro Titular do Conselho Municipal de Política para Mulheres e do Conselho Municipal de Educação.

Presente nos movimentos sociais e políticos, a professora Felisberta fundou a Associação Feminina Fluminense, seção da Federação de Mulheres do Brasil, criada por militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), organização política a que ela pertenceu.

Cidadã Niteroiense por ato da Câmara Municipal, em 1991, a carioca Felisberta voltaria a ser homenageada pela cidade, onde efetivamente viveu e trabalhou, com a Ordem do Mérito Municipal, no grau de Comendadora.

Felisberta, enquanto aposentada da UFF, era do Conselho Deliberativo da Associação de Professores inativos da Universidade Federal Fluminense (ASPI-UFF), de que foi presidente entre 2001 e 2008.

Ela escreveu sua história como professora atuante nas lutas da classe trabalhadora, presente em todos os momentos cruciais da história moderna e contemporânea do Brasil. Na memória, fica destacada sua atuação política, sobretudo, nas manifestações em defesa da democracia, dos direitos de trabalhadores e contra todas as formas de opressão.


Cristovam Buarque: Brasília tentou

Proposta foi apropriada pelo populismo e transformada em programa assistencialista

Cristovam Buarque / Correio Braziliense

A substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil faz lembrar que Brasília serviu de exemplo para um programa com impacto transformador na estrutura social, e faz perceber que a ideia inicial criada no Distrito Federal se transformou em programa assistencial.

Em 1987, no Núcleo de Estudos do Brasil Contemporâneo, da Universidade de Brasília (UnB), foi elaborada e divulgada a ideia de pagar às famílias pobres uma renda vinculada ao trabalho da mãe para assegurar frequência dos filhos à escola. A ideia carregava a criatividade de ao mesmo tempo mitigar a pobreza, graças à renda, e transformar a estrutura social do país ao colocar as crianças na escola. A renda reduzia a pobreza atual e a escola aboliria a pobreza futura quando as crianças crescessem educadas.

Em janeiro de 1995, a ideia surgida na UnB, se transformou em política pública do Governo do Distrito Federal. Brasília inovou ao criar o programa teoricamente na UnB, e levá-lo à prática de forma pioneira pelo Governo do Distrito Federal. Servindo de inspiração à prefeitura de Campinas, em São Paulo, graças ao prefeito José Roberto Magalhães Teixeira, conhecido como Grama, e à cidade de Recife, graças ao prefeito Roberto Magalhães. Eleitos dois anos antes do governador do DF, eles começaram programas similares, embora sem o compromisso pleno de vinculação à educação: não adotaram a palavra “Escola” nem colocaram a gestão do programa nas Secretarias de Educação.

O programa Bolsa Escola do DF oferecia também um prêmio pelo desempenho escolar do aluno, a Poupança Escola: valor depositado em caderneta de poupança ao final do ano, se o aluno fosse aprovado, com a retirada do depósito condicionada à conclusão do ensino médio. Se abandonasse o estudo antes, o aluno perderia todo o valor na conta.

Depois de seis anos da implantação do programa no Distrito Federal e em dezenas de outras cidades e alguns países, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso adotou o Bolsa Escola Nacional, com o mesmo caráter educacional, tanto no nome, quanto na gestão feita pelo Ministério da Educação. Revistas internacionais já divulgavam o programa de Brasília, que os organismos internacionais chamaram de “conditional cash transfer to education” – transferência de renda condicionada à educação.

O governo do presidente Lula esperou um ano desde sua posse e transformou o Programa Bolsa Escola Nacional no Bolsa Família, ampliando o número de beneficiados de quatro milhões para 12 milhões de famílias, mas descaracterizando seu papel transformador pela educação, em razão de: a) retirar a palavra “Escola”, b) levar a gestão do programa para o setor de assistência social e misturar os beneficiários, independentemente de serem famílias com crianças em idade escolar, idosos, desvalidos, portadores de deficiências.

O programa ficou mais generoso, mas perdeu sua função de transformação estrutural. A prova é que, 20 anos depois de seu início no Brasil, ele continua ainda necessário, diante dos imensos bolsões de pobreza que já não deveriam existir se, desde então,  todos tivessem recebido educação de base com qualidade.

Vinte e seis anos depois de iniciado no DF, o atual Governo Federal decidiu descaracterizar de vez a ideia transformadora inicial, ao tirar até mesmo a palavra “Bolsa” e substituí-la por “Auxílio”.

Com o primeiro nome, as mães beneficiadas pensavam “recebo a bolsa porque meu filho vai à escola e graças a ela sairemos da pobreza”; com o segundo, “recebo esta bolsa porque minha família é pobre e se sairmos da pobreza perdemos o direito de recebê-la”; agora, com o terceiro nome, pensa: “recebo este auxílio por causa da tragédia da covid”.

Brasília formulou e implantou um programa transformador estruturalmente, tentou que o resto do Brasil o adotasse pelo prazo de 11 anos, tempo para que toda criança brasileira terminasse o ensino médio, fazendo a bolsa desnecessária a partir de então. Tanto quanto deixa de ser necessária a bolsa paga a um aluno universitário depois que ele conclui seu curso e se forma. Mas, 25 anos depois, em um quarto de século, a proposta que transformaria a estrutura social do país, pela educação de todas suas crianças, foi apropriada pelo populismo e transformada em um simples programa assistencialista.

Brasília não conseguiu, mas tentou inspirar o Brasil.

*Foi ministro da Educação, senador e governador do DF

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/11/4963383-brasilia-tentou.html