Day: dezembro 27, 2020

Bruno Boghossian: Palavras de Bolsonaro produzem agenda destrutiva, da segurança à vacinação

Sem força para mudar leis, presidente usa medidas alternativas e estímulos retóricos

Em campanha, Jair Bolsonaro queria "carta branca para policial matar". Após chegar ao Planalto, prometeu "retaguarda jurídica" para blindar as forças de segurança em casos desse tipo. Agora, pelo segundo ano seguido, ele assinou um indulto feito sob medida para perdoar crimes não intencionais cometidos em serviço por esses agentes.

O governo não foi capaz de aprovar mudanças na lei para garantir uma proteção definitiva, mas Bolsonaro ainda consegue empurrar sua agenda de incentivo à violência policial. Com medidas alternativas e estímulos retóricos, o presidente avança na corrosão de políticas de segurança, da preservação ambiental, da democracia e da saúde pública.

Dias antes de editar o indulto, Bolsonaro ofereceu guarida a PMs num discurso para recém-formados, no Rio. "Numa fração de segundo, está em risco a sua vida, do cidadão de bem ou de um canalha defendido pela imprensa brasileira", disse. O presidente sabe que a polícia do estado já mata e morre em níveis recordes.

Bolsonaro também dá respaldo à destruição ambiental, mesmo sem maioria para aprovar mudanças na legislação. O governo afrouxou a fiscalização e encorajou o desmatamento sob a chancela explícita do discurso oficial. A cada vez que o presidente nega a devastação, ele dá sinal verde para que ela continue.

Sem encostar na caneta, Bolsonaro também fabrica desconfianças sobre o sistema de votação brasileiro. Com base em falsas suspeitas, ele ganha seguidores em sua campanha para questionar o resultado das urnas em caso de derrota. "Se a gente não tiver voto impresso em 2022, pode esquecer a eleição", declarou.

Um dos efeitos mais evidentes de sua retórica é a crescente inclinação dos brasileiros a não se vacinar contra a Covid-19 –percentual que saltou de 9% para 22% nos últimos meses. O aumento representa um contingente extra de 27 milhões de brasileiros não imunizados. Aqueles que nunca quiseram ver ameaças nas palavras de Bolsonaro poderiam ao menos enxergar os prejuízos.


Eliane Cantanhêde: Quem ama não mata

As vidas da mulheres importam e isso é cultura, é educação, depende do Estado e de cada um de nós

O Brasil está doente, não apenas por causa da pandemia, da economia, do desemprego, da corrupção e do desgoverno, mas porque a desigualdade social é a oitava do mundo, o trânsito é assassino e o feminicídio, endêmico, está em toda a parte, em todas as classes sociais. Um horror, uma vergonha, uma sensação de impotência num País tão especial, tão lindo, com uma natureza tão privilegiada.

Fiquemos no feminicídio, depois de dois fatos chacoalharem o Judiciário na reta final de um ano tão dramático no mundo inteiro: o assassinato no Rio de uma juíza, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, 45, e as declarações insanas de um juiz (e um juiz de Vara de Família!), Rodrigo Azevedo Costa, reveladas pelo programa Papo de Mãe, das jornalistas Mariana Kotscho e Roberta Manreza.

 Na véspera do Natal, data da esperança e da generosidade, o engenheiro Paulo José Arronenzi assassinou a juíza Viviane a facadas, na frente das três filhas de ambos, uma de 9 anos e as gêmeas de 7. Viviane tentava reagir à insanidade com racionalidade, tinha dispensado a escolta e estava levando as crianças para passar o Natal com o pai, que nem sequer se deu ao trabalho de fugir. Ficou ali, olhando a mulher morrer, até a polícia chegar.

É chocante, desesperador, e gerou reações do presidente do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)Luiz Fux, do também ministro do STF Gilmar Mendes, da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e da Defensoria Pública. Mas está dentro da "normalidade". Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 88% dos feminicídios são cometidos por atuais ou ex-companheiros e 43% deles – pasmem! – na frente dos filhos.

É, evidentemente, uma patologia. Comprova o quanto os doentes se recusam a se assumir doentes, as famílias não reconhecem o tamanho do problema, as vítimas viram reféns do pavor e da pena. Mas, muito mais do que um problema individual e familiar, trata-se de uma patologia social, em que pesam uma cultura machista e dominadora, uma educação nas escolas e nos lares que gera e reforça a sensação de posse, de proprietário e propriedade.

O resultado, macabramente caricato, é um juiz de Vara de Família capaz de bater no peito e gritar ao mundo – ou às mulheres? – que "ninguém apanha de graça", "não está nem aí para a Lei Maria da Penha" e se orgulha de ter tirado a guarda dos filhos de mães agredidas para dar aos pais agressores. Equivale a dizer: a mulher maltratada, abusada e ameaçada pede socorro ao Estado e é maltratada, abusada e ameaçada pelo agente do Estado. Estarrecedor.

A mídia está repleta de casos de mulheres espancadas e mortas, de diferentes idades e classes sociais, em todos os Estados. Na capa do Correio Braziliense de 22 de dezembro, as fotos de três moças do DF: Luciene, morta a socos no meio da rua, Maria e Cleide, vítimas de tiros. Todas três eram mães. E se tivessem recorrido ao juiz Azevedo Costa? Ou a alguém do mesmo feitio? Morreriam do mesmo jeito, mas ainda mais humilhadas e sem os filhos.

Os dois novos fatos, o assassinato de uma juíza e a exposição de um juiz injusto, jogam o foco no Judiciário, mas produzem mais discursos do que mudanças. Até porque, como adverte a juíza e escritora Andréa Pachá, não adianta endurecer ainda mais as leis, é preciso intervir em comportamentos sociais que geram e, de certa forma, estimulam a violência contra as mulheres.

Ela ensina: os criminosos não vão parar de matar a companheira por temer dois, cinco ou dez anos a mais na prisão, eles só vão parar quando a sociedade mudar, quando homens, mulheres, inclusive juízes e policiais, mudarem. Isso é cultura, é educação, depende do Estado, dos líderes, dos pais, de cada um de nós. As vidas das mulheres importam.


Rolf Kuntz: Em dois anos desastrosos, a pandemia só surgiu no segundo

Depois de dois anos de desgoverno, ainda resta o direito de desejar feliz ano novo

Desprezo à vida, quase um culto à morte, é a grande marca do presidente Jair Bolsonaro, afirmada e reafirmada em todo o seu desgoverno. Com a pandemia esse desprezo ficou mais escancarado, assim como seu despreparo para governar. Enquanto avança o contágio, o presidente chama de maricas quem tenta evitar a doença e cobra menos ansiedade na espera pela vacina. O descaso pela vida se reafirma, sem pausa, também na sua obsessão pelas armas. Pode-se morrer de bala ou de covid-19. E daí? Essa pergunta, um comentário sobre a mortandade, resume dois anos de Presidência bolsonariana – fiasco na economia, desastre na pandemia, constante ameaça à democracia. Será um prenúncio dos próximos dois?

Liderança, criatividade e solidariedade podem eclodir diante de grandes desafios. Diante da pandemia, Bolsonaro foi negacionista, como seu guia Donald Trump. Continuou centrado em objetivos particulares, como a reeleição e a proteção dos filhos. Além disso, frequentou manifestações golpistas, como no dia 3 de maio.

Mais de 100 mil casos de covid-19 haviam sido registrados e as mortes passavam de 7 mil, superando as da China, mas as prioridades do presidente eram outras. Na passeata, faixas pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso e “intervenção militar com Bolsonaro”. O presidente apareceu sem máscara, abraçou uma criança e criticou medidas sanitárias de governadores e prefeitos.

A indisposição de Bolsonaro com o STF era notória. O ministro Alexandre de Moraes havia suspendido a nomeação de Alexandre Ramagem para a direção da Polícia Federal (PF). Sem dizer a quem se dirigia, o presidente berrou ameaças.

“Vocês sabem que o povo está conosco. As Forças Armadas, ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade, também estão ao nosso lado, e Deus acima de tudo. Vamos tocar o barco. Peço a Deus que não tenhamos problemas nesta semana, porque chegamos no limite, não tem mais conversa, tá OK? Daqui para frente não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição. Ela será cumprida a qualquer preço.” Depois prometeu nomear no dia seguinte o novo diretor da PF.

Diante de golpistas, o presidente ameaçou agir “a qualquer preço” e tentou envolver as Forças Armadas – e para quê? Para sustentar sua pretensão de mandar na PF, denunciada como inaceitável pelo ministro Sergio Moro. Como essa pretensão nunca foi justificada, restava a hipótese muito comentada: era mais uma tentativa de proteger os filhos.

O interesse de um filho investigado, o senador Flávio Bolsonaro, seria o assunto, meses depois, de um encontro com participação de Alexandre Ramagem, chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), e do general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Dessa reunião resultaram, segundo a revista Época, instruções para a defesa do senador, acusado de rachadinhas durante o mandato como deputado estadual.

Ramagem e Heleno confirmaram a reunião com a defesa do senador, mas negaram ter produzido instruções. Além disso, qualificaram o encontro como legal, por ser atribuição do GSI e da Abin cuidar da segurança do presidente e de seus familiares. Mas isso inclui segurança contra investigação de rachadinha ou de outro crime?

Bolsonaro achou tempo para cuidar da reeleição. Meio por acaso, descobriu os pobres. A descoberta ocorreu quando o ministro da Economia, no começo da nova crise, propôs auxílio de R$ 200 para os mais vulneráveis. O presidente da Câmara sugeriu R$ 500 e Bolsonaro, com aparente entusiasmo pelo novo jogo, defendeu R$ 600.

Houve bons efeitos e ele decidiu propor uma Bolsa Família – antes chamada de Bolsa Farinha – com marca própria. Não deu certo, ainda, mas o presidente descobriu as possibilidades de um novo eleitorado, e logo no Nordeste.

As medidas emergenciais funcionaram, como em outros países, e atenuaram a crise, mas deixaram enorme buraco fiscal. O mercado entende as novas condições e apenas cobra um claro compromisso de seriedade nos próximos anos. Mas o comportamento errático do presidente em relação às questões fiscais, somado à sua política antiecológica, assustou o mercado, espantou investidores e resultou em enorme depreciação cambial. No fim de outubro, só as moedas de Zâmbia e do Suriname se haviam desvalorizado, em 2020, mais do que o real. Inflação maior foi um dos efeitos.

A economia já ia mal antes do novo coronavírus. Havia crescido só 1,6% em 2019, depois de avançar 1,8% em cada um dos dois anos anteriores. O produto interno bruto (PIB) do primeiro trimestre de 2020 foi 1,5% menor que o dos três meses finais do ano passado. Só um projeto importante havia sido aprovado no primeiro ano de mandato, a reforma da Previdência, já amadurecida no período do presidente Michel Temer. Nenhuma das muitas privatizações prometidas foi realizada até agora, e Bolsonaro acaba de se declarar contrário à venda da Ceagesp, antes pautada com sua autorização.

Mas todos têm o direito de pelo menos desejar feliz ano novo a todos os demais – tão feliz quanto possível no Brasil de Bolsonaro.


Blog do Noblat: Viva o povo brasileiro e o seu condutor!

Mudou o Natal ou mudamos?

O presidente Jair Bolsonaro e os brasileiros se merecem. Antes que o dito possa soar como um insulto (no caso a uma parte dos brasileiros), avanço na justificação.

Pouco importa que ele seja um presidente acidental, em grande débito com a facada que levou em Juiz de Fora quase às vésperas da eleição e com o antipetismo de raiz.

Colheu mais de 56% dos votos no segundo turno da eleição. Sua vitória não foi contestada por ninguém, a não ser por ele mesmo que viu fraude no primeiro para impedi-lo de se eleger logo.

Depois de dois anos de (des)governo, continua sendo bem avaliado. Em todas as pesquisas de intenção de voto feitas até aqui, derrota com conforto seus eventuais adversários em 2022.

Assim, sente-se liberado para dizer o que pensa, e o faz sem temer revezes. E sem que isso cause severos danos à sua imagem. Afinal, o que diz é o que está na cabeça da maioria dos que o apoiam.

Desfila sem máscara por aí quando a pandemia se aproxima do número oficial de 220 mil mortos e de quase 8 milhões de infectados. E daí? Não é o que vemos por toda parte?

O governo de São Paulo adotou medidas de isolamento para barrar o avanço do vírus no período de festas do fim de ano. Dezenas de cidades praianas do interior do Estado não ligaram para isso.

Em Manaus, ontem, centenas de pessoas ocuparam as ruas do centro para protestar contra iguais medidas, e depois tentaram depredar a casa do governador.

Foram aclamadas nas redes sociais pelo deputado Eduardo Bolsonaro, o Zero Três, que, como o pai, quer mais é ver o povo nas ruas e, de preferência, armado.

Neymar convidou 500 amigos para cinco dias seguidos de festa na sua mansão em Mangaratiba, no litoral do Rio. Ora, o dinheiro é dele, irá quem quiser e celebridade pode tudo.

Cresce o número de países na América Latina que começaram a vacinar seus habitantes. É o caso, por exemplo, do México, Costa Rica, Colômbia, Chile e, agora, Argentina.

Se tudo correr bem, e não tem corrido desde o início da pandemia, só começaremos a ser vacinados no fim de fevereiro. São Paulo que começar antes, mas poderá ser impedido.

Bolsonaro não se sente pressionado pelo fato de outros países já terem começado a vacinação em massa. “Não dou bola pra isso”, comentou com a maior desfaçatez.

E desqualificou as vacinas: “Tudo que eu vi até agora em vacina que poderão estar disponíveis tem uma cláusula que diz que eles não se responsabilizam por qualquer efeito colateral”.

Sua parceria com o vírus foi bem-sucedida até aqui, a levar-se em conta a indiferença dos brasileiros que não o culpam pelas mortes. Por que deixaria de ser daqui em diante?

É fato que era de 19% o índice dos que em junho deste ano apontavam a Saúde como o principal problema do país e, agora, é de 27%, segundo pesquisa recente do Datafolha. Mas, e daí?

Em março de 2011, o índice era de 31%, chegou a 48% em junho de 2013 e, em dezembro de 2014, foi a 43%. E não houve pandemia em nenhum desses anos.

Mudou o Natal ou mudamos para pior?


Submissão aos EUA não combina com nação do tamanho do Brasil, diz Hussein Kalout

Em artigo na revista da FAP de dezembro, pesquisador de Harvard critica política externa do Estado brasileiro

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O pesquisador da Universidade de Harvard e ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República Hussein Kalout critica a subserviência do Brasil em relação aos Estados Unidos, no governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “Uma relação equilibrada e produtiva com os EUA é desejável e sempre foi o objetivo do Estado brasileiro. Mas o recurso à submissão não se coaduna com a vocação de uma nação da envergadura do Brasil”, afirma ele, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. A submissão, segundo o pesquisador, é “francamente contrária à vocação universalista da política externa brasileira e sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, tanto desenvolvidos como em desenvolvimento, em benefício de nossos próprios interesses”.

Na avaliação de Kalout, o que está sendo legado ao Brasil, desde o início da administração Bolsonaro, é uma política da destruição que substitui a racionalidade pela ideologia, o senso de realidade pela fantasmagoria, a luta por uma ordem baseada em regras por um desprezo do direito que flerta perigosamente com o caos. “O discurso fala em valores conservadores, liberdade e nacionalismo, mas a substância nos aproxima do precipício, isola o país e o condena à irrelevância”, afirma. “Essa diplomacia do caos e seus tentáculos obscurantistas cedo ou tarde tem encontro marcado com história”, diz.  

Kalout, que também é professor de Relações Internacionais e cientista político, também analisa os ataques do Brasil contra a China. “A desnecessária agressividade contra o nosso maior parceiro comercial, que é a China, revela o nível obtuso dessa diplomacia”, critica. “Atacar os chineses, em um momento em que nossa economia precisa preservar o escoamento de sua produção e garantir a renda de muitos brasileiros, revela, enfim, o grau de irresponsabilidade dos formuladores dessa ‘política externa’. O atrito com Pequim não serve aos interesses nacionais do Brasil”, alerta.

O cientista político também diz que, sem abandonar a ideologia, as fantasias e as alegorias fantasmagóricas que atualmente animam a “política externa” brasileira de corte fundamentalista, não será possível voltar a enxergar a realidade tal como ela é. “Devemos trazer a política externa a seu leito tradicional, de Rio Branco a San Tiago Dantas, cujos elementos centrais foram consagrados pela Constituição Federal”, lembra.

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Luiz Carlos Azedo: Mudar ou ser mudado

Nada será como antes depois de controlada a pandemia — no decorrer de 2021, na maioria dos países desenvolvidos —, um novo ciclo de globalização está sendo iniciado

A segunda onda da pandemia de covid-19, que registra mutação do novo coronavírus — há evidências de que já transborda da Inglaterra para outros países europeus e, provavelmente, chegou ou chegará por aqui — é a face mais visível de uma contradição com a qual teremos que lidar durante muitos anos: a globalização é um fenômeno objetivo e irreversível, mas carece de mecanismos de governança mundial eficazes para neutralizar seus efeitos mais perversos, que aprofundam as desigualdades no mundo.

A pandemia é uma lente de aumento sobre o problema, se levarmos em conta que as transformações na estrutura produtiva do planeta, cujo dinamismo é ditado pelas inovações tecnológicas e os novos conhecimentos, colocaram em xeque as políticas ultraliberais. Revelou que a saúde pública, por exemplo, continua sendo uma prioridade para a economia. Muitos imaginavam, com o advento do não-trabalho e a inutilidade de grandes exércitos industriais de reserva, que políticas universalistas de saúde deixariam de ser necessárias para a reprodução do capital em escala global, assim como a boa formação educacional pública e gratuita, pois supostamente já não se precisaria da mesma abundância de mão de obra saudável e escolarizada disponível para o desenvolvimento.

Quem diria, por exemplo, que o home office se generalizaria em decorrência de um problema de saúde pública e não apenas da existência da tecnologia necessária para a reestruturação da organização do trabalho. Foi mais ou menos o que ocorreu com a telefonia fixa, criada no final do século XIX, mas somente incorporada à vida doméstica após a Segunda Guerra Mundial, com a diferença de que o smartphone se popularizou num intervalo de tempo muito menor (o iPhone foi criado em 2007). O que aconteceu com a grande indústria mecanizada, na qual a maior parte dos operários foi substituída por robôs, está se dando, agora, nos grandes escritórios e lojas de departamento, por causa da pandemia, numa velocidade maior do que se imaginava, e de forma irreversível.

É nesse contexto que a eleição de Joe Biden, nos Estados Unidos, com a derrota do nacionalismo e do negacionismo de Donald Trump, dará um novo impulso aos debates que já estavam em curso nos grandes fóruns internacionais, sobre o problema da governança global e a necessidade de um desenvolvimento mais sustentável, cujo epicentro vinha sendo o Fórum Econômico Mundial, em Davos. Que ninguém se iluda, nada será como antes depois de controlada a pandemia — o que deve acontecer no decorrer de 2021, na maioria dos países desenvolvidos, com a vacinação em massa —, um novo ciclo de globalização está sendo iniciado, com o 5G e a plena implantação da Internet das Coisas, com ênfase na economia limpa e no combate às desigualdades.

Modernização

Não se espantem com o aumento da frequência com que a sigla ESG (environmental, social and corporate governance) — não confundir com a Escola Superior de Guerra — entrará no glossário do nosso economês. Sustentabilidade, responsabilidade social e governança corporativa formam, agora, uma espécie de Santíssima Trindade para os principais fundos de investimentos e grandes corporações. Estima-se que 45 trilhões estão sendo aplicados em empreendimentos com essas características, ou seja, metade dos investimentos previstos em todo o mundo. Multinacionais como Nestlé, Walmart e Tesco já excluíram de sua lista de fornecedores, por exemplo, os produtores associados ao desmatamento do cerrado brasileiro. O resultado prático já se faz sentir no agronegócio, que vende cada vez menos para a Europa.

No Brasil, os ciclos de modernização sempre foram impulsionados pelo Estado, concentraram renda e descartaram mão de obra dos ciclos anteriores (açúcar, ouro, café, borracha). O que os historiadores chamam de “revolução passiva” resultou na industrialização, na modernização da agricultura e na urbanização acelerada dos país, porém, aprofundou desigualdades regionais e sociais. O ciclo de substituição de importações se esgotou, mas as consequências perversas, que dispensam maiores detalhes, de tão escancaradas estão, perduram. O conceito de “revolução passiva” — mais do que “modernização autoritária” ou “via prussiana” —, valoriza os aspectos políticos desse processo, em boa parte ocorrido durante a ditadura Vargas (1930-1945) e o regime militar (1964-1965). Nesse sentido, devemos destacar os governos de Juscelino Kubitscheck (1956-1960), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010), nos quais houve crescimento econômico e redução da pobreza, num ambiente democrático, sem prejuízo das ressalvas à inflação, à focalização dos gastos sociais e à corrupção generalizada, respectivamente.

No Brasil, pesos pesados da economia, nacionais e estrangeiros, já se articulam em defesa da economia sustentável, da boa governança corporativa e da transparência nas relações público-privadas. Saem na frente diante de um novo ciclo da globalização, mas esbarram numa situação em que o governo Bolsonaro realiza uma marcha forçada na direção contrária. De certa forma, a disputa de narrativas que já se estabeleceu na sociedade — em torno de temas como nossa política externa, a Amazônia, a política de saúde pública, a violência urbana etc. — reflete essa contradição. De alguma maneira, o Brasil terá que se reposicionar diante do que está em curso no mundo. Ou o governo muda ou será mudado em 2022.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-mudar-ou-ser-mudado/

Cristovam Buarque: Vacina contra o Atraso

Escola de qualidade para todos, uma questão nacional

 O Brasil percebe que o seu sistema de vacina imunológica deve ser resultado de esforço e estratégia nacionais. Mas se recusa a tratar a vacina contra o atraso, a escola de qualidade para todos, como uma questão nacional.

Os Estados Unidos surgiram como união de estados independentes, sem intenção clara de ser um país unificado. Entre 1776 e 1861, a escravidão foi deixada como opção de cada estado. Para impor a vontade nacional de abolir a escravidão foi preciso uma guerra civil. No século do trabalho livre, os Estados Unidos entenderam que a Abolição não era uma questão de cada estado. No século do conhecimento, o Brasil precisa entender que educação é uma questão federal, não municipal.

Nascemos com a unidade de um Estado Imperial. A Abolição foi aceita por todos “estados” e municípios. Até porque já não interessava manter a escravidão no único país do Ocidente que ainda tinha este regime desumano, bárbaro, repulsivo e atrasado economicamente.

Mas cultura escravocrata se manteve na sua última trincheira, ao negar escola aos filhos dos ex-escravos e dos pobres em geral. É graças a isto que se mantém formas de trabalho servil, desigualdade, improdutividade, pobreza, racismo e o atraso nacional. Ingressamos na Era do Conhecimento oferecendo educação de qualidade conforme a renda da família e a receita e a vontade do município onde a criança mora. Além de indecente, porque sacrifica a vida da criança, esta diferenciação é estúpida, porque desperdiça o potencial de dezenas do principal fator de produção nos tempos atuais: o cérebro. A educação é o cimento da nacionalidade e a ferramenta do progresso. Impossível conseguir isto se a qualidade da escola depende da renda e do endereço.

Se olharmos para o futuro com o propósito de quebrar as amarras do atraso e construirmos progresso econômico e social, vamos perceber que o Brasil precisa de um sistema nacional para a educação de base de todas suas crianças. Nos últimos 40 anos, fizemos dezenas de leis e programas para o governo federal apoiar, sem responsabilizar-se os quase 7.000 sistemas educacionais mantidos e geridos pelos municípios. Melhoramos quando nos comparamos com o nosso passado, mas ficamos para trás e abrimos brechas ficando para em relação aos outros países; também em relação ao que um aluno de hoje aprende, comparado com o que precisa saber; e aumentando a brecha entre a educação dos pobres e a dos ricos.

A implantação de um sistema nacional é uma necessidade a ser implantado em uma estratégia ao longo de anos, voluntariamente, nos municípios que desejem.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador.


George Gurgel: Entre os desejos e as realidades, 2021 está chegando

Na chegada de um novo ano, em qualquer Sociedade, são anunciados os melhores desejos para os que estão próximos e aos que não estão tão próximos assim: na verdade, queremos o melhor para toda a humanidade, considerando as nossas distintas realidades e as nossas próprias expectativas em relação ao ano que se aproxima. 

Assim, a Humanidade se desenvolveu e chegou ao ano de 2020. Foi e vai sendo moldada pelos valores culturais, econômicos, sociais hegemônicos, em tempos de guerras e de paz.  Lembrando, que só no século XX, fomos capazes de fazer duas guerras mundiais:  com bombas atômicas jogadas, em tempos distintos, em Hiroshima e Nagazaki. Portanto, o nosso desafio principal continua sendo a construção de uma cultura da Paz, a ser defendida e conquistada, permanentemente.

Esta tem sido a nossa caminhada como Humanidade. Vamos nos transformando e transformando a natureza, da qual somos parte integrante.

A pandemia em curso durante o ano de 2020, e a proximidade de 2021, é mais uma oportunidade de nos admirarmos e nos questionarmos sobre o que estamos fazendo com as nossas vidas, como nos relacionamos e, quais são os nossos valores e a nossa práxis no caminho da construção de um novo humanismo, respeitando a diversidade cultural, espiritual, étnica da Humanidade, colocando o imperativo categórico de uma mudança urgente das nossas relações insustentáveis que estabelecemos entre nós e com a própria natureza.

O que podemos fazer?

O que temos a dizer como Humanidade em relação às questões antes destacadas?

O que estamos herdando de 2020, ano inicial da pandemia da covid-19?

O que queremos e podemos fazer neste ano de 2021 que se aproxima?

No ano de 2020, a pandemia chegou e deu uma maior visibilidade à nossa tragédia política, econômica e social. Acelerou algumas mudanças, desnudou e modificou comportamentos, impactou o nosso cotidiano, a nossa maneira de viver em sociedade.

Os resultados recentes da pesquisa da OCDE em relação à economia mundial, particularmente a situação do G 20 -  grupo de 19 países mais a União Europeia, apontam para o crescimento de 8,1 % da economia brasileira no terceiro trimestre deste ano, após queda sem precedentes do PIB brasileiro na primeira metade de 2020, quando as economias brasileira e mundial foram impactadas pela pandemia. 

O Brasil ficou e continua abaixo da média de recuperação da economia dos países da OCDE, crescendo apenas 7,7%.  O PIB da Índia foi o que mais se recuperou no período, com 21,9%, após uma queda de 25,2% no trimestre anterior, a maior retração já alcançada entre as economias do G20.

Os dados divulgados pela OCDE evidenciam que as nossas relações políticas, econômicas e sociais estabelecidas e reafirmadas durante a pandemia continuam insustentáveis e não atendem às expectativas da maioria da Sociedade.

Portanto, frente a essa realidade, continuamos a ser desafiados, em 2021, a construir e defender valores que nos coloquem no caminho da sustentabilidade política, econômica, social e ambiental.  Devemos persistir e continuar a trabalhar para superar a triste e desoladora realidade social de uma parcela majoritária da população mundial, desrespeitada nos seus direitos básicos, consolidados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a saber: de ir e vir, moradia, educação, saúde, trabalho e renda, além de uma agenda primordial, a ser conquistada.

 Nós, como humanidade, devemos continuar comprometidos com o enfrentamento sistemático dos graves problemas sociais, econômicos e ambientais vividos no cotidiano das nossas vidas, agravados com a pandemia neste ano de 2020.

Ainda, as relações internacionais continuam desafiadas, como nunca, ao exercício do multilateralismo e ao fortalecimento da Cultura da Paz. O conteúdo das mudanças em curso e das que devem ser realizadas, durante a pandemia e o futuro imediato, deve ser pauta permanente da ONU, FMI, OIT, OMS, União Europeia, MERCOSUL, entre outras Organizações Internacionais, nesse processo de tomada de consciência para as mudanças urgentes a serem realizadas nos planos internacional e nacional, voltadas para uma maior inclusão social, construção de uma nova economia de baixo carbono, atenção às mudanças climáticas e à preservação dos ecossistemas do Planeta.

Assim, a Sociedade no ano de 2021, que se aproxima, estaria sendo contemporânea dos desafios atuais e do futuro, na busca da superação dos conflitos e contradições estabelecidos e construídos historicamente e, atualmente, pela Humanidade.

Algumas dessas transformações já estão acontecendo. São processos em curso. Novas relações estão sendo construídas, a partir das mudanças técnicas em andamento e de novas relações políticas e sociais em construção nas redes, nas ruas, no mundo do trabalho e da cultura, impactados pela pandemia.

As Organizações Governamentais, Não Governamentais e a Cidadania devem persistir e trazer para suas pautas as distintas realidades políticas, econômicas e sociais, identificando as contradições e os conflitos da sociedade, de maneira geral, com especificidades e particularidades, em função da realidade política, econômica e social.

Quais as questões estruturantes a serem consideradas neste contexto frente à realidade internacional e brasileira?

No Brasil, a qualidade das políticas públicas atuais e as que devem ser construídas levariam às mudanças políticas, econômicas e sociais, na medida em que sejam construídos novos conteúdos e pactos entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais.

A ampliação da Democracia e a consequente participação da Cidadania são instrumentos fundamentais no caminho desta sustentabilidade econômica, social e ambiental desejadas.

Enfim, a Sociedade em geral está convocada a ter uma efetiva participação na construção e na implementação dessas políticas públicas no caminho da sustentabilidade econômica, social e ambiental, respeitando as especificidades nacionais.

A insustentabilidade política, econômica e social, em que vivemos, reflete as disfuncionalidades e limites das atuais estruturas políticas, econômicas e sociais responsáveis pela formulação e implementação dessas políticas nacionais e internacionais. 

A autonomia da Sociedade, em relação ao corporativismo do Estado e do Mercado, é um dos principais desafios da Governança Democrática Nacional e Internacional.

Portanto, a eficiência de uma Governança Democrática está relacionada com os meios, os modos de construção, de implementação das políticas nacionais e regionais, em cooperação com as Organizações Multilaterais Internacionais e Nacionais.

Os avanços da Democracia, com conquistas efetivas de toda a Sociedade, aconteceram naqueles países em que foi possível a construção de pactos políticos, econômicos e sociais que garantiram e continuam garantindo políticas públicas democráticas, inclusivas, para a maioria da Sociedade.    

É importante ainda destacar, nesse contexto, os limites do próprio Estado Nacional, em uma Sociedade cada vez mais mundial, ampliados com as crises política, econômica, social e de valores que estamos enfrentando nesses tempos de pandemia, evidenciando de maneira evidente a interdependência e a complementariedade entre o nacional e o internacional.

Em relação ao Brasil, no ano que se avizinha, o campo democrático continua sendo desafiado a entender a gravidade e a complexidade do momento político em que vivemos.  Há que haver uma maior articulação entre os discursos e as ações dessas forças democráticas no Congresso Nacional e na Sociedade em geral, no caminho de uma alternativa democrática para a superação da crise política, econômica, social e de valores que estamos vivendo. 

Finalmente, continuamos desafiados(as), em 2021, a um maior protagonismo da Sociedade brasileira e mundial, buscando o fortalecimento da Sociedade Civil, com o exercício pleno da Cidadania.

Estes são alguns dilemas de uma Governança Democrática Mundial e Nacional, durante o ano de 2021: a necessidade de ampliação e fortalecimento da Democracia, através da construção de pactos entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais nacionais e internacionais, no caminho de uma Governança Democrática Mundial, considerando as especificidades nacionais.

Que seja bem vindo, ano de 2021!

*George Gurgel, Universidade Federal da Bahia, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade