Day: dezembro 27, 2020

Samuel Pessôa: Olhando para frente e para trás

Recuperação plena da economia dependerá de solução mais definitiva para a epidemia

Última coluna do ano. Momento em que normalmente faço o balanço do cenário que tracei no fim do ano anterior (2019) para este que se encerra, 2020. E em que desenho o cenário para o ano que se inicia.

Imaginava que o crescimento em 2020 seria de 2,5%. Com a pandemia, devermos ter queda de 4,7% em 2020.

A excepcionalidade da epidemia torna inútil qualquer avaliação do ocorrido frente ao projeta do. Resta-nos olhar para frente.

A equipe de projeção macro do Ibre, liderada por Silvia Matos, prevê que no ano próximo o crescimento será de 3,6%.

Mesmo essa projeção tem enorme incerteza. Mais do que normalmente. Na verdade, vivemos um momento em que também é extremamente difícil olhar à frente.[ x ]

Talvez o melhor seja olharmos para onde estamos agora. Segundo o Ibre, no 4º trimestre de 2020, a economia terá rodado 3,6% abaixo do nível do último trimestre de 2019. Somente o setor de ‘outros serviços’ —turismo, alimentação fora do domicílio, entretenimento (esporte e cultura) e serviços pessoais— responde por 2 pontos percentuais (pp) dessa queda.

Os serviços da administração pública —essencialmente as escolas fechadas— respondem por 0,8 pp.

Portanto, apenas esses dois subsetores dos serviços explicam 78% da queda do 4º trimestre ante o mesmo trimestre de 2019 (2,8 pp de 3,6% de queda).

Ou seja, no segundo semestre de 2020, a economia teve uma retomada em “V” para aqueles setores não muito afetados pelo distanciamento social.

A recuperação plena da economia e um crescimento maior do que os 3,6% enxergados pelo Ibre para 2021 dependerão de uma solução mais definitiva para a epidemia.

Para a inflação, sempre considerando o acumulado em 12 meses, o cenário é fechar 2020 em 4,5%, subir até 6,5% em maio de 2021 e, a partir daí, ocorrer forte “devolução” dos choques que já ocorreram.

A inflação fecha o ano que vem próxima a 3,5%.

Quatro foram os choques que pressionaram a inflação: elevação dos preços das commodities em função da recuperação forte da China; subida dos preços das proteínas por causa do problema sanitário com o rebanho suíno chinês; a desvalorização do câmbio; e o ciclo de estoques na indústria e no varejo, fruto da desorganização das cadeias produtivas com a parada súbita da economia no 2º trimestre.

Há dois cenários adicionais para a inflação. Se o Congresso aprovar uma lei orçamentária para 2021 que desancore a política fiscal, o câmbio deve caminhar para R$ 6,5 aproximadamente e a inflação deve fechar 2021 na casa de 4,5% - 5%. Se a segunda onda gerar uma nova desinflação dos serviços no primeiro bimestre do ano, e o crescimento for mais fraco ao longo de 2021, a inflação pode fechar em 2,5%.

Nossa resposta fiscal à pandemia foi a maior da América Latina. Gastamos 12% do PIB, ante 4% para a média do continente. Assim, tivemos um sobregasto de 8 pp do PIB em relação aos países de nossa região.

Segundo cálculos de meu colega do Ibre Bráulio Borges, cada 1 pp do PIB reduziu o tombo da economia em ¼ de pp. Assim, se não fosse nosso sobregasto, em vez de queda de 4,7%, cairíamos 6,7%.

Difícil saber, a partir de uma análise de custo e benefício, se o gasto foi ótimo em termos econômicos, isto é, a opção mais vantajosa. Em última instância, trata-se de uma escolha política. Mas agora que já tomamos a decisão e já colhemos os benefícios de nossa escolha, ficará para o futuro a pesada conta da dívida.

A todos nós feliz 2021 que, pelo andar da carruagem, começará de verdade no segundo semestre. Até lá ainda lidaremos com o vírus.Samuel Pessôa

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.


Guido Mantega: Mais uma década perdida

Crescimento de desigualdade e concentração de riqueza alimentou conflitos e geraram onda populista de extrema direita

A crise do coronavírus reflete o triste fim de uma década infame, que começou mal em 2011, sob o impacto da grande crise financeira de 2008. Nesse período, o comércio mundial encolheu e a maioria dos países não cresceu, ou o fez a um ritmo muito lento, o “novo normal”.

No Brasil, caso se confirme a previsão de um PIB negativo de 5% neste ano, a economia do país terá ficado estagnada nesses dez anos, com crescimento anual de no máximo 0,2%. Não se trata só de mais uma década perdida, mas a de pior desempenho desde a que inaugurou o século passado, segundo o IBGE.

O capitalismo mundial vem perdendo dinamismo desde o fim das políticas de bem-estar social, nos anos 70. Desde então, a cada década o investimento no mundo fica mais fraco —no Brasil caiu de 20,5% do PIB em 2014 para 15,4% em 2019.

Depois da crise de 2008, a produtividade dos países avançados e do Brasil cresceu em média de 0,5% a 1% ao ano. Foi a menor alta das últimas cinco décadas. Com a desregulação dos mercados estabeleceu-se o império do capital financeiro.

Os lucros apropriados pelo setor financeiro, que representavam 10% do lucro das corporações em 1950, passaram para mais de 30% em meados da década de 2010. No Brasil os juros e os lucros do setor financeiro continuaram elevados nos anos 2010, conforme pode ser constatado pelos lucros dos grandes bancos.

A outra face dessa moeda é a precarização do trabalho e o aumento da desigualdade e da concentração de renda em escala mundial. Agora, com a Covid-19, o desemprego vai bater recorde na maioria dos países. No Brasil já está em 14%, e tende a aumentar no ano que vem.[ x ]

De acordo com o IBGE, os 10% mais ricos da população brasileira concentravam 43% da massa de rendimentos em 2018, enquanto os 10% mais pobres ficavam com apenas 0,8%. O aumento da desigualdade e da concentração de renda é uma característica marcante da década de 2010, com perda de direitos dos mais pobres e a consequente deterioração da democracia.

Martin Wolf escreveu no Financial Times que a ascensão do capitalismo rentista poderá significar a morte da democracia liberal.

O Brasil começou a década perdida com expansão razoável de 3% ao ano e chegou a 2014 com a economia desacelerada, mas com uma dívida líquida baixa (36,7% do PIB) e com abundantes reservas financeiras (US$ 376 bilhões). No final de 2014 o desemprego era de 4,7%, o menor da séria histórica, assim como a pobreza e a miséria estavam nos mais baixos patamares.

Logo depois da reeleição de Dilma Rousseff o país mergulhou numa forte crise política que deixou o governo acuado. A Operação Lava Jato paralisou a Petrobras e a cadeia produtiva de gás e petróleo, e as grandes construtoras, responsáveis por boa parte do investimento.

Essa crise foi amplificada pelo abandono da estratégia desenvolvimentista praticada até 2014. Com a nomeação de Joaquim Levy para o ministério da Fazenda em 2015 foi inaugurada uma nova fase neoliberal que vigora até hoje.

O crescimento da desigualdade social e da concentração de riqueza alimentou fortes conflitos, que desembocaram em mobilizações sociais e geraram uma onda populista de extrema direita, que fomentou o ódio e a radicalização. Foi assim que surgiram Donald Trump, nos EUA, e Bolsonaro, no Brasil. Grã-Bretanha, Polônia e Hungria são outros exemplos.

O esgarçamento do tecido social e o desespero da população nos EUA foi muito bem retratado por A. Deaton e A. Case no livro “Deaths of Despair” (2019). O livro registra a proliferação de suicídios e mortes por overdose devido ao consumo excessivo de álcool e opioides. No Brasil a situação não é diferente. O país é o quinto em número de pessoas com depressão —cerca de 12 milhões, segundo a Organização Mundial da Saúde.

O cenário não é animador. Mas já apareceu uma luz no fim do túnel: a recusa do eleitor americano em renovar o mandato de Trump, o símbolo do novo autoritarismo. Pode ser o primeiro passo para a queda de outros líderes truculentos e incompetentes.

*Guido Mantega foi ministro do Planejamento (2003 a 2004), presidente do BNDES (2005) e ministro da Fazenda (2006 a 2014). É professor da FGV desde 1980.


Hamilton Mourão: Tudo pela Amazônia!

A sociedade confiou no governo Bolsonaro e nós daremos a resposta que ela espera

Há dois anos tomavam posse o 38.º presidente e o 25.º vice-presidente do Brasil, com a convicção de haver muitos desafios a ser enfrentados num Brasil desmotivado, machucado por recorrentes crises políticas e econômicas e que se envergonhava ao olhar no espelho e ver refletidos tantos episódios de desentendimentos e corrupção.

A Amazônia sofria com a ausência do Estado, projetos inconsistentes e crenças ambientais equivocadas que por anos foram deliberadamente plantadas e cultivadas na mente dos brasileiros como verdadeiras. Por ser uma região distante e de difícil acesso, que poucas pessoas de fato conheciam, muitas acabaram aceitando essas verdades criadas por especialistas de suas vontades, plantadas como “boas sementes” e cuidadosamente regadas até criarem raízes.

No lugar de árvores, as verdades plantadas germinaram ervas daninhas, que, como é da natureza da espécie, se alastraram rapidamente, trazendo danos incalculáveis, que impediram o desenvolvimento sustentável da Amazônia e de seu povo, enclausurando-os em estufas isoladas do resto do Brasil, com infraestrutura e serviços públicos insuficientes e acesso mínimo a avanços econômicos, tecnológicos e científicos, como os providos à Região Centro-Sul, agregando à distância geográfica o distanciamento econômico e social entre essas regiões. Pouco pela Amazônia...

Reconhecendo a necessidade de coordenação de esforços e maior presença do Estado em prol de preservação, proteção e desenvolvimento sustentável da Amazônia, o presidente Bolsonaro recriou, em 11/2/2020, o Conselho Nacional da Amazônia Legal (Cnal), delegando-me a tarefa de conduzi-lo. A gestão efetiva da porção brasileira da Amazônia constitui enorme desafio, só comparável à dimensão da maior floresta tropical do planeta, que ocupa cerca de 60% do território nacional. Desde então, trabalhamos incessantemente, buscando integração e prioridade dos diversos projetos, ações e políticas relacionados àquela área.

Também nos dedicamos a ouvir, unir esforços e estabelecer diálogo com líderes políticos, estaduais, empresariais, sociais, estrangeiros, formadores de opinião, instituições científicas, academias e comunidades locais, em prol da melhoria dos índices de sustentabilidade e desenvolvimento humano, enxergando a Amazônia como um todo – fauna, flora, riquezas minerais, hídricas e pessoas, num quadro de desafios, mas também de muitas oportunidades.

Conduzi três reuniões com os ministérios que compõem o Cnal. Articulei com Estados e municípios a cooperação e gestão integrada e compartilhada de políticas públicas entre as três esferas de governo. Com exceção do Tocantins, visitei todos os Estados da Amazônia Legal para conhecer suas realidades, ouvir as preocupações e demandas de governadores e sociedade e alinhar ações. Apresentei a embaixadores estrangeiros os verdadeiros índices brasileiros de preservação ambiental (84% da vegetação nativa na Amazônia e 66% em todo o território nacional) e os levei para verificar in loco a complexidade, os desafios, oportunidades e projetos da região. Articulei parcerias público-privadas. Ouvi os anseios de grupos representativos da sociedade civil e comunidades locais, considerando suas percepções e necessidades no desenvolvimento dos trabalhos e planejamento de ações futuras. Contribuímos para o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima. Criamos a Comissão Brasileira da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, permanente do Cnal. Buscamos a retomada do Fundo Amazônia e novas fontes de financiamento, entre outras iniciativas.

Estruturamos diversos instrumentos norteadores para a região e os trabalhos do conselho, como Mapa Estratégico e Plano de Comunicação do Cnal, Iniciativas Estratégicas Prioritárias, Plano de Ações Imediatas e, em finalização, o Plano de Coordenação e Integração de Políticas Públicas e o Plano Estratégico 2020-2030, documento orientador para as ações dos ministérios que integram o Cnal, representando um pacto a favor da Amazônia e compromisso com o fortalecimento das ações governamentais na região.

Com atuação no campo da Operação Verde Brasil 2, com as Forças Armadas em apoio aos órgãos de segurança e fiscalização estaduais e federais, avançamos no combate a crimes ambientais e outros ilícitos, obtendo resultados expressivos, como na apreensão de madeira ilegal (187,147 m3), embarcações (1.518), minerais (154.050.045 kg), drogas (392 kg), tratores (261); e nos índices de desmatamento, que estão em queda desde junho, na faixa de 20% a 30%, com exceção de outubro, que teve um pico, mas voltando a cair 44% em novembro em relação ao mesmo período de 2019.

Em 2021 continuaremos atuantes, aperfeiçoando nossos esforços em benefício da Amazônia e das gerações presentes e futuras, tendo como prioridades o monitoramento e o combate a crimes ambientais e fundiários, fortalecimento das agências ambientais, incremento de fontes de financiamento, regularização fundiária e ordenamento territorial e estímulo à inovação e à bioeconomia.

A sociedade brasileira confiou no governo Bolsonaro e nós daremos a resposta que ela espera: tudo pela Amazônia, enxergando a Amazônia como um todo!

VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA


Lourival Sant'Anna: Força das adversidades

Com maturidade, a União Europeia saiu mais forte nas negociações com o Reino Unido

Europa se deu um presente de Natal. O acordo com o Reino Unido na quinta-feira culminou um ano difícil para os europeus – como para todo o mundo –, mas que representou um teste de estresse do qual a União Europeia (UE) saiu mais forte e madura.

O acerto foi alcançado uma semana antes de expirar o prazo. No dia 31, o Reino Unido sairia da UE mesmo sem acordo, o que significaria retroceder para as normas da Organização Mundial de Comércio, algo experimentado só por países muito isolados, como o Brasil, com os resultados conhecidos. 

Escritório de Responsabilidade Orçamentária, agência britânica independente, calculou que o Brexit com acordo causaria perda de 4% de crescimento do PIB britânico nos próximos 15 anos; sem acordo, 6%. 

O comércio bilateral soma cerca de US$ 1 trilhão ao ano. A UE é o destino de 43% das exportações britânicas, e a origem de mais da metade dos produtos importados pelo Reino Unido. A interdependência, depois de cinco décadas de integração, é profunda. 

Ambos os lados fizeram concessões. O primeiro-ministro Boris Johnson cumpriu sua promessa fundamental de recuperar a soberania britânica em matéria de regulação. A UE assegurou que o livre-comércio com o Reino Unido continue sob igualdade concorrencial.

As trocas da maioria dos produtos continuarão com tarifa zero, e sem cotas. Salvaguardas de confiança e o uso de detectores que permitem a inspeção alfandegária por aproximação ao longo de rodovias e ferrovias procurarão evitar a formação de gargalos nos portos e fronteiras. 

O governo britânico se comprometeu com os princípios europeus que regem subsídios públicos para empresas, práticas ambientais e direitos trabalhistas. Entretanto, não estará submetido diretamente às regras da UE nem à Corte Europeia de Justiça. Um mecanismo de reequilíbrio, com arbitragem independente, compensará diferenças que afetem a competitividade.

Outro ponto que bloqueava um acordo era a reivindicação da UE de manter o direito à pesca no mar britânico. Num período de transição de cinco anos e meio, as cotas dos pescadores do continente diminuirão 25%. Depois disso, o acesso dos barcos de pesca europeus aos mares britânicos, que lhes rendem hoje € 650 milhões, dependerá de acordos anuais.

O outro grande contencioso já havia sido superado no dia 8, em um acordo em separado: a manutenção da fronteira aberta entre a província britânica da Irlanda do Norte e a República da Irlanda. Ele preencheu lacunas deixadas pelo tratado de janeiro, ao estabelecer regras sobre quais declarações de exportação serão necessárias – medicamentos, alimentos, animais e plantas. 

O acordo não inclui regras para os serviços financeiros, que têm enorme importância para o Reino Unido, por causa da City londrina. Ficou acertado que o acesso das empresas aos mercados financeiros de ambos os lados será decidido unilateralmente pelo governo britânico e pela Comissão Europeia, caso a caso. Será negociado um memorando de entendimento em separado.

A partir de 1.º de janeiro, quando o acordo entra em vigor, os britânicos perdem o direito à livre circulação na União Europeia. Os europeus não têm mais sua  entrada assegurada no Reino Unido – uma das principais motivações da aprovação do Brexit no plebiscito de junho de 2016. Os britânicos passam a depender de programa de isenção de vistos da UE e das leis de cada país para permissão de trabalho. 

A pandemia obrigou a UE a aprofundar sua coordenação econômica, com um pacote de ajuda de € 750 bilhões financiado por endividamento conjunto, e sanitária, com restrições de circulação e um plano conjunto para a aquisição de vacinas.

Assim como as pessoas, as instituições também se fortalecem na adversidade – se estiverem preparadas para responder com maturidade aos desafios. 

* É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS


Gustavo Franco: O fim do ano, fim da picada

A visita-comício na Ceagesp marcou o rompimento público do projeto liberal de Bolsonaro

Foi o mais longo dos anos recentes, a despeito de ter iniciado tarde, apenas em 11 de março, quando a OMS declarou que o surto de covid-19 era uma pandemia, e terminado cedo, em 15 de dezembro, com o comício da Ceagesp.

Sim, o ano terminou em 15 de dezembro, com a histórica visita do presidente ao “mercadão” de São Paulo, a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, Ceagesp S/A, empresa pública federalizada em 1997, para pagar dívidas do Estado, que tentou privatizar a companhia em 1996, mas não houve um lance no preço mínimo de R$ 65 milhões.

A visita-comício na Ceagesp serviu como um marco para assinalar o rompimento público entre o projeto político de Jair Bolsonaro com a sua própria política econômica declaradamente de livre mercado, uma junção tensa, às vezes descrita como um “casamento arranjado”.

A Ceagesp foi incluída na privatização pelo decreto presidencial n.º 10.045 de 4/10/19, do próprio Bolsonaro, e foi retirada nesse comício, sem decreto, no peito e na raça.

O rompimento do presidente com o liberalismo já vinha se desenhando há tempos, mas a crise final que explode neste momento teve seus detalhes conhecidos só após de reunidos e consolidados diversos relatos preciosos e picantes de testemunhas que atinaram para a transcendência do momento.

Tudo começou de forma um tanto mágica, e inesperada, quando o presidente, logo ao chegar ao palanque viveu um “momento Philip Roth”, como confirmam várias testemunhas:

– Vocês viram meu projeto econômico liberal por aí? Acho que deixei cair... Não consigo encontrar, é uma coisa pequena, vocês sabem, pode estar em qualquer parte, as reformas liberais, estavam todas no mesmo chaveiro...

Um dos muitos alter egos de Philip Roth é um ator que perde sua mágica (Simon Axler, de “A humilhação”), assim, de uma hora para a outra, e se torna um canastrão e uma caricatura de si mesmo: “tudo que funcionara para fazer dele quem ele era se tornara agora o que o fazia parecer um louco”. 

– É uma coisinha pequena, mas importante para mim, deve estar jogada pelo chão, vamos procurar, por favor.

Os assessores à sua volta não entendiam, como assim, presidente, perdeu o que, mesmo, será que alguém pegou? E então, o presidente se virou na direção do presidente da Caixa, que se acotovelava entre os circundantes, suado como todos, buscando visibilidade nas fotos, e perguntou diretamente:

– Você viu meu projeto econômico, Pedro...?

Não lembrava do nome completo. Sabia das iniciais, P.G., iguais às do ministro, e das piadas sobre o PG2, mais novinho, ainda mais irrequieto, mas o nome era outro, também com “G”.

Pedro G. percebeu, e todos em volta, mas enquanto vários já sussurravam “Guimarães”, “Guimarães”, Pedro G. cochichou bem alto no ouvido que o presidente lhe estendera:

– Vamos abrir uma agência da Caixa aqui.

O presidente vira-se para o público, microfone em riste, e troveja:

– O nosso Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal vai abrir uma agência aqui, amanhã mesmo.

E a multidão reage com um bafejo de aplausos, como uma fera amorosa rugindo em busca mais carinho. O presidente volta a perguntar de seu projeto, mas foi Pedro G. quem tomou a iniciativa, balançando a cabeça decidido, está perdido mesmo, presidente, vamos em frente, a fila anda, e o presidente olhou desconfiado, virou-se para a multidão e soltou o verbo:

– Quanto à privatização, quero deixar bem claro que enquanto eu for o presidente da República, essa é a casa de vocês. Nenhum rato vai sucatear isso aqui para privatizar para os seus amigos.

Uma das testemunhas, conhecedora de Roth, lembrou de uma fala do escritor: a ficção existe para eviscerar a realidade. Outra comentou, em resposta, é mas no Brasil a realidade possui tripas que a ficção desconhece.

E foi assim que terminou “fase liberal” do governo, sepultada simbolicamente na Ceagesp que, aliás, tenha-se claro, não é mais que uma metáfora – com seus 600 funcionários, faturamento de R$ 117 milhões (2019) e prejuízos de mais de R$ 50 milhões acumulados entre 2016 e 2019 – perto dos R$ 7,6 bilhões que o Tesouro colocou em 2019 em aumento de capital da Emgepron, uma estatal que constrói fragatas para a Marinha.

*EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS 


O Estado de S. Paulo: Pesquisa que ficou renegada por anos deu base para a vacina mais eficaz contra coronavírus

Estudiosa do chamado RNA mensageiro, plataforma utilizada nas vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna, Katalin Karikó passou a maior parte da sua carreira recebendo recusas de financiamento para os seus projetos

Fabiana Cambricoli e Victor Vieira, O Estado de S.Paulo

A tecnologia que propiciou o desenvolvimento de vacinas altamente eficazes contra a covid-19 em tempo recorde é novidade para a maioria de nós, leigos, mas já faz parte da vida da bioquímica húngara Katalin Karikó há décadas. A cientista que hoje é aclamada internacionalmente como uma das pesquisadoras que pavimentaram o caminho para os imunizantes contra o coronavírus foi, por anos, alvo de descrédito daqueles que achavam que a técnica pesquisada por ela não tinha futuro. 

Estudiosa do chamado RNA mensageiro (mRNA), plataforma utilizada nas vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna, Katalin, hoje com 65 anos, passou a maior parte da sua carreira recebendo recusas de financiamento para os seus projetos.

O mRNA é um material genético sintetizado em laboratório que tem a função de “levar instruções” para as células agirem. No caso da vacina contra a covid-19, ele induz as células a produzirem uma proteína do vírus que será reconhecida pelo sistema imunológico como uma ameaça, o que levará à produção de anticorpos.

A descoberta do mRNA, na década de 60, foi recebida com entusiasmo pela comunidade científica, mas sua possível aplicação em pesquisas com humanos foi perdendo força por dois problemas: sua instabilidade e toxicidade, como explica Luís Carlos de Souza Ferreira, responsável pelo laboratório de desenvolvimento de vacinas do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. “É um material que se degrada muito fácil e é muito reativo, gera uma reação inflamatória exagerada. Naquela época, você aplicava em animais e eles morriam, então era arriscado testar em humanos”, explica o pesquisador.

Apesar dos desafios no uso da tecnologia, Katalin decidiu migrar da Hungria para os Estados Unidos em 1985 na esperança de encontrar um ambiente científico mais propício a seus estudos inovadores. A descrença, no entanto, se repetiu. Sem recursos para suas pesquisas, ela foi ameaçada de deportação por desentendimentos com um dos seus chefes, na Universidade Temple, na Filadélfia.

Em seguida, foi trabalhar na Universidade da Pensilvânia, mas sua insistência em um tema de pesquisa considerado fracassado fez com que ela fosse rebaixada de cargo em 1995.

“Geralmente, nesse ponto, as pessoas simplesmente dizem tchau e vão embora, porque é muito horrível”, disse ela ao site Stat News. “Eu ganhava menos que o técnico do laboratório”, contou Katalin, que na época já era pós-doutora.

Mas a cientista não desistiu. Estava empenhada em descobrir uma forma de driblar os problemas de instabilidade e toxicidade do RNA mensageiro e tornar seu uso viável em humanos.

Nos anos 2000, conseguiu se associar a Drew Weissman, um renomado imunologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia. Juntos, eles descobriram qual nucleotídeo (conjunto de moléculas do RNA) provocava a reação inflamatória exagerada e o substituíram por uma molécula sintética sem o mesmo potencial tóxico.

Nos testes em animais, não houve reação inflamatória significativa, o que indicava que eles finalmente haviam descoberto uma forma de usar todo o potencial do mRNA sem causar dano. A instabilidade do RNA foi solucionada com o encapsulamento do material em uma camada de lipídios (células de gordura).

Os achados foram publicados em revistas científicas a partir de 2005, mas demorou até que outros pesquisadores dessem a devida atenção ao tema.

Nova fase

Somente a partir de 2010, duas biotechs fundadas por acadêmicos, uma na Alemanha e outra nos EUA, decidiram apostar na ideia. Seus nomes? BioNTech e Moderna, justamente as primeiras empresas a apresentarem resultados extraordinários de eficácia de uma vacina contra a covid-19 (95% e 94%, respectivamente).

Em 2013, Katalin, perto dos 60 anos, foi convidada a trabalhar na BioNTech, que testava a tecnologia de RNA em tratamentos contra o câncer.

Com a chegada da pandemia, a húngara, já no cargo de vice-presidente da empresa, participou do desenvolvimento da vacina feita em parceria com a Pfizer. Não havia nenhum imunizante registrado no mundo usando a tecnologia do RNA.Pensei em fazer outra coisa. Também pensei que talvez não fosse boa ou inteligente o suficiente.

Redenção

Os resultados de eficácia acima de 90%, anunciados em novembro, surpreenderam até mesmo cientistas envolvidos no projeto. “Foi uma surpresa para todo mundo. A gente esperava uma vacina de 60% a 70% de eficácia, o que já é um índice excelente, mas ter mais de 90% foi muito gratificante e que, até anos atrás, seria impossíveis se não fossem esses estudos de biologia molecular”, comenta Cristiano Zerbini, diretor do Centro Paulista de Investigação Clínica e pesquisador principal do estudo da vacina da Pfizer/BioNTech em SP.

Para Jorge Kalil, professor titular da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor), a história das vacinas de RNA demonstram a importância do investimento em ciência básica.

“As pesquisas de Katalin e de outros colegas, que avançaram no conhecimento do RNA mensageiro, foram fundamentais para que conseguíssemos chegar tão rápido a uma vacina eficaz. É comum que temas disruptivos gerem desconfiança da comunidade científica porque vão contra os conhecimentos que existem na época. Como aconteceu com ela, acontece com muitos cientistas. É preciso ser perseverante”, diz.

Próximos passos

Mesmo após participar da descoberta que pode ser uma das mais importantes do século, Katalin segue na missão de ampliar o uso da tecnologia. “Estou esperançosa de que, agora, que há tanto interesse e entusiasmo por esta pesquisa, será possível desenvolver e testar esta tecnologia para prevenção e tratamento de outras doenças”, declarou ao site da Universidade da Pensilvânia. Ela disse ainda que só conseguirá comemorar a conquista quando a pandemia for controlada. “Vou celebrar de verdade quando todo esse sofrimento humano e esses tempos terríveis acabarem”, disse.

Ao menos uma luz no fim do túnel já começa a aparecer. Em menos de um mês, 3,2 milhões de pessoas no mundo já foram imunizadas com a vacina da Pfizer/BioNTech. No último dia 18, a própria Katalin entrou para esse grupo. Ao lado de Weissman, seu parceiro de pesquisa, ela recebeu a vacina que ajudou a criar. “Estou feliz e honrada. Sou mais uma cientista básica, mas sempre quis fazer algo para ajudar os pacientes.”

Depois de tanta espera, Katalin finalmente conseguiu.

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Elio Gaspari: Cacaso previu a ‘nova política’

Dois anos depois da eleição de Wilson Witzel para o governo do Estado do Rio e passados quatro da vitória de Marcelo Crivella para a prefeitura da cidade, a “nova política” mostrou seu verdadeiro rosto

Dois anos depois da eleição de Wilson Witzel para o governo do Estado do Rio e passados quatro da vitória de Marcelo Crivella para a prefeitura da cidade, a “nova política” mostrou seu verdadeiro rosto. Como dizia o poeta Cacaso (1944-1987):

Ficou moderno o Brasil,

Ficou moderno o milagre

A água já não vira vinho,

Vira direto vinagre.

Witzel e Crivella teriam sido algo novo. Um perdeu o mandato e batalha pela liberdade. O outro está preso em casa. A água que viraria vinho nem vinagre virou, tornou-se apenas uma lama velha.

Witzel prometia tiros nas “cabecinhas”e Crivella oferecia lances místicos enquanto aninhava milicianos na prefeitura. Foram novos na empulhação. Ocupando os cargos, nem na roubalheira inovaram. Basta ver a onipresença do “Rei Arthur”, nas maracutaias da “nova política”. Ele era o donatário das comissões para fornecedores durante o mandarinato do “gestor” Sérgio Cabral.

Como disse o grande Príncipe de Salinas no romance “O Leopardo”, tudo isso não deveria poder durar, mas vai durar.

Cabral roubava criando ilusões modernistas, como o teleférico do Morro do Alemão, que continua parado. Witzel, que fez campanha na Baixada Fluminense amparado na lógica política dos bicheiros, atolou-se com velhas quadrilhas. Um era o falso moderno, o outro, o verdeiro atraso. Crivella recorreu a milicianos, coisa que Cabral nunca fez ostensivamente.

O único ingrediente de originalidade municipal, estadual e federal da “nova política” é a demofobia explícita. Ela demoniza a pobreza, nega a pandemia e vive em contubérnio com as milícias. O resultado disso está na sala dos brasileiros: vacinas contra a Covid, só no noticiário internacional.

Água vira vinagre quando se sabe que há mais de cem anos D. Pedro II fez questão de cumprir o isolamento social durante uma passagem por Portugal, e hoje o general-ministro da Saúde diz a parlamentares que não devem falar nisso.

Na madrugada de 17 de novembro de 1889, quando o imperador foi posto em um navio e desterrado para a Europa, ele disse: “Os senhores são uns doidos”.

Parecia que o doido era ele.

Ibaneis com Picciani

Ibaneis Rocha, governador de Brasília e empresário bem-sucedido, com um patrimônio declarado de R$ 94 milhões é também um destemido.

Em agosto ele arrendou a fazenda Monteverde, em Uberaba (MG), de propriedade do notável Jorge Picciani. O simples fato de fazer negócio com o ex-presidente da Assembleia do Rio indicaria um empresário audacioso. Como Picciani foi condenado a 21 anos de prisão e rala sua pena em prisão domiciliar, fazer negócio nesse mundo é coisa de gente muito corajosa. Ibaneis e Picciani pertencem ao mesmo partido, o MDB.

Os bens do poderoso Picciani estão bloqueados pela Justiça que lhe cobra R$ 91 milhões.

Onze em cada dez empresários correriam de um negócio desse tipo como o Tinhoso corre da cruz.

A Carta de Capistrano

A Fiocruz deu uma lição de Justiça aos ministros do Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça (o da Cidadania). Ambos pediram reservas de vacinas para seus doutores, funcionários e colaboradores. O STF queria sete mil doses só para ele e para a turma do Conselho Nacional de Justiça.

O pedido foi feito sem que os ministros dos dois tribunais fossem consultados. Promotores do Ministério Público de São Paulo haviam tentado o mesmo golpe há algumas semanas.

A centenária instituição de defesa da saúde pública nacional respondeu aos doutores informando que não lhe cabe “atender a qualquer demanda específica por vacinas”.

Foram educados. O historiador Capistrano de Abreu, num lance indelicado e agressivo, defendeu uma revisão constitucional, pela qual a Carta teria apenas dois artigos:

Artigo 1º - Todo brasileiro deve ter vergonha na cara.

Artigo 2º - Revogam-se as disposições em contrário.

Precisa-se de padrinho

Quatro instituições de medicina privada, entre as quais duas guildas e duas operadoras, estão pedindo ao governador de São Paulo, João Doria, que lhes dê um mimo tributário, restabelecendo a isenção de ICMS que as beneficiava.

Durante a pandemia, São Paulo perdeu cerca de 10% da arrecadação desse imposto, noves fora 45 mil mortos. Já as operadoras de planos de saúde tentaram enfiar um aumento selvagem na clientela e recusaram-se a pagar pelos testes do coronavírus.

Entre janeiro e setembro deste ano uma só operadora lucrou US$ 13,2 bilhões, 30% acima do que conseguiu no mesmo período do ano anterior.

Os doutores fazem um apelo a Doria em nome da “vida”. A vida deles, em busca de um padrinho.

Casa de doidos

Para quem acha que o Palácio do Planalto é uma usina de crises, os aloprados que assessoram o presidente Donald Trump mostraram que sua Casa Branca tornou-se uma insuperável casa de doidos. Por quase uma semana circulou por lá a ideia de usar a pandemia para colocar os Estados Unidos sob lei marcial. Seriam suspensas garantias individuais e a posse do presidente eleito Joe Biden.

Aloprados de palácio são assim mesmo. Propõem maluquices, sabendo que quem corre o risco de sair do prédio numa camisa de força é o titular. Eles se garantem com palestras ou consultorias.

Alcolumbre tonto

O senador Davi Alcolumbre convenceu-se de que seu inferno astral foi produzido pelos acertos que supunha ter feito no Supremo Tribunal Federal. É exagero.

Se Macapá ficou sem energia e seu irmão perdeu a prefeitura, o Supremo nada teve a ver com isso.

No fundo, ele esperava que o Tribunal declarasse inconstitucional um dispositivo da Constituição. Na forma, Alcolumbre e seus aliados tinham feito as contas. No conteúdo, a dose era cavalar e a receita desandou.

Na mosca

Não importa o motivo que levou os ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes a anunciar que continuarão trabalhando durante o recesso que vai até 6 de janeiro. Eles miraram no que viam e acertaram o que não viram.

Com as sessões virtuais, esse recesso é um mimo anacrônico.

A crônica dos litígios que aguardavam o recesso para cair no colo generoso do presidente-plantonista registra incríveis acrobacias às quais os quatro mosqueteiros podem ter dado um fim.

Salto alto

As administrações do governador João Doria e do prefeito de São Paulo, Bruno Covas, subiram em saltos altos.

Há algumas semanas um dos hierarcas de Doria disse numa entrevista que se a CoronaVac tivesse 50% de eficácia, estaria tudo bem. Quem entende do assunto sentiu cheiro de queimado. Passaram-se os dias e o grau de eficácia dessa vacina está no tabuleiro. Jogo jogado, pois tudo poderia estar sendo feito com a melhor das intenções.

Eis que nisso o governador quis tirar férias em Miami. Já o prefeito Bruno Covas, aumentou seu próprio salário e tungou a gratuidade no transporte público para idosos (nesse lance, em parceria com Doria).

Tucano quando sobe em salto alto é incapaz de descer dele até na hora do banho.


Bernardo Mello Franco: O poeta e o golpe - Drummond em 1964

Em 1º de abril de 1964, Carlos Drummond de Andrade saiu de casa para conferir a agitação no Forte de Copacabana. Ele caminhou até a praia com o amigo Carlos Heitor Cony. Os dois queriam ver com os próprios olhos se o golpe estava mesmo na rua. “Há poucas dúvidas sobre a derrota de Jango”, constatou o poeta, que havia passado a madrugada colado a um rádio transistor.

Em seu diário, Drummond registrou a festa da classe média com a derrubada do presidente que prometia reforma agrária. Ele não comemorou o golpe, mas também não parecia contrariado:

“Eu voltava para casa quando se ouviram estampidos, houve um corre-corre, e eis que da janela dos edifícios gente sacode lenços, panos de prato, até lençóis, enquanto outra chuva, esta de papel picado, cai sobre o asfalto. O rádio espalhara a notícia, transmitida por Lacerda: Jango deu o fora. Volto à praia. Gente cantando o hino nacional, xingando Brizola em slogan improvisado. Sensação geral de alívio”.

Doze dias depois, o poeta começava a entender que o país estava mergulhando em uma nova ditadura. “Baixado o Ato Institucional, que atenta rudemente contra o sistema democrático. O Congresso, já tão inexpressivo, passa a ser uma pobre coisa tutelada. Vamos ver o que será das liberdades públicas”, escreveu.

Em junho, Drummond seria convocado a depor em inquérito administrativo da rádio MEC, ocupada pelos golpistas que se diziam “revolucionários”. Queriam que testemunhasse contra a ex-diretora, acusada de “atividades subversivas”. “Os inquéritos desse tipo traduzem mais o espírito de vingança do que o de justiça”, anotou.

Um mês antes, o poeta assistiu à prisão arbitrária de um livreiro na Rua do Ouvidor. Ele relatou o episódio com indignação: “Incrível. Prisão de Carlos Ribeiro, o ‘bom mercador de livros’, amigo de todos, sob suspeita de quê? De tramar a derrubada do marechal Castelo Branco?”.

Nos primeiros anos da ditadura, Drummond reduziu as notas sobre política. Em dezembro de 1968, no dia seguinte ao AI-5, ele escreveu que se sentia de volta à infância, quando viu o marechal Hermes da Fonseca suspender as liberdades civis.

“Quase sessenta anos depois, o governo de outro marechal (e na minha velhice) golpeia a Constituição que ele mesmo mandou fazer e suprime, por um ‘ato institucional’, todos os direitos e garantias individuais e sociais. Recomeçam as prisões, a suspensão de jornais, a censura à imprensa. Assisto com tristeza à repetição do fenômeno político crônico da vida pública brasileira”, anotou, antes de fazer um desabafo: “Renuncio à esperança de ver o meu país funcionando sob um regime de legalidade e tolerância. Feliz Natal...”.

Três dias depois, ele registrou a perseguição ao jovem compositor Chico Buarque, detido pela polícia política e “submetido a interrogatório grosseiro”. “Não há clima para festa”, resumiu.

“O observador no escritório” é um testemunho histórico, mas alguns de seus trechos ainda soam bem atuais. “Que país! Que tristeza!”, escreveu o poeta, em setembro de 1969.

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Hora de sair de férias. Feliz Ano Novo e até a volta.


Janio de Freitas: 'Feliz Ano-Novo', que perigo

Há um esboço de novidades saudáveis, esse gênero que passou de escasso a extinto

Na passagem do mal vivido para o vamos ver, o Brasil recomenda aos seus filhos muito bom senso ao desejar feliz Ano-Novo. Seja qual for sua sinceridade, convém que esses votos sejam certeiros na destinação. Não só para evitar desperdício. Os votos tradicionais, extensivos e indiscriminados, estão perigosos. Podem ser até suicidas.

Não, nada a ver com a Covid-19. Mais um ano feliz para os 37% que aprovam o governo resultaria da permanência de toda a alucinação e destrutividade, desprezo pela vida das pessoas e pelo futuro do país, predominantes nestes dois anos. Seria a continuidade de um ano que 63% dos brasileiros sentiram entre reprovável e sufocante. Sim, resgatar o Brasil e retomar o passo da democracia depende de que os felizes com os dois anos passados sejam os infelizes do próximo ano. E o sejam tanto e tão cedo quanto possível.

Nesse sentido, há um esboço de novidades saudáveis, esse gênero que passou de escasso a extinto. Uma delas é a incipiente aliança de MDB, DEM, PDT, Cidadania e PT com o objetivo de fazer o futuro presidente da Câmara.

Um feito devido, sobretudo, à hábil confiança conquistada por Rodrigo Maia e a uma reconsideração experimental do PT em vista das circunstâncias.

Há reações no petismo. O candidato próprio é uma ideia com longo predomínio no partido. No caso atual, como em tantas ocasiões, candidato à derrota, apenas para marcar posição e mobilizar em torno da militância. Nessa altura, não chegaria a uma coisa nem outra. Agora se trata de defender a democracia, por mais exígua que viesse sendo.Eduardo Cunha proporcionou uma exibição completa, como nunca se vira, do que é possível fazer com o domínio da presidência da Câmara: vai da mais variada corrupção ao golpe de Estado parlamentar.E nem o mínimo de lucidez permite duvidar do que a tropa do governo fará se conquistar também esse poder.

A novidade não pretende ser uma frente, com projeto comum mais longo. É uma aliança tática, portanto efêmera, para finalidade delimitada —o que a faz viável.

Outra novidade induzida pelas circunstâncias é a decisão de quatro ministros do Supremo de trabalhar durante suas férias de verão. A atitude de Lewandowski, Marco Aurélio, Moraes e Gilmar está interpretada, sem confirmação, à defesa da criação de juízes das garantias. Sozinho, Fux ficaria com a palavra decisiva sobre essa inovação importante, contra a qual já se manifestou.

Se isso moveu os quatro, não foi só isso. Cármen Lúcia não abandonará o processo que questiona a política antiambiental. E os processos criminais que assustam os Bolsonaros seguem, no STF, sem manobras salvadoras.

É pouco, por certo, diante das circunstâncias. Mas, em um país que passou dois anos sem ver nem sequer uma instituição, ou seus integrantes, mover-se contra o assalto à Constituição, à democracia e aos bens e interesses maiores do país, chega a parecer verdadeira a tão repetida sentença: “As instituições estão funcionando”.


Arminio Fraga: Desafios para 2021 e depois

No momento, sobra incerteza e falta confiança; deficiências são tantas que há amplo espaço para melhorias

2020 foi o ano da trágica Covid-19. Foi também um ano de grandes respostas: uma extraordinária conquista da ciência no campo das vacinas e uma expansão fiscal e monetária sem precedentes.

A despeito de uma queda do PIB global estimada em cerca de 5%, as bolsas e os preços das commodities se recuperaram do colapso de março, já tendo em muitos casos ultrapassado os níveis pré-Covid. Enxergam uma recuperação plena.

Enquanto isso... Por aqui, além da tragédia humana, o ano foi de trevas, de um ubíquo obscurantismo, que se manifestou e segue se manifestando em áreas cruciais, como saúde e meio ambiente. Vejo um país sem rumo, ou pior.

Não é possível ignorar a segunda onda de infecções e mortes. Atrasos e lacunas na vacinação agravarão o quadro. Faz falta uma campanha nacional de saúde, ao invés de uma anticampanha. A pressão sobre os delapidados cofres públicos aumentará. A onda de otimismo global nos dá algum fôlego e pode até se manter, mas o quadro aqui inspira cuidados.

Sim, a economia vem se recuperando, mas em bases não sustentáveis. Parece-me crucial não perder de vista os caminhos para que o Brasil saia da recessão e se desenvolva plenamente. Nossos maiores desafios econômicos podem ser organizados em três grandes áreas: macroeconomia, produtividade e desigualdade.

Começo pelo macro. Há claros sinais de que a fragilidade fiscal que levou a dívida pública a saltar de 50% para 92% do PIB em seis anos não será superada tão cedo, se é que será. As propostas de ajuste fiscal e reformas estruturais de curto e longo prazo estão paradas por falta de apoio político do próprio governo. Falo da PEC emergencial e das reformas do Estado e tributária. O investimento público caiu de um pico de 5% do PIB para perto de 1%. Os gastos em todas as esferas de governo com Previdência e funcionalismo seguem muito elevados, um obstáculo às três agendas.

Nas economias avançadas, os governos vêm se endividando a taxas de juros negativas em termos reais, inclusive para empréstimos de prazo mais longo. Mantidas essas taxas, o que parece provável por um tempo, será possível carregar uma dívida maior do que no passado, desde que se possa rolar o valor devido.

No entanto, o endividamento não deve ser regra. Pode e deve ocorrer em momentos difíceis, para diluir no tempo os custos sociais e humanitários. Mas mesmo quem tem mais espaço para se endividar não deve exagerar na dose, pois as condições de mercado podem piorar, até mesmo em função de falta recorrente de disciplina fiscal. Endividamento de longo prazo pode inclusive financiar investimento, desde que dentro de um planejamento orçamentário plurianual, confiável e sustentável.

No Brasil, as taxas de juros caíram bastante, sobretudo as de curto prazo, mas seguem elevadas para prazos mais longos, um alerta relevante. Não há orçamento, que dirá plurianual, confiável ou sustentável. Mesmo emitindo dívida em moeda local, o governo pode enfrentar dificuldades sérias, como foi o caso em 2002 e neste ano. Numa economia aberta como a nossa (e fechar não é uma opção), a fuga para uma moeda mais confiável é sempre um risco, especialmente com o juro aqui a 2%. Pensem bem: sem perspectiva de responsabilidade fiscal, quem é que vai querer ficar com o mico?

Ainda no macro, preocupa muito o desemprego. A taxa atual de 14% exclui um grande número de pessoas que pararam de procurar emprego. Quando o massivo auxílio emergencial secar e a busca de emprego voltar ao normal, o desemprego deve subir bastante e a desigualdade aumentar, para além do que era antes da crise. O cobertor está bem curto.

Uma segunda área carente de respostas é a baixa e estagnada produtividade do país como um todo, o pilar fundamental do crescimento. Há 40 anos o Brasil não consegue encurtar a distância que separa o nosso padrão de vida daquele dos países mais avançados. Estamos carentes em um sem-número de dimensões. Falta eliminar obstáculos e distorções para que se possa investir mais e melhor. Falta qualidade e estabilidade às regras do jogo econômico. Falta mais integração com o mundo. Falta um Estado mais eficiente. Falta simplificar o sistema tributário. Falta muito.

Finalmente, e não menos importante, temos que encarar o desafio de reduzir as nossas imensas desigualdades. Além do necessário reforço e aperfeiçoamento da rede de proteção social ora em discussão, urge um esforço intenso e sustentado de criação de oportunidades e aumento da mobilidade social para uma maioria que hoje não tem a menor chance. Tal esforço representa o melhor investimento à nossa disposição. Falta melhorar (e muito) a educação, a saúde e outros serviços públicos. Além de justo, reforçaria o projeto de crescimento.

A agenda é extensa. As três grandes frentes econômicas são complementares, para o bem e para o mal. No momento, sobra incerteza e falta confiança. Aqui me permito um pingo de otimismo. As deficiências são tantas que há um amplo espaço para melhorias. Um (outro) governo com visão e capacidade de execução poderia acelerar bastante o crescimento. Na saída de uma recessão como a atual, eu ficaria muito surpreso se não superasse 4% ao ano por um bom tempo.


Vinicius Torres Freire: Na guerra da vacina, Doria injetou veneno de descrédito na testa

Governador exagerou no show e ameaça programa de imunização

Ao fim da guerra da vacina, João Doria poderia parecer um líder mais nacional e um contraponto da razão a Jair Bolsonaro. O governador paulista decerto fez o bom serviço de cutucar a inoperância federal. Mas, depois dos vexames recentes, Doria pode parecer apenas um destrambelhado provinciano. Pior, lançou desconfiança sobre a própria vacina que comprou, grave em termos sanitários e econômicos.

Por duas vezes, o governo de São Paulo adiou a publicação da eficácia da Coronavac. Na quarta-feira (23), o país foi induzido a esperar boas notícias. Em vez disso, ouviu uma conversa palerma de que os dados precisariam ser antes mastigados pela Sinovac, por uma obrigação contratual, e de que a eficácia da vacina era diferente daquela verificada em outros países, no limite de apenas 50%.

Descobriu-se que Doria estava em Miami, o que pareceu fuga do fiasco. Para piorar, soube-se na sexta (25) que a Turquia não teria “obrigação contratual”, pois divulgou, de modo mambembe, que a Coronavac seria eficaz em 91,25% dos casos.

O governo Doria suscitou desconfiança sobre os números que virão sobre a vacina, já objeto de propaganda negativa criminosa de Bolsonaro.

Quanto menos confiança, menos gente tende a aderir ao programa de vacinação. Quanto menos vacinados, menor a possibilidade de a vacina evitar mortes, aliviar hospitais e atenuar as restrições obrigatórias ou autoimpostas de contato social, o que tem óbvio impacto econômico também.

Mesmo com uma vacina eficaz em 85% dos casos, a campanha contra a Covid teria de atingir adesão do nível de vacinações contra a gripe (uns 95%) para propiciar um alívio notável apenas a partir lá de maio. A vida, porém, ainda teria restrições sérias, em especial para negócios e empregos que dependem de aglomerações e circulação livre pelas cidades.

Na reunião dos governadores com o capacho do ministério da Saúde, dia 8, Doria já trocara as mãos pelos pés. Em vez de vencedor generoso e agregador, pareceu um “mauricinho metido e exibido”, como disse a este jornalista um governador ainda simpático ao colega paulista. Depois, houve duas negaças dos resultados da vacina. Doria blefava, com confiança temerária?

No mundo político, ficou a impressão de que Doria não sabia bem o que estava fazendo, o que sublinhou sua imagem de pouco confiável, um tipo obstinado que faz qualquer negócio, de atropelar aliados a apoiar Bolsonaro em um dia para sair de fininho pouco depois.

O governo paulista poderia simplesmente apresentar a situação tal como ela é, dando publicidade e explicações racionais para a atos e processos, o que seria um contraponto confiável ao desvario bolsonarista. Tem gente para fazê-lo. Doria nomeia muitos bons quadros para seus governos.

Não se trata de ser “transparente”. Apenas na fantasia juvenil ou anarquista um governo pode ser um BBB ao vivo. É política, administrativa e tecnicamente inviável. Mas, claro, em qualquer tempo e lugar, gente com poder sonega informação do público, o que é autoritário.

A fim de recuperar terreno, Doria terá de abafar seu caráter espetaculoso, parar com segredinhos, com vazamentos de notinhas publicitárias e mostrar que pode ser alternativa de racionalidade mínima à pura monstruosidade bolsonarista. Já tem um passivo grande, até pelo Bolsodoria de 2018, relembrado nestes dias de vexame.

Terá de contar com sorte também, que a vacina seja eficaz em nível relevante, uns 75% ao menos, e fazer a mais bem-sucedida campanha de vacinação da história.


Hélio Schwartsman: A matéria-prima da tragédia

A oposição entre a lei impessoal e obrigações morais particularistas não é novidade

Você e seu melhor amigo estão no carro. Ele dirige. De repente, ele atropela um pedestre. Estava a uma velocidade acima da permitida. Não há câmeras nem testemunhas, além de você. O advogado de seu amigo diz que, se você testemunhar, assegurando que ele trafegava abaixo do limite de velocidade, vai poupá-lo de sérios problemas.

O que você pensa disso:

a) Que seu amigo tem todo o direito de esperar que você testemunhe em seu favor, e você deve mesmo honrar os deveres da amizade.

b) Que seu amigo deveria ter pouca ou nenhuma expectativa de que você testemunhe, e você não deve mentir em juízo.

Como ensina Joseph Henrich, esse é um dos testes usados para diferenciar países “weird” (acrônimo em inglês para ocidental, educado, industrializado, rico e democrático) dos demais.

Em nações como EUA, Canadá e Suíça, mais de 90% dos empresários e gerentes submetidos ao teste responderam “b”; já em países como Nepal, Venezuela e Coreia do Sul, a maioria optou por “a”. O Brasil fica no meio do caminho.

Embora seja tentador ver a resposta “a” como antiética, parece mais acertado afirmar que ela se pauta por uma ética diferente.

Populações “weird” tendem a valorizar abordagens universalistas, nas quais a aplicação das regras deve ocorrer de forma abstrata e impessoal. Já as não “weird” costumam ser mais particularistas, isto é, dão mais peso à ideia de que o tipo de relacionamento que você tem com uma pessoa é que determina seus deveres em relação a ela. Mesmo o mundo “weird” não abandona totalmente esse princípio: você tem o dever de manter e educar os seus filhos, não os filhos dos outros.

Embora tenhamos assistido, nos últimos séculos, à ascensão do Ocidente e sua ideologia “weird”, a oposição entre a lei impessoal e obrigações morais particularistas não é novidade. Os gregos a compreenderam bem e a transformaram na matéria-prima das tragédias.