Day: dezembro 26, 2020

Evandro Milet: Livros, uma vacina contra a ignorância

Steve Jobs vivia e respirava música. Era um fã incondicional de Bob Dylan e dos Beatles e já tinha namorado Joan Baez, cantora famosa na época. Seu interesse pessoal guiou as estratégias da Apple em música, basta lembrar do iPod e iTunes. O interesse pessoal de Jeff Bezos também teve forte influência na Amazon. Bezos não apenas amava livros; ele mergulhava neles, processando cada detalhe metodicamente.

No apêndice do livro A loja de tudo”, que conta a história da Amazon, há a lista de leitura de Jeff incluindo, entre outros, “O dilema da inovação” de Clayton Christensen, “A lógica do cisne negro” de Nassim Taleb, “Empresas feitas para vencer” e “Empresas feitas para durar”, ambos de Jim Collins, que se tornou grande consultor da empresa. Aliás também consultor fundamental da equipe de Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles em seus sonhos grandes na Ambev.

Bill Gates, criador da Microsoft, é outro leitor compulsivo. A imprensa costuma publicar sua lista de recomendação de livros, mais ampla inclusive que apenas obras de gestão e tecnologia.

O livro de Daniel Bergamasco “Da ideia ao bilhão”, conta a história dos unicórnios(startups que atingem valor de mercado de um bilhão de dólares) brasileiros. Em duas das histórias os livros também desempenham papel fundamental nos processos de gestão, incentivados pelos fundadores. Na fintech Stone a seleção de empregos é feita com uma lista de livros com sete títulos à escolha dos candidatos. Em um dos processos constavam o já citado “Feitas para vencer” e “Por que fazemos o que fazemos” de Mário Sérgio Cortella. Até alguns anos atrás só havia uma obra, “Paixão por vencer” , do icônico Jack Welch, ex-CEO da GE.

O objetivo é ler, entender, interpretar e estabelecer conexões entre os conceitos apresentados e as próprias crenças. “Estudar é uma forma de esticar as pessoas” dizem na Stone. Num livro os autores reúnem o aprendizado de uma vida em algumas páginas, diz André Street, fundador da Stone, que até hoje separa duas horas diárias para estudar. Como ele diz, começou lá pelos 12 anos de idade a encarar livros de auto-ajuda, como “Mais esperto que o diabo” de Napoleon Hill e “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, de Dale Carnegie.

Na unicórnio Arco Educação, o CEO Oto de Sá Cavalcante, um devorador de livros de diferentes estilos, premia as melhores resenhas sobre títulos indicados a cada ano, que vão de “Foco” de Daniel Goleman, a “O Príncipe” de Maquiavel. Os cinco melhores textos recebem cada um mil dólares. "Líderes também precisam ler”, dizia um folheto que anunciava o livro de 2020: “A marca da vitória”, autobiografia de Phil Knight, criador da Nike.
Além disso, as equipes da Arco participam semanalmente do “método da cumbuca”, disseminado por Vicente Falconi.

Um livro é proposto a um grupo de 4 a 6 pessoas. e a cada semana eles se encontram para falar sobre um capítulo que todos devem ter lido. Os nomes vão para a cumbuca e a pessoa sorteada deve resumir o capítulo. Se ele não tiver lido a reunião é cancelada, para constrangimento do sorteado. Aliás, a inspiração para o nome da empresa veio de uma passagem de um clássico: “As cidades invisíveis'', de Ítalo Calvino.

Atualmente há uma proliferação de clubes de leitura para empresários, como o que é organizado pela empresa de consultoria KPMG, por onde passaram o sempre presente “A lógica do cisne negro” e mais “Miopia Corporativa” de Richard S. Tedlow e “A Regra é Não ter Regras”, de Reed Hastings e Erin Meyer, com o modelo de gestão da Netflix.

Aqui também em Vitória, as organizações de jovens empreendedores Líderes do Amanhã e Ibef Academy usam a ideia de discutir livros entre os associados como forma de aprendizado em empreendedorismo, economia e gestão.

Que 2021 seja um ano sem pandemia, com muitos livros, ficção e não-ficção, clássicos ou atuais, best sellers ou não, técnicos e não-técnicos(menos o do torturador). As experiências mostram que os livros são importantes para o empreendedorismo, mas também representam o tratamento precoce amplo contra obscurantismos ou uma vacina contra a ignorância.


João Gabriel de Lima: Palavras que queremos ouvir em 2021

 ‘Moral money’, ‘ESG’, ‘impacto’, vocábulos, siglas e expressões que prometem irromper o ano

Uma boa forma de fazer a retrospectiva do ano é lembrar das palavras que se tornaram correntes em 2020. Algumas são novas, que incorporamos ao vocabulário. Outras são ressuscitadas de épocas passadas. Em 2020 tiramos do baú palavras tristes como “pandemia”, “isolamento”, “máscara” – e outra mais esperançosa, “vacina”. Há motivo para otimismo, no entanto, quando se olha para alguns dos vocábulos, siglas e expressões com os quais nos acostumamos ao longo de 2020: “moral money”, “ESG”, “impacto”. Com sorte, essas palavras boas serão muito usadas ao longo de 2021.

Na Inglaterra, a expressão “moral money” se popularizou como título de uma das seções do Financial Times, um dos mais importantes jornais de economia do mundo. No cabeçalho, o diário londrino explica que “moral money” trata de negócios socialmente responsáveis, finanças sustentáveis, investimentos de impacto e ESG (“environmental, social and corporate governance”) – sigla que, de certa forma, engloba tudo isso.

Tais palavras prometem irromper em 2021 cavalgando números impressionantes. US$ 45 trilhões estão aplicados atualmente em fundos que utilizam estratégias sustentáveis, segundo estimativa do banco Morgan Stanley. Isso significa metade dos investimentos mundiais no mercado financeiro. Há dois anos, data do último levantamento, eram US$ 31 trilhões – número, por sua vez, 34% maior que o de 2016.

Existe a possibilidade de que parte desses números seja “para inglês ver” – dinheiro aplicado em ações de empresas que se declaram sustentáveis sem cumprir os requisitos mínimos. Pois são justamente os britânicos, líderes tradicionais na área financeira, que irão pagar para ver. No Reino Unido, uma aliança entre o governo e o setor privado fará um mapeamento de tais fundos, com o objetivo de classificá-los. O líder da força-tarefa é o português Rodrigo Tavares, personagem do mini-podcast da semana. Professor de finanças sustentáveis na Nova School of Business and Economics, ele é um dos maiores especialistas mundiais no assunto.

Os trabalhos para a confecção deste ISO das finanças começam já em janeiro, e seguirão ao longo de 2021, ano em que o assunto “moral money” estará crescentemente em pauta. No Brasil, “moral money” será o tema recorrente dos cursos e seminários da Associação Brasileira de Jornalismo Empresarial, a Aberje – que importará a discussão que explode na Europa. Trata-se daquilo que os alemães chamam de “zeitgeist”, espírito do tempo.

Faz parte desse espírito a decisão de grandes empresas de varejo, como Nestlé, Walmart e Tesco, de não comprar mais grãos de produtores associados ao desmatamento do cerrado brasileiro. O fato, anunciado na semana passada, foi lembrado em análise feita pelo site Virtù, editado pelo cientista político Luiz Felipe D’Avila e referência na área de políticas públicas. O texto aponta uma queda das vendas do agronegócio brasileiro para o Velho Continente, pondera que os números brasileiros de desmatamento não permitem acusar os europeus de protecionismo, e atribui a catástrofe ao “Brasil arcaico que, infelizmente, possui representantes em Brasília”. 

“Desmatamento”, “queimadas”, “Brasil arcaico” – eis outras palavras tristemente recorrentes neste ano. Devemos deixá-las em 2020. O melhor que se pode desejar para 2021 é que, ao final do próximo ano, seja possível encher o espaço desta coluna apenas com palavras boas.


Cristina Serra: Que vergonha, excelências!

Ainda nem temos vacinas aprovadas e liberadas, e STF e STJ já estavam prontos para furar a fila da imunização

No Brasil, existem cidadãos comuns, como você, leitor, e eu. E existem castas, como o Judiciário, sustentadas com o dinheiro dos nossos impostos e adubadas com privilégios e mordomias que ofendem o simples bom senso. Ainda nem temos vacinas aprovadas e liberadas e suas excelências do STF e do STJ já estavam prontas para furar a fila da imunização. As duas mais altas cortes enviaram os pedidos à Fundação Oswaldo Cruz, que os rechaçou.

Num momento de emergência sanitária e com autoridades incompetentes no comando da saúde dos brasileiros, as maiores instâncias do Judiciário deveriam ser as primeiras a dar o bom exemplo e aguardar sua vez na escala de prioridades, a ser definida de acordo com critérios científicos e levando-se em conta a vulnerabilidade de grupos mais expostos ao vírus. Mas as cúpulas do Judiciário preferiram se orientar pelo adágio mesquinho: farinha pouca, meu pirão primeiro. O que me lembra também o salve-se quem puder da primeira classe no convés do Titanic.

O STF pediu uma reserva de 7.000 doses para ministros e servidores do tribunal e do Conselho Nacional de Justiça. O STJ disse que enviou um “protocolo comercial”, que se refere à “intenção de compra” das doses para imunizar magistrados, servidores e seus dependentes. Sim, você leu direito. O STJ alegou que pretendia comprar as vacinas que, até onde se sabe, serão distribuídas gratuitamente pelo Plano Nacional de Imunização (vai saber quando). Seria um auxílio-vacina?

Não fosse a revelação pela imprensa e a negativa contundente da Fiocruz, talvez outras categorias já estivessem a reivindicar tratamento “isonômico”. A mentalidade da aristocracia do setor público brasileiro opera uma rota de colisão com qualquer projeto de sociedade menos desigual e mais justa. Regalias de toda sorte para uma elite “diferenciada” transformam em uma quimera o ideal de cidadania já alcançado por outros países. Data vênia, excelências, que vergonha!


Hélio Schwartsman: As sementes do abuso

Desde que existem sistemas de Justiça, sabe-se que eles podem falhar

Desde que existem sistemas de Justiça, sabe-se que eles podem falhar. Não estamos falando apenas de erros materiais, que são em tese sanáveis por revisões feitas no âmbito do próprio Judiciário. O problema é mais sério. Muitas vezes, a aplicação fria da letra da lei é que causa a situação de injustiça —falha endógena que o sistema não consegue resolver bem.

Um dos remédios criados para lidar com isso é o poder de graça, pelo qual um corpo externo ao Judiciário, em geral o chefe do Executivo, é autorizado a reverter condenações impostas por magistrados. O instituto existe desde a Antiguidade e está presente hoje nas legislações de quase todos os países, ainda que seu alcance e os trâmites para implementá-lo variem bastante.
Todo princípio, porém, já traz as sementes de seu próprio abuso. Donald Trump, a poucos dias de deixar a Casa Branca, anunciou um trem da alegria de perdões presidenciais, que abarcam ex-auxiliares, aliados, contraparentes e até "protegés" de celebridades como Kim Kardashian.

Pior, especula-se que, antes de sair, Trump poderá conceder a si mesmo um perdão preventivo, para que não precise responder por crimes federais que tenha cometido. Mais imaginativo e mais eficiente, o presidente Vladimir Putin, que tem hegemonia completa sobre o Legislativo, sancionou um projeto de lei que dá imunidade jurídica a ex-presidentes do país e seus familiares, não apenas durante o período que ocuparam o cargo, mas por toda a vida. Operações de busca, prisões preventivas e intimações para interrogatórios policiais contra essas pessoas ficam terminantemente proibidas. Como sujeira pouca é bobagem, a norma também dá a ex-presidentes cadeira cativa no Senado.

Para que o leitor não termine o ano deprimido, vale destacar que há aí uma boa notícia. Ao editar a lei, Putin, que está no poder desde 2000, sugere que tem planos de um dia deixar a Presidência.


Ricardo Noblat: Natal manchado pelo sangue de mulheres assassinadas

Feminicídio avança no Brasil

Thalia Ferraz, 23 anos, celebrava o Natal com parentes em sua casa em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, quando recebeu por celular uma mensagem perguntando se ela gostava de surpresas. Momentos depois, um homem apareceu e a matou a tiros na frente de todo mundo. A polícia suspeita que foi o ex-companheiro dela.

Na mesma noite, a 3.204 quilômetros dali, no Alto do Mandu, na Zona Norte do Recife, um sargento reformado da Polícia Militar, de 53 anos, matou sua mulher, a cabeleireira Anna Paula Porfírio dos Santos, 45 anos, com dois tiros de revólver. Eram casados há 20 anos e tinham uma filha de 12 que testemunhou o crime.

Horas antes, na Barra da Tijuca, no Rio, a 2.297 quilômetros do Recife, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, de 45 anos, havia sido assassinada a facadas pelo ex-marido, Paulo José Arronenzi, de 52 anos. Um vídeo registrou os gritos de suas três filhas crianças que imploravam ao pai para que parasse de esfaquear a mãe.

Viviane era juíza. E foi por isso que o Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça, o Tribunal de Justiça do Rio e a Defensoria Pública manifestaram seu horror com o que lhe aconteceu. O ministro Luiz Fux, presidente do Supremo, prometeu desenvolver ações para erradicar a violência contra mulheres.

“Enquanto nos preparávamos para nos reunir com nossos familiares e agradecer pela vida, veio o silêncio ensurdecedor. A tragédia da violência contra a mulher, as agressões na presença dos filhos, a impossibilidade de reação e o ataque covarde entraram na nossa casa na véspera do Natal”, escreveu Fux.

Claudio de Mello Tavares, presidente do Tribunal de Justiça do Rio, distribuiu nota onde diz que “o gravíssimo assassinato” da juíza “mostra que o feminicídio é endêmico no país: não conhece limites de idade, cor ou classe econômica. O combate a essa forma bárbara de criminalidade contra as mulheres deve ser prioritário”.

Palavras ao vento se algo de muito drástico não for feito para de fato frear os casos de feminicídio que só aumentam no país. No período colonial e até o século 19, era lícito no Brasil ao homem casado matar a mulher em flagrante delito com base no argumento da defesa da honra. Assim, maridos assassinos eram absolvidos.

Só a partir de 2015 o Código Penal Brasileiro incluiu a Lei 13.104 que tipifica o feminicídio como homicídio, reconhecendo o assassinato de uma mulher em função do gênero. O crime prevê pena de 6 a 20 anos de reclusão. Se caracterizado o feminicídio é considerado hediondo e a punição parte de 12 anos de reclusão.

O Brasil teve um aumento de 7,3% no número de casos de feminicídio em 2019 em comparação com 2018. Foram 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma média de uma a cada 7 horas, segundo levantamento feito pelo site G1 com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal.

Dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam que quase 90% das vítimas de feminicídio no Brasil são mulheres mortas por ex-maridos ou ex-companheiros. Facas são as armas mais usadas nesse tipo de assassinato (53,6). Em seguida, as armas de fogo (quase 20% das vezes).

No Rio de Janeiro, segundo o Monitor da Violência Doméstica e Familiar contra Mulher, o número de crimes graves cometidos contra mulheres dentro de suas casas cresceu desde o início da pandemia. Cabe perguntar: Quantas juízas precisarão ser mortas para que se trate o feminicídio com a gravidade que ele requer?


Demétrio Magnoli: O sermão nosso de cada dia

Jornais descobriram atalho de confirmar e reforçar as coleções de ideias dominantes no seu público-alvo

Reza a sabedoria convencional que o advento das redes sociais provocou a crise existencial da imprensa em curso. O fenômeno é mais complexo: a crise deve-se, essencialmente, à resposta adaptativa escolhida pelo jornalismo profissional ao desafio posto pelas redes.

Diante da perda dramática de receitas publicitárias, os jornais engajaram-se na fidelização de leitores ou espectadores. Na batalha de vida ou morte, descobriram um atalho: falar, preferencialmente, para um segmento da sociedade definido por certas visões de mundo. Ou, dito de modo diferente, confirmar e reforçar as coleções de ideias dominantes no público-alvo.

Os veículos de imprensa entregaram-se a alinhamentos ideológicos cada vez mais nítidos. Nos EUA, exemplo icônico, as redes CNN e MSNBC tornaram-se porta-vozes informais das correntes mais liberais (ou seja, à esquerda) do Partido Democrata, enquanto a Fox firmou-se como arauto da ala reacionária do Partido Republicano. A última cresceu numa estridente oposição a Obama. As duas primeiras, assim como o New York Times, obtiveram retumbante sucesso comercial com a denúncia inclemente de Trump. Hoje, sem o “diabo laranja”, indagam-se sobre o rumo a seguir.

O atalho conduz a uma armadilha fatal. As pautas, os enfoques e a linguagem do jornalismo profissional tendem a se submeter à lógica discursiva das redes sociais. A Folha, que renasceu nos anos 80 com sua adesão ao movimento das Diretas Já!, uma posição editorial justificada pelo imperativo de reconquista da liberdade de imprensa, decidira não tomar parte em novas campanhas políticas, já que o sistema democrático garante a pluralidade de opiniões. Agora, porém, patrocina a campanha “#Use amarelo pela democracia”, uma bandeira anti-bolsonarista de forte apelo no seu leitorado que equivale a desistir de conversar com todos os brasileiros.

“Um bom jornal é uma nação dialogando consigo mesma” (Arthur Miller). A renúncia a esse ideal tem amplas consequências jornalísticas, como indicam as críticas da jornalista Bari Weiss, que se demitiu do NYT.

Espelho, espelho meu. As redes sociais alimentam seus seguidores com o discurso que eles querem ouvir. O jornal capturado por um nicho selecionado de leitores procede quase da mesma forma. “Toda pressão empurra para publicar mais um artigo sobre como Trump é um monstro ou um palhaço”, constata Weiss. Ela não gosta Trump, mas rejeita o tribalismo político dos dois lados: “Cada vez mais, o NYT e outros veículos mostram uma pequena faixa do país, um mundo como os editores ou os leitores gostariam que fosse”.

A pluralidade ideológica dos colunistas de opinião, item no qual a Folha dá um banho no NYT, não soluciona o problema. A ferida situa-se no núcleo do fazer jornalístico, não em editoriais apropriadamente duros (mas evitando a pulsão panfletária expressa em frases como “estupidez assassina de Bolsonaro”), ou na indispensável denúncia das torrentes de fake news. O ponto crucial é que o universo da notícia sofre uma compressão e uma amputação.

O jornal que pronuncia sermões imita a linguagem do pregador ou do militante —e, nesse passo, inclina-se a conceder a eles um palanque desproporcional à influência que exercem. As pautas identitárias extremas saltam da periferia do debate público —isto é, de obscuros refúgios acadêmicos— para o centro do palco. A reportagem sujeita a trama factual a uma mensagem apriorística. O comício deles contagia, infecta, espalha o vírus; a nossa manifestação de protesto purifica, liberta.

Sermão é um ato religioso: uma cisão entre “nós” e “eles”. O jornal que só conversa com os seus inscreve-se na moldura da intolerância discursiva, potencializando as engrenagens de polarização das redes sociais. Mesmo quando fala sem parar de amor, saúde, igualdade, solidariedade, justiça e inclusão.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Marcus Pestana: Nada será como antes

A aventura humana é sempre mistério. Permanentemente nos perguntamos: de onde viemos? para onde vamos? qual é o sentido da existência? Muitos encontram respostas na fé, outros numa causa, alguns flutuam sem nada querer explicar ou entender. A esperança é o fio condutor e o motor da invenção do futuro. Eterno pé na estrada alimentando a fé inabalável de que nada será como antes, amanhã ou depois de manhã.

O ano já vai fechando suas cortinas. O próximo já aponta na esquina. Mas é preciso reconhecer: 2020 foi um ano meio estranho, meio esquisito, meio diferente demais, o ano que parece nunca ter começado. Muitos amigos se foram. Caio Nárcio, Carlinhos, Vivi, Alfredo Sirkis. Tantas pessoas que admirava: Aldir Blanc, Sérgio Ricardo, Lan, Carlos Lessa, Flávio Migliacci, Dom Pedro Casaldaglia. Alan Parker, Ennio Morricone. A pandemia já nos levou 190 mil brasileiros.

Os últimos dez meses foram como coreografia repetitiva em torno de um samba de uma nota só: a COVID-19. Os boletins de casos confirmados e óbitos viraram rotina. As taxas de ocupação de leitos hospitalares entraram no cotidiano da população. Nunca o álcool em gel e as máscaras foram tão populares. A guerra era contra um inimigo único e invisível – um vírus originário da cidade de Wuhan, capital da província de Hubei, na distante China. Não havia dois lados, erámos todos contra o vírus. Ainda assim, alguns líderes de baixa sensibilidade e empatia humana conseguiram politizar a cloroquina, a vacina, o distanciamento social, o uso de máscaras, a origem do vírus e adotar o negacionismo diante da realidade que saltava aos olhos.

Se é verdade que mais uma vez fomos confrontados com nossas fragilidades e com a provisoriedade e imprevisibilidade da vida, nos encontramos também com o melhor da natureza humana. O ser humano é o único na face da terra capaz de aprender com as crises que aparecem à sua frente. E daí inventar, reinventar, transformar, desafiar, inovar.

Além da devastadora herança deixada pela pandemia, fica um legado positivo. Reaprendemos que vivemos numa aldeia global e que precisamos não de xenofobia e sim de solidariedade e integração internacional. Valorizamos a ciência e sua ágil corrida para produzir uma vacina. Enxergamos de forma mais nítida o quanto é importante o compromisso com o desenvolvimento sustentável, porque a destruição do meio ambiente é um tiro pela culatra. Revalorizamos o sistema e os profissionais de saúde, que provaram indo ao limite de suas forças, como são centrais na vida de todos nós.

Acordamos para a importância de uma maior atenção aos idosos, elos mais vulneráveis à pandemia. Descobrimos que é possível estar mais próximo aos filhos graças ao home office. Amadurecemos a consciência de que não precisamos de líderes truculentos, intolerantes, agressivos. A vitória de Biden, um líder sereno, moderado, experiente e conciliador, talvez seja a melhor notícia do ano. A derrota de Trump, com sua agressividade, boçalidade e suas fakenews, abre um novo horizonte para o mundo.

Clarice um dia nos alertou: “Sei que cada dia é um dia roubado da morte”. Perdermos muitos dias de pessoas queridas. Mas 2021 bate à porta. Precisamos visceralmente de esperança. E Clarice mesmo nos ensinou: “O que verdadeiramente somos é o que o impossível cria em nós”.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Bolívar Lamounier: Deitado eternamente num catre de madeira

Exceção feita ao agronegócio, a verdade é que estamos parados, ou retrocedendo

Sei que não é de bom tom fechar o ano numa nota pessimista, mas parece-me pior fazê-lo numa nota mentirosamente otimista.

Quantos de nós conservamos a esperança que tínhamos até poucas décadas atrás, a de que nossa geração veria um País mais desenvolvido, com mais bem-estar, escolaridade e civilidade? O problema, como ninguém ignora, é que não temos sido capazes de retomar o crescimento econômico em bases sustentáveis e, quiçá pior, nem temos uma consciência exata das raízes sociais e institucionais de nossa estagnação.

Há exatos 30 anos, dissecando o período Geisel-Collor, o economista Alkimar Moura definiu o objetivo de seu texto com estas palavras proféticas: “A ênfase reside nas políticas macroeconômicas de curto prazo, pois as preocupações mais largas com crescimento econômico, mudança estrutural e justiça social foram soterradas pelas violentas flutuações conjunturais que assolaram a economia brasileira nos últimos anos. Além disso, não se pretende oferecer nenhuma interpretação original para nossas recorrentes mazelas econômicas, pois a literatura econômica disponível é pródiga a esse respeito”.

Para chegarmos exatamente ao mesmo quadro, e torná-lo mais aterrador, basta acrescentar a pandemia às “violentas flutuações conjunturais” a que Alkimar Moura se referiu. Com uma ressalva: a pandemia já matou e ainda vai matar muita gente, mas por si só não explica o pessimismo (realista) que hoje permeia nossa sociedade. Exceção feita ao agronegócio, cujo desempenho é formidável, a verdade é que estamos parados, ou retrocedendo. Deitados eternamente num modesto catre de madeira.

Igualmente incapaz de oferecer alguma interpretação original, tocarei mais uma vez em questões já bastante exploradas. A questão central é, a meu juízo, a perda do dinamismo. O Brasil atual carece de impulso, de uma força ou um processo que o leve a superar a chamada “armadilha do baixo crescimento”. O leitor poderá objetar que, mesmo com o produto interno bruto (PIB) crescendo a taxas medíocres, o País poderia estar melhorando. Poderia estar aprimorando suas instituições, revolucionando seu sistema de ensino, reduzindo a violência endêmica e, não menos importante, alojando os corruptos nos aposentos que lhes seriam adequados. É óbvio que nada disso está acontecendo, e que não há exagero em afirmar que estamos regredindo em todos esses aspectos.

Esquematicamente, podemos identificar três causas para a falta de impulso: uma, derivada da estrutura social lato sensu; outra, devida à má organização das instituições de governo; e uma terceira, de mais difícil identificação, decorrente da inexistência entre nós de uma elite digna de tal denominação. No tocante à estrutura social, o termo estrutura nem parece apropriado. Não temos uma classe média, ou camadas médias bem delineadas, assentadas em pequenas e médias propriedades, urbanas e rurais. Temos um enorme conjunto informe, ameboide, constituído por pessoas que vivem de empregos mal remuneradas e de má qualidade, sem perspectiva e sem incentivos de ascensão.

Nesse conjunto é preciso incluir os desempregados e os que não estão tecnicamente desempregados porque já não têm ânimo para procurar emprego. Pessoas que pagam seus impostos (até porque a maioria deles está embutida no preço dos produtos), cumprem seus deveres eleitorais, etc., mas das quais não é razoável esperar pressões contínuas e racionais sobre as autoridades – menos ainda agora, que estão desmobilizadas pela pandemia – com vista a engendrar o impulso a que me referi.

Nossa organização institucional acopla o sistema de governo presidencialista a um multipartidarismo alucinado, sem dúvida a pior combinação jamais inventada. A dúvida que alguém pudesse ter a respeito dessa afirmação foi para o espaço, na era Lula, com o mensalão e o petrolão. O orgulho de termos ampliado generosamente o eleitorado, tornando-o tão abrangente como o dos países mais desenvolvidos, foi desmontado com um peteleco pela megacorrupção empresarial, que esfarelou todo o sistema de partidos.

No Brasil, a fragilidade da estrutura social e das instituições políticas é agravada pela inexistência de uma elite dotada de certa organicidade. Nas ciências sociais, há quem empregue o termo elite para se referir apenas aos ápices de quantas pirâmides queiramos construir com base em critérios de prestígio, renda, escolaridade, etc. Essa acepção é pobre, pois designa apenas agregados estatísticos. O sentido que ora nos interessa diz respeito a grupos reais, que se destacam não apenas por possuir recursos vultosos, mas também por certa autoconsciência e coesão e exemplaridade no tocante a valores. É graças a tal combinação de atributos que elites influenciam a política pública, balizam as ações dos governos e, em certas conjunturas críticas, os próprios destinos do país. Isso, decididamente, é o que não temos atualmente no Brasil.

Precisamos de ânimos desarmados, não de mais radicalização. Como está não pode dar certo.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Paulo Ferracioli aponta ‘fator de mudança da economia e geopolítica da Ásia’

Em artigo publicado na revista da FAP de dezembro, especialista em relações internacionais analisa RCEP

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Professor convidado da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e mestre em economia, o engenheiro Paulo Ferracioli diz que RCEP (Regional Comprehensive Economic Partnership) será fator de mudança da economia e da geopolítica da Ásia. “Após a assinatura da RCEP, a grande novidade é que Xi Jinping anunciou que a China cogita pedir adesão à CPTPP”, afirma ele, que é especialista em relações internacionais, em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de dezembro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. A RCEP, assinada em 15 de novembro, tem sido considerado um marco nas relações econômicas e na geopolítica dos países asiáticos. A impressão inicial é que estas relações serão cada mais determinadas por processos interasiáticos, o que ainda não significa, até agora, o completo afastamento das potências externas que atuam na região.

Segundo Ferracioli, o tema deverá ser tratado pelo Japão, que assumiu a liderança do acordo, após a saída dos Estados Unidos, e que tem na China seu principal parceiro comercial, além de ser membro da RCEP, como a China. Certamente, dado o relacionamento entre Japão e EUA, este novo posicionamento da China exigirá profundas reflexões estratégicas de Biden e seus assessores, de acordo com o professor da FGV.

Alguns aspectos e consequências deste acordo merecem ser conhecidos para facilitar seu acompanhamento futuro, como o que diz respeito à liderança do processo, exercida pela Asean (Association of South East Asian Nations), composta por 10 membros com economias de dimensões bastante variadas. Dentre eles, apenas a Indonésia se destaca pelo tamanho de sua economia (maior do que a brasileira), seguida pela Tailândia com um PIB, medido em PPP, cerca de três vezes menor.

No entanto, segundo o especialista, o dinamismo econômico da região é notável. Por exemplo, a quinta maior economia da Asean, o Vietnã, após a adoção da política de “doi moi” (renovação), com aspectos semelhantes às políticas chinesas, vem crescendo a taxas anuais elevadas, sendo que, de 1990 até 2019, apenas em 1999 a taxa de crescimento anual foi inferior a 5%. São ainda membros da ASEAN, listadas por tamanho de suas economias, Malásia, Filipinas, Singapura, Myanmar, Camboja, Laos e Brunei.

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Jamil Chade: 2020 - O ano das verdades inconvenientes

O ano forçou a suspensão de um cegueira coletiva e deliberada. Poderemos fechar os olhos de novo, mas não há mais como apagar do inconsciente as imagens de um mundo insustentável

Na Alemanha, quando fronteiras em março e abril foram fechadas para conter o vírus da covid-19, rapidamente se descobriu que a primavera não seria igual às demais. Os dias eram cada vez mais longos e o desabrochar das flores não poderia ser detido. Mas, no campos de legumes da maior economia da Europa, faltava uma peça fundamental: as mãos escuras e ásperas de imigrantes para colher alimentos.

Em poucos dias, o que era impensável se transformou em um realidade: a Lufthansa organizou voos especiais para ir às margens da Europa buscar justamente aquelas populações indesejadas por uma parcela dos alemães. Com as fronteiras fechadas e sem eles, não haveria o tradicional aspargos nos pratos.

2020 marcará nossa geração. Haverá um antes e um depois na história. Mas seja qual for a forma pela qual o futuro irá narrar os acontecimentos deste período, não restam dúvidas de que 2020 foi o ano de verdades inconvenientes.

Ainda nas primeiras semanas da pandemia, a notícia de que o médico responsável por detectar o vírus pela primeira vez e alertar as autoridades tinha morrido gerou uma comoção. Não por conta apenas de sua descoberta. Mas pelos relatos de que ele foi alvo de uma repressão policial chinesa ao tentar avisar ao mundo de que um novo vírus ameaçava a humanidade. A verdade inconveniente, em 2020, é que a censura de uma ditadura é real e mata.

À medida que o vírus se espalhava, governos travavam batalhas comerciais para garantir máscaras e respiradores. Governos como o de Angela Merkel chegaram a colocar barreiras para impedir a exportação, enquanto relatos e proliferavam de operações já em pistas de decolagem para desviar carregamentos.

Não foi muito diferente quando a vacina chegou. Países ricos esvaziaram as prateleiras, ficando com bilhões de doses e um volume suficiente para imunizar várias vezes suas populações. Enquanto isso, países pobres fazem filas humilhantes em busca de garantias de que pelo menos uma parte desses avanços na pesquisa cheguem às suas populações.

A verdade inconveniente de 2020 é de que a ciência não beneficia todos ao mesmo tempo. E, uma vez mais, as inovações chegam primeiro para Margarets, e não para Marias. Chegam para Steven ou John, e não para Severinos.

Também foi o ano em que uma parcela de economistas foi confrontado por uma dura realidade que minava um discurso bem ensaiado de que o liberalismo cego, a privatização inclusive de serviços básicos e o papel apenas regulador da administração pública eram sinais de avanço e modernidade. Diante do colapso da economia mundial e da crise, se escutava por ruas escuras, corredores higienizados e manchetes: onde está o Estado?

2020 foi o ano ainda em que ouvimos do FMI um apelo aos governos: gastem o que tiverem de gastar para socorrer suas populações. Aquele mesmo que passou décadas ensinando governos as belezas de austeridade. O que está em jogo não são apenas vidas humanas. Mas a estabilidade de um sistema.

Nas periferias dos EUA, nos bairros mais pobres das grandes cidades britânicas ou nas favelas no Brasil, o vírus matou mais. A análise da Kaiser Health News, por exemplo, revelou que os negros americanos de 65 a 74 anos morreram de covid-19 cinco vezes mais do que os brancos na mesma faixa etária.

Quando as escolas fecharam e estudantes foram instruídos a usar a Internet de casa, “descobriu-se” rapidamente que aquele instrumento revolucionário da web não era universal. Dois terços das crianças em idade escolar do mundo - ou 1,3 bilhão de crianças de 3 a 17 anos de idade - não têm conexão à Internet em suas casas, de acordo com um relatório da Unicef e da União Internacional de Telecomunicações.

A verdade inconveniente é que, em 2020, a Internet não é para todos. Não há um fosso entre diferentes grupos. Há um oceano de distância entre a porção conectada do mundo e aqueles que apenas sonham com um lápis.

Quando a OMS sugeriu que todos lavassem suas mãos na esperança de frear a pandemia, descobriu que 25% dos postos de saúde pelo mundo não contavam com água. Também se descobriu que milhões de pessoas viviam no fio de uma navalha e que qualquer abalo os jogaria de volta a uma pobreza profunda. A fome voltou e o futuro ficou mais distante.

Quando governos tentaram sair ao socorro de suas populações, se depararam com a constatação de que direitos, formalidades e redes de proteção se limitavam apenas a uma minoria privilegiada.

Em 2020, mais de 2 bilhões de trabalhadores atuam na informalidade. Ou seja, 62% de todos os que trabalham no mundo. Nos países de renda baixa, essa taxa chega a 90%.

Quando bares, hotéis e restaurantes fecharam na rica e sofisticada cidade de Genebra, das sombras surgiu uma fila inesperada e inconveniente de milhares de pessoas esperando pela entrega de sacos de comida por grupos de caridade. Eram os imigrantes que, escondidos em cozinhas, lavanderias e nos bastidores do luxo, garantiam que o sistema funcionasse.

E quando, já exaustas, sociedades receberam a notícia de que uma empresa alemã havia descoberto uma vacina com uma alta chance de eficácia, a verdade inconveniente é que, de fato, tal conquista havia sido atingida por um casal de imigrantes turcos. Teriam eles conseguido entrar hoje na Europa?

Guias foram elaborados por autoridades sobre como se despedir daqueles que amamos. Mas não existe guia para a falta de um abraço, de um ombro ou de uma mão que oferece um lenço. A verdade inconveniente é de que o luto faz parte da vida.

Em 2020, um espelho foi colocado diante do mundo. E, como uma realidade que não se pode ignorar, esse mundo não teve o poder de escolher apenas os reflexos que interessavam. A imagem que despontou era intransigente. Não tolerou manipulações. Sim, ali estavam a genialidade humana, a solidariedade e a beleza. Mas também verdades inconvenientes que preferiríamos não ver.

Elas nunca estiveram escondidas e 2020 forçou a suspensão de um cegueira coletiva e deliberada.

Poderemos optar por fechar os olhos de novo. E certamente muitos escolherão esse caminho em 2021. Mas, no silêncio envergonhado de alguns, no pesadelo de noites de calor ou na reflexão íntima de nossos destinos comuns, não há mais como apagar do inconsciente as imagens de um mundo insustentável.

*Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.


Marco Aurélio Nogueira: Um ano para não esquecer

2021 há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para recuperar o terreno que perdemos

O ano de 2020 termina com a tragédia instalada: somente no Brasil são quase 8 milhões de infectados, os mortos os mortos se aproximando de 200 mil. A situação calamitosa, que impulsionou as vacinas para o primeiro plano, deixou patente a incompetência generalizada do governo federal, que assistiu com escárnio, indiferença e passividade à disseminação do vírus.

A gestão do general Pazuello no Ministério da Saúde limitou-se a reverberar as posições do presidente. Não se preocupou em elaborar tempestivamente um plano de imunização. Um ministério militarizado, distante dos profissionais da área e de seus conhecimentos, distante até mesmo da capacidade logística sempre lembrada como virtude dos militares.

Somente no final do ano, quando a pandemia repicava com força, o ministério saiu da letargia e apresentou um plano. Elaborado às pressas e repleto de indefinições. O próprio presidente, que ensaiou posar de conciliador, continuou a vociferar contra a vacinação, chegando ao absurdo de sugerir que os vacinados poderiam converter-se em “jacarés”. Liberou seus seguidores para a divulgação de insanidades seriais. Uma enxurrada de boçalidades caiu sobre os brasileiros, minando sua confiança e sua concentração. Como estaremos depois das festas e dos ritos do verão?

Medo, angústia, insegurança infiltraram-se pelos poros da sociedade. O vírus revelou a fragilidade humana perante suas próprias criações, fez o ruim ficar péssimo. Sem instâncias de coordenação, o desentendimento se alastrou, com um cortejo de horrores. O choque de “narrativas” reforçou os polos entre os quais nos agitamos. Demos de cara com nossas chagas sociais, com a marginalização, a segregação, a precariedade existencial de tantos brasileiros.

A pandemia se encontrou com uma sociedade que já sofria com a pauperização, a fragmentação, a perda de direitos, um governo que cria inimigos artificiais, mas se acovarda diante de inimigos reais.

Entraremos em 2021 com dúvidas e indefinições. Não se sabe quantas doses de imunizante estarão à disposição, de que laboratórios virão, quando começará a campanha e até quando ela se estenderá. Não há cronograma nem indícios de planejamento, o que significa que o processo poderá ressentir-se da falta de controles fundamentais quando se mexe com vacinas complexas, a serem aplicadas em duas doses espaçadas no tempo. Desperdiça-se a consagrada expertise brasileira em imunizações.

Enquanto não houver vacinação em massa a vida não voltará ao “normal”, a economia não se recuperará, a desigualdade continuará a se aprofundar, o País irá se inviabilizando, com menos chances de entrar nas cadeias de valor e nos fluxos da inovação tecnológica do nosso tempo.

Um ano de pandemia e confinamento, mesmo que seletivo, marcará a vida dos brasileiros. Mexerá com sua psique, com seu imaginário, com o modo como organizam as atividades, trabalham, consomem e educam os filhos. As crianças e os jovens são um capítulo à parte, alijados da escola, das interações afetivas, das amizades. Que adultos se tornarão depois dessa experiência dolorosa? Com que gap educacional?

Os brasileiros não abraçaram o distanciamento social como deveriam. Não puderam fazê-lo, acossados pelas exigências do emprego, da busca de renda. Muitos não souberam e não aceitaram. Parte da população deixou-se levar pelo discurso presidencial, pela agitação dos bolsonaristas de plantão, pregadores da ignorância. Tudo ajudou a que o povo extravasasse o desejo de se aglomerar. Enquanto os mais pobres foram às ruas para trabalhar, os mais ricos encheram bares, shoppings e restaurantes.

O tamanho da tragédia sanitária corresponde ao tamanho da tragédia política que se abateu sobre os brasileiros. Ausência de governo sempre produz caos. Pior ainda quando um governo que não governa insiste em pregar a desunião, ataca instituições, repete à exaustão uma narrativa doentia, sustentada pela burrice, pela provocação barata, pela agressividade. Os três Poderes da República não se entendem, a Federação não funciona, há pouca coesão, os brasileiros estão desorientados e confusos.

Chegamos ao fim do ano sentindo a falta que faz um governo que garanta vidas, direitos, boas políticas. O ano também foi de ausências: da voz das ruas e dos democratas, da sua capacidade de se opor aos desmandos do poder e de dar um “basta” aos arroubos criminosos do presidente.

Andamos, porém, em pista de mão dupla: as eleições municipais produziram fatos e novas lideranças, um clima de entendimento político emergiu da disputa pela presidência da Câmara dos Deputados, Trump foi derrotado, a ciência está vencendo a covid.

Por certo aprendemos algo em 2020, conhecemos melhor nossos limites e imperfeições. Não vamos recomeçar do zero, nem desprezar o patrimônio que acumulamos à custa do esforço de um povo dedicado, sofrido, que sabe arrancar a vida pela raiz.

Que venha, pois, o ano novo. Ele há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para recuperar o terreno que perdemos nos desvios perversos da História.

*Professor Titular de Teoria Política da Unesp


Paulo Fábio Dantas Neto: Saúde Pública e Política - A eficácia da estratégia maricas

Há duas semanas - mais precisamente em 11 de dezembro passado - o ex-ministro da Saúde, Luiz Mandetta, concedeu significativa entrevista à Globo News. Além de tê-la assistido e gostado do que ouvi, constatei a repercussão razoável e favorável que obteve, na imprensa escrita e em redes sociais, aquela parte, digamos, politicamente notável da entrevista. Mandetta foi contundente, preciso e didático na crítica à conduta e à atitude do capitão Bolsonaro, desde o início da pandemia do coronavírus. De certo modo, o ex-ministro fez chover em terreno enxarcado. Reiterou críticas já formalizadas em livro que lançou recentemente e que têm sido compartilhadas e fartamente veiculadas, através de diversos meios de comunicação, por vozes de diversos setores da sociedade e diferentes posições do espectro político do País.  

Mas o fez de um modo tão direto, objetivo e bem informado, que não se tratou de mais uma chuvinha contra a ideia de gripezinha. Foi um furacão de admoestações éticas e políticas ao Presidente da República, capaz de adubar o terreno em que se poderá, talvez, no futuro, plantar iniciativas políticas e jurídicas concretas para questionar, com propriedade, a sua permanência no cargo. Mereceu aplausos de quem sentiu a alma lavada, após tantos meses de desgoverno, vividos em meio à constatação de que Bolsonaro, malgrado o rol de irresponsabilidades e mesmo crimes em que incorreu e incorre, segue irremovível, no momento, seja por ter apoio parlamentar mínimo para se segurar no cargo, seja por contar com apoio popular relevante.

Feito o registro do que reluz, passo ao que mais me impactou na entrevista e que tem se mantido relativamente na penumbra, sem eco importante no noticiário e ainda menos na análise de colunistas. Trata-se de duas constatações às quais aquela fala de Mandetta nos induz, ambas com implicações lógicas diretas sobre o plano político do “que fazer".

A primeira é que se não houver vacinação, em grau importante, já em fevereiro, estará armada a cena de uma tragédia sanitária maior que a atual. Isso porque março e abril são meses, lembra Mandetta, de sazonalidade de vírus. O sistema de saúde não dará conta de evitar centenas de mortes diárias remanescentes de falhas no combate à primeira onda, mais a contaminação da segunda onda (agora, sabemos, com adendo da mutação do vírus), e demandas da sazonalidade de outros vírus, também matadores de idosos não tratados. Em 2020 foi possível, ao Ministério da Saúde, coordenar ações com êxito, em março e abril, pois houve distanciamento e isolamento, hoje impraticáveis nos níveis em que se praticou naquele momento.  Sem falar na ausência atual de capacidade e disposição coordenadora de um ministério marcado pela inépcia.

É evidente que reconhecer a impossibilidade atual de se atingir níveis de distanciamento e mesmo isolamento a que se chegou há oito ou nove meses atrás não significa capitular perante a “fuga para a frente” que se assiste nas cidades brasileiras, como se a volta da “normalidade” econômica fosse algo factível e irreversível, na presença do vírus e de suas mutações. Vamos observar que países que já começaram a vacinar estão fazendo as duas coisas ao mesmo tempo, isto é, reintroduziram medidas que aumentam o isolamento, ao tempo em que andam com a vacinação, processo necessariamente não tão rápido, quando se trata de vacinar uma população inteira. Para atenuar o quadro trágico, negociações, de que falarei mais adiante, precisarão passar também por aí, apesar das resistências entrincheiradas, que certamente não serão poucas, nem brandas.

A segunda constatação é, justamente, a impossibilidade do SUS planejar e operar uma campanha de vacinação imediata, a nível nacional, funcionando só com duas pernas, a dos estados e a dos municípios. Seja "robusto", ou não, o suposto plano do governo federal, esse problema da vacina não se resolverá, do ponto de vista dos usuários, sem uma solução nacional, seja pelo MS, pelo Congresso, pelo STF ou pelos três juntos, como propôs, recentemente o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

É preciso aprofundar esse ponto, ligado à segunda constatação a que nos levou a entrevista do ex-ministro da Saúde. Somos uma federação de estados autônomos, não soberanos. Qualquer reunião de governadores – e algumas, politicamente incentivadas, em boa hora, têm ocorrido - deixa clara a complexidade desse fato. São assimétricas as condições de autonomia dos diversos estados, mas, à exceção, talvez, de São Paulo, nenhum tem combustível material e gerencial para dispensar, mesmo só por algum tempo, o MS como vértice de um sistema. O Brasil não é um estado unitário em que o governo central decide e o resto segue, mas também não é instituição confederativa, em que estados subnacionais podem decidir fora de diretrizes e constrangimentos coletivos.  Numa federação minimamente ordenada (e a nossa é bem ordenada no que respeita a políticas de saúde) precisa haver regramento comum e mesmo estados mais ricos e poderosos não podem (ou ao menos não devem) comportar-se como membros, com poder de veto, de algo como o Conselho de Segurança da ONU.  O problema político, social e sanitário, do qual o ministro Pazuello é apenas a expressão mais banal, só encontrará solução razoável em arenas decisórias nacionais. É bem vinda, necessária e ajuda muito, toda iniciativa de governadores, prefeitos, assembleias legislativas, câmaras municipais e sociedade civil que leve em conta essa realidade, sem desafiá-la.  Mesmo se o alvo do apelo for o Judiciário, como no caso da que foi aventada pelo governador Flavio Dino.

Juntemos as três constatações de curto prazo (Bolsonaro não cai, a vacinação é urgência urgentíssima e não pode se fazer sem o governo federal) e temos algum norteamento sobre o que fazer. Sinto se sou mensageiro de má notícia, mas, se queremos vacina já, é preciso pressionar, sim, mas também se entender e negociar com o governo Bolsonaro. Quem acha impraticável, deve, daí, tirar a consequência de que morreremos como baratas.

Na coluna passada, tratando de tema da “política dos políticos”, assim comparei as respectivas eficácias da estratégia polarizadora (atitude política negativa, voluntarista, que pretende confrontar o adversário) e da unidade com entendimento (atitude política positiva, prudencial, que pretende isolá-lo) para vencer a política antipolítica de Bolsonaro: “Santos guerreiros são ineptos para lidar com o tipo de maldade que o presidente encarna.  Provam-no os sucessivos momentos em que foi desafiado nesses termos e, das urnas ou pesquisas, emergiram efeitos perversos (...) a experiência de dois anos de labuta com o fator Bolsonaro traz bons conselhos. Olhar para os resultados das eleições e para frentes políticas que se formaram e venceram. Lembrar dos trinta primeiros dias de enfrentamento articulado da pandemia no Brasil (...) Bolsonaro se isolou e perdeu espaço. Ao inverso, recupera-se sempre que se perde o foco nesse processo plural e incremental” e sempre – completo agora - que o foco é desviado para o terreno pantanoso da “vontade política”, refúgio de demagogos que a receitam como elixir contra males que não sabem combater.

Essa chave interpretativa da eficácia de estratégias políticas pode ser usada para abrir um horizonte menos sombrio para as controvérsias sobre vacinação e vacinas. Peço licença, nesse ponto, para usar um chiste do Presidente, invertendo seu sentido negativo. Maricas é bom sinônimo de prudente, no caso da vacina. Bons negociadores são, nesse momento, mais importantes do que a soma de todas as (também necessárias) macro análises sofisticadas do problema sanitário e econômico e de todos os discursos justamente indignados com a iniquidade da cena social e com a incúria genocida do governo na Saúde.

Claro que negociadores políticos não deixarão como legado o melhor e mais racional plano de vacinação, nem a estratégia mais persuasiva e ousada para derrubar a popularidade de Bolsonaro, a curto ou a médio prazo. São maricas, afinal. Onisciência e intrepidez são, para eles, por definição, faculdades estranhas. Mas podem servir, por exemplo, para obter apoio de partes do mal chamado “centrão” para a autoconvocação do Congresso em janeiro. Quem, por premissa, vê como nula a chance de se arrastar esse governo a qualquer negociação, ajudaria se suspendesse provisoriamente esse ceticismo radical e somasse sua voz em favor dessa medida de utilidade pública. Ela é crucial para que as questões da vacinação e da sucessão das mesas do próprio Congresso possam ser tratadas, objetiva e publicamente, para além do maniqueísmo das redes, das linhas e entrelinhas do jornalismo político e das ações de afago e chantagem do governo sobre deputados e senadores. Somente sob holofotes a saúde pública receberá o tratamento de prioridade absoluta que precisa ter nesse momento. Quem quer Vacina Já deve não apenas ser maricas no trato com o vírus da Covid. Deve sê-lo também para escolher, pelas evidências, uma estratégia política maricas, quer dizer, reconhecer a maior eficácia de uma política positiva para lidar com o vírus extremista que infectou o país em 2018 e impedir que venha uma segunda onda, em 2022. 

*Cientista político e professor da UFBA.