Day: novembro 22, 2020
Luiz Carlos Azedo: O Zumbi de cada dia
Existe uma realidade social indelével, que explode na nossa cara, principalmente quando a exclusão, o preconceito e a violência contra os negros atingem níveis absurdos
No livro Escravidão, primeiro volume, de Laurentino Gomes, Zumbi dos Palmares é descrito como um herói em construção. Encurralado e morto no dia 20 de novembro de 1695, pelo capitão André Furtado de Mendonça, estava acompanhado de 20 guerreiros, dos quais somente um foi capturado vivo; os demais lutaram até a morte. “Decepada e salgada”, a cabeça do líder quilombola foi enviada para Recife, onde ficou exposta no Pátio do Carmo. Em carta ao rei de Portugal, o governador Mello e Castro registrou para a história a origem do mito:
“Determinei que pusessem sua cabeça em um poste no lugar mais público desta praça, para satisfazer os ofendidos e injustamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal, para que entendessem que esta empresa acabava de todo com os Palmares”.
Hoje, quase ninguém sabe quem foi o ex-governador de Pernambuco Mello e Castro, seu sobrenome é associado ao engenheiro, escritor, artista plástico e poeta experimentalista português Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro, que se radicou em São Paulo, onde morreu em agosto passado . Zumbi, não; a data de sua morte rivalizava com o Dia da Abolição, 13 de Maio de 1888, como marco da luta dos negros no Brasil. O Treze de Maio foi feriado nacional durante toda a República Velha; o 20 de novembro somente em 2011 foi oficializado como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, mas é considerado feriado somente no Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Pará e Rondônia.
O conflito de datas não é trivial, reflete uma disputa ideológica entre aqueles que não admitem a existência do racismo no Brasil, com o presidente Jair Bolsonaro — “sou daltônico”— e o vice-presidente da República, o general Hamilton Mourão – “não existe”—, e os militantes do movimento negro, que lutam contra o racismo estrutural brasileiro, para os quais a Lei Áurea seria um ato de fachada da aristocracia agrária e escravocrata. O Brasil foi o último pais do Ocidente a acabar com o tráfico de escravos, em 1850, e com a escravidão, 38 anos depois. Não haveria o que comemorar no 13 de maio porque os escravos libertos foram abandonados à própria sorte, sendo substituídos por trabalhadores imigrantes europeus nas lavouras, manufaturas e comércio.
Os mitos
Entretanto, uma biografia robusta de Zumbi, segundo alguns historiadores, é uma tarefa impossível, em razão da insuficiência de fontes primárias e da multiplicidade de versões. Haveria três Zumbis míticos:
(1) O Zumbi dos colonizadores. Palmares era apontado como um núcleo de barbárie africana e ameaça à civilização. Joaquim Manoel de Macedo, médico e escritor, autor de A Moreninha e Memórias da Rua do Ouvidor, em 1869, afirmava que os negros carregavam “os vícios ignóbeis, a perversão, os ódios, os ferozes instintos do escravocrata, inimigo natural e rancoroso do seu senhor, os miasmas, a sífilis moral da escravidão infeccionando a casa, a fazenda, a família dos senhores, a sua raiva concentrada, mas sempre em conspiração latente atentando contra a fortuna, a vida e a honra de seus incônscios opressores”. Essa visão permanece subliminarmente na nossa sociedade em relação aos negros.
(2) O Zumbi revolucionário. Está associado “à autêntica luta de classes que encheu séculos de nossa história” — na visão do jornalista Astrojildo Pereira, fundador e secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, no jornal A classe Operária, em 1929 —, cujo momento “culminante de heroísmo e grandeza” fora a república de Palmares, “tendo a sua frente a figura épica de Zumbi, o nosso Spartaco negro”. É uma visão ideológica, que reproduz o determinismo marxista da época na interpretação da História e predomina na velha esquerda, que subordina a questão do racismo à luta de classes.
(3) O Zumbi em construção. É o mito que nasce do movimento abolicionista, que o elegeu como ícone da resistência dos escravos, mas ganhou fôlego no século XX, como ícone literário, consagrado nos livros de Joel Rufino, Décio Freitas e Ivan Alves Filho na década de 1980, e reproduzido na pintura, no cinema, na música e nos desfiles de escolas de samba.“É o Zumbi dos oprimidos, herói das lutas pela liberdade, não só de escravos e negros, mas também dos camponeses, índios, trabalhadores, das minorias”, segundo Laurentino Gomes. É uma visão mais pluralista.
Lugar de fala
Existe um Zumbi para cada oprimido, até mesmo uma versão de que o herói de Palmares seria um gay jaga, do antropólogo baiano Luiz Mott. O mito renasce a cada dia, não por causa dos historiadores, mas em razão da existência objetiva do racismo e da luta identitária, centrada no “lugar de fala”. A exclusão, a injustiça social e a violência física incidem mais contra os negros do que contra outros segmentos da população, independentemente do nível social. Há todo um debate político sobre as agendas identitárias e a política de cotas raciais, que agora chegou à distribuição de recursos dos partidos na campanha eleitoral, e mesmo uma polêmica sobre a reprodução de conceitos e práticas do movimento negro norte-americano aqui no Brasil, que não seriam compatíveis com a realidade de um pais miscigenado como nosso, capaz de “traduzir” toda e qualquer identidade étnica do ponto de vista cultural.
Entretanto, existe uma realidade social indelével, que explode na nossa cara, principalmente quando a exclusão, o preconceito e a violência contra os negros atingem níveis absurdos. É o caso do assassinato de João Alberto Silveira de Freitas, espancado até a morte por dois seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre. O crime ocorreu na véspera do dia da morte de Zumbi dos Palmares, cujas comemorações se transformaram em manifestações de protesto em todo o país. Episódios como esse fazem o mito de Zumbi ser mais forte a cada dia, ainda mais se levarmos em conta que o herói de Palmares inspira uma nova elite artística e intelectual negra, que lidera a tomada de consciência sobre o racismo estrutural no Brasil, contra o qual lutou com relativo êxito individual, mas que permanece à espreita em cada esquina de suas vidas.
Fernando Pessôa: Guilherme Boulos, o velho no novo
Seu frescor lembra o PT dos anos 1980, ótimas intenções, nenhum pragmatismo
O jovem candidato à Prefeitura de São Paulo Guilherme Boulos é articulado, se expressa com clareza e aparentemente traz frescor à cidade.Tem uma história bonita. De classe alta, cedo foi viver e conhecer a vida e as dificuldades dos paulistanos carentes. Com interesse, portanto, ouvi a sabatina do jornal O Estado de S. Paulo da semana passada.
Repercutiu muito nas redes sociais a afirmação infeliz de que o problema do déficit da previdência é que a prefeitura não faz concurso. Segundo Boulos, novos servidores públicos contribuiriam para o sistema, reduzindo o déficit. Trata-se de um despropósito: contrata-se um servidor por 100, ele contribui com 20, reduz o déficit da previdência em 20 e eleva o gasto do município em 100!
Boulos quer trocar trabalhadores terceirizados por concursados. Para ele, os terceirizados são mais caros que os concursados. A informação está errada. Há inúmeras evidências de que o salário do servidor público é superior ao do setor privado para as mesmas ocupações.
Há iniciativas cujo custo não convence. Por exemplo, alega que fará unidades habitacionais, por meio de mutirão, por R$ 41 mil cada uma. Não parece possível. Um imóvel deteriorado no centro de São Paulo não sai por menos de R$ 1.500 o m². Também parecem subestimados os R$ 4.600 por ano para uma vaga em creche. Bem como R$ 5.700 para o salário bruto de um médico concursado pela prefeitura.
Também parece subestimada a estimativa de 437 mil passagens de ônibus gratuitas, que considera ida e volta, em cada dia útil, para gestantes, mulheres com criança de colo e estudantes.Os R$ 14 bilhões que separou para o combate à pobreza parecem bem calibrados.Independentemente das estimativas de gasto, várias subestimadas, é na parte da receita que o candidato se perde.
Segundo Boulos, haverá três fontes de receita para financiar esses gastos, que são da ordem, nas suas contas, de R$ 29 bilhões em quatro anos: o caixa da prefeitura, o aumento do investimento e o aumento da eficiência na execução da dívida ativa do município.
Dinheiro em caixa não é receita. O caixa da prefeitura é receita já acontecida e é uma reserva financeira para gastos futuros. Certamente parte está comprometida com contas a pagar que cairão ao longo do tempo. E certamente toda prefeitura precisa de um caixa para fazer frente às oscilações naturais da receita e despesa que ocorrem ao longo do ciclo econômico. Boulos eleito em 2020, se reeleito for em 2024, iniciará seu segundo mandato sem nenhum recurso no caixa?
A segunda fonte de recursos será a normalização do investimento da prefeitura. Segundo o candidato, na gestão Fernando Haddad, a prefeitura investia R$ 20 bilhões por ano, e, na atual, o investimento caiu à metade. Assim a “normalização” do investimento produzirá receita adicional de R$ 10 bilhões em quatro anos.
Não ocorreu ao candidato que a queda do investimento não foi uma decisão política, mas fruto de uma queda generalizada do investimento de todo o setor público brasileiro desde a grande crise de 2014-2016. Vivemos em crise fiscal permanente. Foram a queda da receita e a elevação do gasto obrigatório (principalmente previdência) que produziram a queda do investimento, e não o inverso.
A terceira fonte de receita será o ganho de eficiência na execução da dívida ativa. A hipótese é que as administrações anteriores não quiseram arrecadar mais. Não se esforçaram.O frescor de Boulos lembra o PT dos anos 1980. Ótimas intenções, nenhum pragmatismo e visão meio conspiratória das demais administrações. É a ideia equivocada de que fazer o bem é fácil, e não se faz pois falta vontade política.Samuel Pessôa
*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
Lourival Sant'Anna: Um país sem amigos
Potência média, o Brasil entrou em choque com os EUA e se afastou de China e Europa
Nos últimos dois anos, o governo brasileiro alimentou a crença de que a identificação ideológica e psicológica do presidente Jair Bolsonaro por Donald
Trump trazia vantagens para o Brasil. Os profissionais de política externa advertiam que era um arranjo contraproducente e arriscado. Mas a mistura distraía os recém-chegados à matéria. Agora os ingredientes se separaram e a receita está clara.
A derrota de Trump impôs a Bolsonaro a escolha entre a identificação pessoal e os interesses nacionais. Num lance que só surpreendeu quem não tinha se detido o suficiente sobre os fundamentos de seu poder, Bolsonaro ficou com a identificação pessoal. Sua frase “Quando acabar a saliva tem que ter pólvora” selou a inimizade do Brasil com o futuro governo americano.
Na cúpula do Brics, na quarta-feira – primeiro compromisso de política externa de Bolsonaro depois da eleição de Biden –, o presidente pretendeu emparedar os principais governos europeus, com o desmascaramento dos países que compram madeira brasileira ilegalmente.
Falando em seguida a Xi Jinping, Bolsonaro desmontou ponto por ponto as posições do presidente chinês, colocando-se como defensor da democracia, do unilateralismo e de vacinas seguras. Em resposta, a China retirou da declaração final o apoio a um assento permanente para Brasil, Índia e África do Sul no Conselho de Segurança da ONU. É só o começo.
Os curdos sempre foram conhecidos como “o povo sem amigos”. O Brasil resolveu disputar o título. No sistema internacional, existem dois polos de poder econômico e militar, os EUA e a China, e um espaço intermediário, a Europa. Em duas semanas, o governo brasileiro rompeu com o primeiro e consumou seu afastamento dos outros dois, numa espécie de auto-xeque-mate.
Historicamente, a política externa brasileira se baseou no princípio da não ingerência e do multilateralismo. Isso porque o Brasil não tem o chamado “excedente de poder” para impor unilateralmente sua vontade. Como potência média, o País entendeu que seu lugar ao sol dependia de moderação, confiabilidade e amplitude de suas parcerias. Para isso, investiu na formação de um dos corpos diplomáticos mais respeitados do mundo.
Essa tradição foi rompida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele usou a política externa como forma de manter a adesão da esquerda a seu governo, compensando a traição representada por sua continuação da política econômica por ele pejorativamente classificada de “neoliberal”.
Bolsonaro continua a usar a política externa da mesma forma, para contentar sua base conservadora. Ambos os presidentes têm como alicerce de poder não a representação no Congresso, mas a mobilização de seguidores por meio do culto à personalidade.
Uma das concessões de Bolsonaro a Trump era banir a fabricante de equipamentos chinesa Huawei dos leilões da frequência 5G. Agora, acena com guardar de volta essa carta na manga, como parte do endurecimento com a administração Biden. “Vocês param de falar da Amazônia, e eu bloqueio a Huawei. Fechado?” Não.
Liguei na quinta-feira para um integrante da equipe de política externa de Biden para testar essa jogada. “Estamos sabendo dessa tática”, me disse ele. “Mas ela não convence muita gente em Washington, porque Bolsonaro já desenvolveu um estilo de confronto com a China.”
Além disso, disse o formulador, que trabalhou no governo de Barack Obama nas áreas de defesa, segurança nacional e diplomacia, “o meio ambiente estará entre as três ou cinco prioridades de Biden, como forma de atender à esquerda do Partido Democrata, e ele não pode trocar a Amazônia pela Huawei, por mais que a espionagem também seja importante para os EUA”. Sem consistência, não há credibilidade. A saliva e a pólvora perdem o efeito.
*É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS
Monica de Bolle: O vírus da desinformação
Pessoas seduzidas pelo “like”, validadas pela “curtida”, cheias de segurança pela viralização do que publicam, não param para refletir se aquele tuíte ou post pode ser perigoso no contexto de uma pandemia
Altamente contagioso e letal, o vírus da desinformação chama-se “like” ou “curtida”. Ele circula sem constrangimento nas redes sociais e atinge milhões de pessoas todos os dias. Não quero dizer com isso que as pessoas que apertam o botão da mãozinha, às vezes de forma automática, sem pensar, sejam as principais transmissoras do patógeno. É pior. Pessoas cujo ofício é informar, ou pensar, ou às vezes até ensinar são os verdadeiros vetores de transmissão. Por quê? Seduzidas pelo “like”, validadas pela “curtida”, cheias de segurança pela viralização do que publicam, não param para refletir se aquele tuíte ou post pode ser perigoso no contexto de uma pandemia, de um Brasil prestes a cair de cabeça na chamada segunda onda, de um país governado por mentecaptos negacionistas. Já vi muita gente boa sucumbir ao vírus da desinformação, e isso me causa tristeza profunda. Dói, até.
Desde o início da pandemia defendo a necessidade de aprender um pouco de biologia, imunologia, virologia para dar conta do que se passa ao nosso redor.
Desde o início da pandemia tenho afirmado que esse conhecimento é importante em especial para aqueles que trabalham diretamente com a informação, tais como jornalistas, comentaristas, colunistas, professores e pesquisadores que participam do debate público, ou qualquer um que exerça ofício que alcance o público geral. Sem algum conhecimento de biologia, é impossível fazer o serviço mais importante de utilidade pública, depois, é claro, daquele prestado pelos profissionais de saúde: passar informação confiável e acessível para que as pessoas se orientem e se movimentem com consciência e segurança. No Brasil, isso implica afastar teorias conspiratórias e fantasiosas de um governo que oscila entre a demência e a mentira. Infelizmente, também requer desafiar a soberania das curtidas.
Pelas curtidas, propaga-se desinformação sobre as vacinas. Por exemplo: houve quem afirmasse que a vacina do laboratório Sinovac, a CoronaVac, com ensaios clínicos no Brasil, demonstrou eficácia de 97%, ou seja, uma eficácia maior do que as vacinas genéticas da Pfizer e da Moderna. Algumas dessas pessoas corrigiram o erro, mas não se deram ao trabalho de explicar as origens do equívoco. Neste momento perigoso para o enfrentamento da pandemia, com um governo que despreza as ciências e pessoas em intensa campanha antivacinação, a confusão que esse tipo de equívoco gera é de irresponsabilidade indescritível. Em meu canal no YouTube fiz dois vídeos tentando desfazer parte da confusão. E vou explicar um pouco mais aqui.
O laboratório Sinovac não divulgou os resultados de eficácia da vacina, pois ela ainda não está nesse estágio, ao contrário da vacina da Pfizer e a da Moderna. O que o laboratório publicou foi a imunogenicidade da CoronaVac, isto é, a capacidade da vacina de suscitar uma resposta imune nos ensaios clínicos de Fase I/II. Noventa e sete por cento dos voluntários mostraram resposta, mas não se sabe se essa resposta é protetora contra a doença, e é essa evidência que buscam os ensaios da fase seguinte, os chamados ensaios de Fase III. Uma vez colhidos os dados sobre imunogenicidade, os ensaios de Fase III tratam de averiguar se a vacina é ou não eficaz.
Como? Voluntários são recrutados, protocolos são elaborados e grupos randomizados recebem a vacina ou o placebo usando o procedimento chamado duplo cego, no qual tanto os cientistas envolvidos quanto os participantes desconhecem se foram vacinados ou inoculados com placebo. Passado um tempo, algumas dessas pessoas vão se infectar no decorrer de suas atividades normais. Quando esse número é alto o suficiente, abre-se o duplo cego para avaliar quem se infectou mais. Caso mais pessoas do grupo placebo tenham se infectado do que as do grupo de vacinados, há eficácia. Ilustrando com números: se entre 100 pessoas infectadas 95 forem do grupo placebo e 5 do grupo de vacinados, a vacina tem eficácia de 95%, ou seja, ela protege 95% dos vacinados considerando-se uma margem estatística de confiança adequada.
A vacina eficaz é uma espécie de treino. Ela ensina as defesas de seu corpo — seu sistema imune — a reagir caso encontre o vírus causador da Covid-19. Ao fazer isso, a vacina gera proteção contra a doença, uma doença que pode matar, que pode deixar sequelas gravíssimas em pacientes “recuperados”. Vale a pena trocar essa valiosa esperança por uma curtida efêmera em rede social? Por milhares de seguidores desconhecidos que muitas vezes aplaudem sem saber o que estão aplaudindo? Vale a pena? Vale?
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Época: O horizonte da extrama-direita após o baque das eleições municipais
Como o bolsonarismo se reorganizará depois do fracasso nas urnas de 2020
Natália Portinari e Naira Trindade, de Brasília, e Gustavo Schmitt e Guilherme Caetano, Revista Época
O sábado 14, um dia antes do primeiro turno das eleições municipais, foi quando o presidente Jair Bolsonaro caiu em si. Apesar de ter passado a última semana fazendo lives em prol dos candidatos que apoiaria no dia seguinte, já sabia que o desfecho que se desenhava não era promissor. Suas principais apostas, Celso Russomanno, em São Paulo, e Marcelo Crivella, no Rio de Janeiro, amargavam números desanimadores, segundo as últimas pesquisas. Sem muita modéstia, atrelou o mau resultado dos aliados a sua própria ausência da corrida eleitoral — já que suas lives se tornaram frequentes apenas às vésperas do pleito. Mas reconheceu estar preocupado mesmo com outra coisa: o desempenho de seu filho Carlos Bolsonaro, candidato à reeleição para vereador no Rio de Janeiro.
Não se tratava, obviamente, do medo de que o zero dois não se elegesse. Carlos tinha sido o vereador com mais votos em 2016, e sua recondução ao cargo estava assegurada. O que deixava o presidente tenso era a possibilidade de sua votação ser abaixo do esperado. Bolsonaro atingiu em setembro o maior índice de aprovação numa pesquisa do Ibope desde que assumiu — 40% —, mas o respaldo dos eleitores ao filho serviria como um termômetro atualizado da popularidade do pai no reduto eleitoral da família. Abertas as urnas, ficou claro que os temores do presidente tinham, sim, fundamento. Carlos, que o acompanhou em carro aberto no dia da posse, acabou saindo menor do que entrou na campanha municipal. Em 2016, obteve 106 mil votos. Neste ano, não passou de 71 mil, uma queda de 33%. E, de quebra, o filho perdeu o posto de vereador mais votado da cidade para Tarcísio Motta, do PSOL.
Esse foi o pior recado do pleito, mas não o único. Russomanno, que contou com o apoio expresso do presidente, largou na frente nas pesquisas. No começo da campanha, isso encheu de esperança o Palácio do Planalto, que anseia fincar raízes no reduto eleitoral de seu adversário, João Doria, governador de São Paulo. Na tarde nublada de 3 de outubro, na Zona Sul de São Paulo, após um evento de campanha de Russomanno, Fabio Wajngarten, secretário executivo da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), era só otimismo. A bordo de um jipe Mercedes preto, disse a ÉPOCA, sorridente: “Ele (Russomanno) já está eleito”. E prosseguiu em sua análise: “De um lado, a esquerda está acabada por causa da Lava Jato. De outro, tem o PSDB desgastado em São Paulo. Ninguém aguenta mais. Foi assim em 2018”, apostou o secretário. Russomanno amargou o quarto lugar, com apenas 560 mil votos (10,5% do total), enquanto o adversário do tucano Bruno Covas no segundo turno será Guilherme Boulos, do PSOL — cenário que configura dupla derrota para o presidente, que há dois anos venceu na capital paulista com 60% dos votos.
Em todo o país, dos 44 candidatos que ganharam o aval do presidente, apenas nove se elegeram. Entre esses poucos sortudos não estão parentes de sobrenomes considerados ilustres no bolsonarismo, como o irmão da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP). Ela tem 1 milhão de seguidores no Twitter e 2,2 milhões no Facebook. Ele atraiu apenas 12 mil votos, abaixo da linha de corte para conseguir uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo. O pai de Zambelli, candidato a vice-prefeito em Mairiporã, no interior paulista, tampouco prosperou. Edson Salomão, líder do Movimento Conservador e aliado do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o zero três, ficou de fora da Câmara de Vereadores de São Paulo. No Rio de Janeiro, Rogéria Bolsonaro, ex-mulher do presidente e mãe de seus três filhos mais velhos, não foi eleita, apesar do sobrenome e do empenho, principalmente de Carlos.
Antes de dormir, no dia 15, Bolsonaro tentou minimizar a contagem de mortos e feridos. Escreveu em sua conta no Twitter que sua “ajuda a alguns poucos candidatos a prefeito resumiu-se a 4 lives num total de 3 horas”, que a esquerda saiu derrotada e que a “onda conservadora chegou em 2018 para ficar”. Dois dias depois, ao se reunir com alguns parlamentares empenhados na criação de seu (ainda inexistente) partido, o Aliança pelo Brasil, compartilhou uma análise mais realista sobre o pleito. Para o presidente, a direita foi prejudicada em razão da pulverização partidária: “Quem saiu ganhando foi o pessoal do (Luciano) Huck”, vaticinou. A preocupação exposta naquela conversa não demorou a migrar para dentro do grupo de WhatsApp do Aliança pelo Brasil, onde deputados, senadores, ministros e integrantes do governo Bolsonaro debatem a criação do novo partido.
O sentimento geral, segundo um membro do grupo relatou a ÉPOCA, foi de um “choque de realidade” diante do que a cúpula da legenda reconhece ser uma derrota da extrema-direita. Sem um partido que abarcasse toda a direita radical, seus candidatos haviam ficado dispersos por várias siglas nas eleições municipais. “A direita bolsonarista aprendeu uma lição nesta eleição, a de que existe um eleitor de direita não necessariamente bolsonarista”, disse Alexandre Borges, analista político e proveniente de antigos círculos de estudo de Olavo de Carvalho. “É uma descoberta dura para o bolsonarismo, que se achava dono desse campo político.”
Entre os que aproveitaram o fraco desempenho dos aliados do Planalto nas urnas para criticar o presidente, ninguém se compara aos que o ajudaram a se eleger em 2018 e depois romperam. “O grande derrotado dessas eleições é o bolsonarismo. O presidente virou o Mick Jagger. Ele apoiava alguém e o cara morria (nas pesquisas) no dia seguinte”, disse o Major Olimpio, senador do PSL por São Paulo, referindo-se à fama de pé-frio do vocalista dos Rolling Stones. O senador defende um “expurgo” de bolsonaristas do PSL e cita a deputada Zambelli como alvo. “A direita, na verdade, por princípio, respeita o indivíduo e a individualidade. O autoritarismo não convive com uma filosofia direitista. A lógica bolsonarista é muito mais próxima de Stálin, que perseguiu seus principais apoiadores”, disse a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), convidada para ser a vice na chapa de Bolsonaro em 2018 e hoje uma feroz crítica. Mesmo dentro do bolsonarismo não faltou virulência.
Parafraseando a máxima do escritor russo Tolstói, quando vencem, todos os grupos políticos se parecem, mas, quando perdem, cada um perde a sua maneira. Isso ficou evidente após a eleição. Os apoiadores do presidente deram início a um processo de busca de causas e explicações com características bem bolsonaristas. Não faltaram dissimulações e uma facção apontando o dedo contra a outra. O presidente logo engatou uma segunda marcha e passou a defender a interlocutores que o pleito municipal não serve como previsão do que ocorrerá na eleição presidencial de 2022. Mas a tentativa de baixar a temperatura não evitou uma lavagem de roupa suja e o fogo amigo.
Mateus Colombo Mendes, diretor do Departamento de Conteúdo e Gestão de Canais Digitais da Secom, escreveu uma longa análise e desabafo em sua rede social. “Chega do pensamento mágico de confiar apenas na imagem do presidente e de se ficar sempre esperando que o presidente resolva tudo sozinho, enquanto o restante fica resmungando nas redes, cada um na sua.” Filipe Martins, assessor especial da Presidência, compartilhou a postagem, logo depois de fazer sua própria reflexão, expondo indiretamente seu chefe. “Muitos se perguntam por que candidatos apoiados por cabos eleitorais de peso foram derrotados. A resposta é simples: perderam porque eleição municipal é base, é construção, não é improviso. Não adianta chegar às vésperas da eleição e dar carteirada nem tentar levar no grito”, escreveu.
O guru de Martins e do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, aproveitou o momento de fragilidade para endurecer as críticas aos alvos de sempre: os militares, que ele acredita terem um projeto próprio de poder que não inclui necessariamente Bolsonaro e o núcleo ideológico de seu governo. “O péssimo desempenho dos bolsonaristas na eleição não tem mistério nenhum. Ludibriado pela conversa mole de generais-melancias, o presidente confiou demais no sucesso inevitável da sua liderança pessoal, sem perceber que ela não passava, precisamente, disso: uma liderança pessoal sem respaldo militante e incapaz, por isso, de transmitir seu prestígio a qualquer aliado.” “Melancia”, no vocabulário da direita extremada é sinônimo de quem é vermelho (comunista) por dentro.
Para a fúria ainda maior dos mais radicais da extrema-direita, Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo e, aparentemente, um dos “melancias” na visão de Carvalho, foi às redes comemorar o desempenho do centrão nas eleições. Ramos disse que o PT foi mal e frisou que PSD, PP, DEM e MDB vão governar mais prefeituras do que o partido do ex-presidente Lula. Para os olavistas, o centrão é o problema, não a solução. Para a ala mais pragmática do governo, o caminho após o fracasso eleitoral é mais, e não menos, centrão. A aposta é que, nas eleições presidenciais de 2022, a base de sustentação da campanha de Bolsonaro será formada por partidos tradicionais, os mesmos que o apoiam hoje no Congresso.
Como num roteiro de série de TV, os principais atores do bolsonarismo vivem um drama que envolve passado e futuro. Muitos apoiadores não acreditam que Bolsonaro conseguirá se firmar como um candidato competitivo à reeleição seguindo a fórmula adotada em 2018, com foco quase que exclusivo nas redes sociais. Para os defensores dessa tese, as eleições municipais deram algumas evidências favoráveis ao mostrar que forças de diferentes pontos do espectro político acordaram para a necessidade de ocupar espaços nas redes sociais. WhatsApp, Facebook, Instagram e Twitter já não são uma raia exclusiva do bolsonarismo. Isso aconteceu, por exemplo, na campanha para a prefeitura de São Paulo. Trabalhar nas redes sociais foi o que fizeram tanto Guilherme Boulos como Arthur do Val, o Mamãe Falei, ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL), que atraiu 10% dos votos. “Nós trabalhamos bem com a rede. O PT apanhou e perdeu espaço para o PSOL porque ainda está na lógica ‘meio acadêmico, sindicato e Igreja’. O PSOL fez uma campanha virtual boa”, reconheceu o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), um dos fundadores do MBL.
Enquanto o campo virtual tem sido povoado por diferentes nuances partidárias, o mundo real ainda carece de ser compreendido pelos políticos da nova direita advinda do bolsonarismo — fraqueza que muitos enxergam como a principal ameaça à continuidade de um projeto conservador no Brasil. Estrategistas políticos que trabalharam em campanhas de candidatos ditos conservadores nestas eleições relataram a ÉPOCA as dificuldades em convencer seus clientes da importância de articulação política e dos atos de rua. “Eu disse a eles: ‘Saiam da internet’. Mas eles não entendiam. Diziam que o Jair Bolsonaro tinha sido eleito pela força das redes sociais e que em 2020 seria assim de novo. Diziam que não precisavam de coligação porque o PSL não havia feito isso em 2018”, afirmou Rodrigo Morais, que trabalhou no governo de transição de Bolsonaro e hoje tem uma consultoria política.
No entorno do presidente, é ruidoso o grupo que, ao contrário do general Ramos, defende que o bolsonarismo precisa de um partido para chamar de seu. Daí as tentativas, até agora infrutíferas, de criar o Aliança pelo Brasil. Bolsonaro nunca foi dirigente partidário, tampouco seus filhos. A dinâmica maçante da formação de uma sigla e seus diretórios é o que garante musculatura para que candidatos disputem cargos a cada dois anos. Sem isso, não surpreende que o presidente não tenha conseguido engajar eleitores para o pleito municipal. A burocracia partidária e seus dissabores — incluindo divergências políticas — foi o que ajudou a azedar a relação de Bolsonaro com sua legenda anterior, o PSL. Mas quem apoia o presidente hoje diz que, quando ele tiver seu próprio partido, tudo será diferente. “A eleição municipal deixa claro a desvantagem da direita em relação à esquerda, já que falta estrutura partidária. Fora isso, a esquerda tem ONGs, centro de estudo e de formação de pensamento. A direita também tem de ter isso”, disse o empresário Otávio Fakhoury, aliado de primeira hora de Bolsonaro e hoje investigado nos inquéritos das fake news e da promoção de atos não democráticos.
Um ano depois de sua concepção, o plano de fundar o Aliança não conseguiu reunir nem 10% das 492 mil assinaturas necessárias para o registro da legenda junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). E as trocas de farpas entre bolsonaristas durante todo o processo denota que a concordância ideológica não se converte em harmonia na hora de dividir o poder. Integrantes do grupo rivalizam entre si por protagonismo e sofrem com uma ausência de definição, da parte de Bolsonaro, de quem é o verdadeiro responsável pelo Aliança. Quem vem assumindo as rédeas do projeto é o advogado Luis Felipe Belmonte, que coordenou viagens e eventos em prol da sigla nos últimos meses. Mas o futuro do Aliança é ainda incerto. Parte da base de apoiadores nos estados se voltou contra os organizadores, como Belmonte e os também advogados Karina Kufa e Admar Gonzaga. As brigas dificultam ainda mais a criação da legenda e a coleta de assinaturas. Oficialmente, porém, o grupo atribui à pandemia e às eleições municipais a demora do registro dos apoiamentos no TSE.
Depois dos desentendimentos passados com Luciano Bivar, presidente do PSL, o presidente parece estar reticente diante da possibilidade de “entregar” seu partido às mãos de alguém que não seja um de seus filhos. Bolsonaro também teme que o gesto de alavancar o Aliança desagrade ao centrão, que hoje é a base de seu governo, sobretudo diante da possibilidade, cada vez mais concreta, de que ele se filie a um partido tradicional para concorrer em 2022, como o PP, o PL e Republicanos, que é onde estão abrigados seus filhos Carlos e Flávio Bolsonaro. Sem a onda antipolítica alimentada pela Operação Lava Jato e com poder de fogo das redes sociais reduzido, o caminho para a direita bolsonarista a partir de 2021 é incerto porque requer diálogo — item escasso por aquelas bandas.
George Gurgel de Oliveira: As eleições municipais, as novas representações políticas e os desafios da democracia
As eleições municipais colocaram em disputa as concepções de governar e de se relacionar de cada um de nós e da Sociedade em geral, desafiando a maneira tradicional de fazer política, antes e durante a pandemia, e a nossa maneira de ser e estar em Sociedade.
Os resultados do primeiro turno das eleições municipais foram construídos nas Redes Sociais, nos Meios de Comunicação, nos Movimentos Sociais e Suprapartidários da Sociedade Civil, resultando na eleição de novas lideranças mais comprometidas com as agendas sociais, culturais, econômicas , ambientais e comportamentais da Cidadania.
Segundo os resultados da pesquisa do Instituto IDEIA, em parceria com a Revista Exame, realizada recentemente, no período de 16 a 19 de novembro, 27% dos brasileiros ficaram indiferentes aos resultados das eleições municipais realizadas no último 15 de novembro. Esta indiferença está próxima ao nível de abstenção recorde de 23% registrado pelo Tribunal Superior Eleitoral, refletindo no nível de satisfação do eleitorado: os satisfeitos com a eleição somam apenas 41% e o nível de insatisfação registrado é de 31%.
Quais são as causas e as consequências desta indiferença e não participação da Cidadania no processo político-eleitoral em curso, sendo o voto obrigatório?
Esta análise deve ser feita, para melhor conhecimento da nossa realidade política e social. São questões a serem consideradas no caminho de construção de uma alternativa política democrática para enfrentar os desafios eleitorais de 2022.
Ao mesmo tempo, nesta eleição municipal houve um maior protagonismo dos movimentos sociais em defesa de uma efetiva participação política das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos LGBT+, nas questões sociais e ambientais em geral, traduzido em uma renovação das Câmaras Legislativas e Prefeituras dos médios e grandes municípios, trazendo a voz rouca dos excluídos da Sociedade para o exercício do poder municipal. Ainda, neste cenário, há que considerar a eleição de lideranças religiosas, na maioria evangélicas, o que já vem ocorrendo no Brasil, há muitos anos.
Portanto, a Sociedade colocou para os seus representantes a urgência de superação dos reais problemas do dia a dia da população. Os(as) prefeitos(as) e vereadores(as) eleitos(as) vão enfrentar, desde o primeiro dia dos seus mandatos, a difícil realidade de uma parcela majoritária da população dos municípios brasileiros, que vive em condições precárias de moradia, segurança, educação, saúde, saneamento e mobilidade urbana.
Assim, estes(as) vereadores(as) e prefeitos(as) eleitos(as) devem estar comprometidos(as) com o enfrentamento sistemático desses graves problemas sociais, econômicos e ambientais, agravados com a pandemia que deverá se estender pelo ano de 2021.
A maneira de governar e de se relacionar com a Sociedade coloca-se, cada vez mais, como a centralidade nas relações entre os governantes e os governados. Devendo se refletir no processo de construção de novos conteúdos de uma governança que se quer democrática para a realização das mudanças necessárias durante e pós-pandemia, em cada município brasileiro.
Os resultados eleitorais, no primeiro turno, apontam para o fortalecimento do centro político. A alta popularidade do presidente Bolsonaro não lhe trouxe os resultados eleitorais almejados. As populações dos municípios sinalizaram que a polarização da Sociedade não resolve as dificuldades cotidianas da Cidadania, muitas vezes, agrava, quando trazemos para a realidade municipal as polarizações políticas nacionais, que não ajudam a enfrentar os reais problemas da Sociedade.
Naturalmente, os resultados das eleições municipais não interferem diretamente nas eleições de 2022. No entanto, o surgimento de novas lideranças municipais e regionais podem mudar a composição atual das bancadas estaduais e federais, objeto de uma maior preocupação da maioria dos partidos, frente à nova legislação eleitoral: a eleição de uma numerosa bancada federal em 2022 vai ser determinante na existência de cada partido que queira continuar a ter um protagonismo na política nacional .
Assim, a população falou nas urnas. Quer mudar, com a urgência devida, a nossa trágica realidade social, desnudada com a pandemia.
O Brasil bipolar, dos extremos, não conseguiu e nem consegue enfrentar e construir soluções para os complexos desafios da realidade brasileira, nem a nível municipal, muito menos em escala nacional. O segundo turno deve confirmar esta tendência nas urnas. Os desafios econômicos, sociais e ambientais, históricos e atuais da sociedade brasileira devem ser enfrentados de uma maneira propositiva, ampliando a capacidade de diálogo e de construção de pactos políticos e sociais que avance e consolide a democracia brasileira, no caminho de transformação da nossa injusta realidade política, econômica e social.
Neste contexto, todos(as) estão desafiados(as) a ter uma efetiva participação na construção e na implementação de políticas públicas municipais, colaborando com o processo de avaliação permanente destas políticas, na busca de atender as demandas municipais, em sintonia com as outras políticas públicas regionais e nacionais, no caminho da sustentabilidade econômica, social e ambiental de cada município brasileiro.
Os(As) vereadores(as) e prefeitos(as) eleitos(as) estão desafiados(as) a construir novas relações de Governança entre o Estado, o Mercado e a Sociedade em geral. As atuais relações não atendem às demandas da maioria da população dos municípios brasileiros.
A criação de mecanismos institucionais de acompanhar e avaliar as relações entre o Executivo, o Legislativo e a Sociedade municipal, desafia a Cidadania e o poder público à construção de novas relações entre os atores políticos, econômicos e sociais do município, na busca da sustentabilidade econômica, social e ambiental da Sociedade.
Considerando sempre a necessidade de uma visão sistêmica no processo de construção das políticas públicas em geral. Colocando-se como imperativa a escolha de prioridades, através de dialogo permanente entre governantes e governados, que garantam a implementação de políticas públicas voltadas para a sustentabilidade municipal, articuladas às políticas regionais, sob responsabilidade estadual e federal, construindo pactos de cooperação entre o Estado, o Mercado e a Sociedade Civil, através de redes regionais, nacionais e internacionais, com foco na melhoria do bem-estar da população.
Estes são os nossos dilemas a serem superados para o avanço da democracia brasileira, com a inclusão desta maioria excluída da população no processo de construção de políticas públicas sustentáveis nas áreas de educação, moradia, saúde, saneamento básico, segurança, mobilidade, trabalho e renda, como condições elementares para a dignidade da vida social em cada município brasileiro.
Portanto, o exercício pleno da Cidadania, com a participação proativa da Sociedade, é a práxis que vai criar as condições para uma efetiva transformação da realidade política, econômica e social de cada município e de toda a Sociedade brasileira.
São os desafios permanentes dos prefeitos(as), dos vereadores(as) e da Cidadania brasileira.
*George Gurgel de Oliveira, professor da Universidade Federal da Bahia e da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade
Dorrit Harazim: O Brasil tem caráter?
De início, Carrefour decretou o fechamento da unidade por um dia em respeito ao morto. Não parece ter entendido o tamanho do estrago
"Quando crimes se empilham, eles se tornam invisíveis", escreveu Bertolt Brecht às vésperas da Segunda Guerra. O dramaturgo alemão referia-se a crimes do Terceiro Reich que apenas pressentia. A extensão do horror só ficou explicitada quando os campos de concentração foram escancarados. E fotografados. Naquele tempo, 75 anos atrás, o telefone celular ainda estava longe de fazer parte da mão humana. Hoje tornou-se extensão do nosso existir, e a realidade parece só existir se houver seu comprovante instantâneo, de preferência com imagem em movimento. Um grande salto de engenhosidade, progresso tecnológico, totem de um futuro sem fronteiras. Ficou faltando aprimorar o essencial: o próprio bípede humano, ainda tão imperfeito e cego.
O assassinato do cidadão negro João Alberto Silveira Freitas na garagem de um supermercado Carrefour gaúcho, à noite, tinha tudo para permanecer obscurecido. Só deixou de depender de versões dissonantes, querelas circunstanciais ou imprecisas, porque alguém gravou a cena esclarecendo a natureza do crime pelo celular. Assistimos assim a um assassinato a sangue quente, primitivo, sem a intermediação sequer de uma arma. O homem negro já subjugado foi espancado na cabeça e rosto até lhe faltar vida. Sua morte teve por testemunha a esposa impedida de socorrê-lo, uma penca de seguranças e funcionários do Carrefour, além da plateia global que foi se inteirando do fato. No chão da garagem respingada de sangue, sobrou de João Alberto um solitário chinelo de dedo.
Não foi, portanto, um crime invisível. Ou será que foi? Na pergunta está embutido o horror maior: apesar de saberem que estavam sendo filmados, os dois matadores profissionais (um PM e um segurança, ambos brancos) não interromperam o ato. “Quando crimes se empilham, eles se tornam invisíveis”, repetiria Brecht sobre o crime contra a raça negra que, de tanto sustentar a construção do Brasil, se tornou invisível — mesmo quando visível.
O Brasil acabou com a escravidão e adentrou a pós-abolição sem criar leis claramente segregacionistas. Mas encontrou formas igualmente perversas de lidar com os negros, contou em entrevista à BBC, anos atrás, a historiadora Luciana Brito, da Universidade Federal do Recôncavo Baiano. Segundo a professora, “a educação para sobreviver numa sociedade racista a partir do não dito tornou mais difícil para pessoas negras se organizarem em torno de um inimigo visível… Você entra numa loja e não é expulso, mas a vendedora a ignora. Quem não a ignora é o segurança. Até o policial negro é treinado pelo Estado para achar que todas as pessoas que se parecem com ele são criminosas. Quando está de farda, ele perde a identidade racial. Ganha uma espécie de selo de qualidade. Vira o ‘negro de bem’ ”.
As primeiras reações do Brasil oficial que despertou na sexta feira para a morte do soldador João Alberto foram as esperadas. Era o Dia da Consciência Negra, e o presidente da República estreou logo cedo elogiando Pelé. Silenciou sobre o crime que, no final da tarde, levaria o Brasil real às ruas. A Brigada Militar informou que o policial assassino é apenas “PM temporário” e que a corporação é “uma instituição dedicada à proteção e à segurança de toda a sociedade”; para Roberta Bertoldo, delegada do caso no 2º Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) de Porto Alegre, “não há indícios de racismo até o momento”. Para o vice Hamilton Mourão, “no Brasil, não existe racismo”.
O Carrefour se manifestou já de madrugada, até porque não poderia continuar dormindo. Tem no currículo, em dobradinha com os serviços de segurança que contrata, o espancamento de um deficiente físico e de outro cliente negro suspeito de estar assaltando o próprio carro, além de controlar a ida ao banheiro de funcionárias, e de ter mantido encoberto por guarda-sóis e caixotes, durante quatro horas, o corpo de um promotor que morrera numa unidade do Recife. Em nota, a empresa garantiu adotar “as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos neste ato criminoso” e, de início, decretou o fechamento da unidade de Porto Alegre por um dia em respeito ao morto. Não parece ter entendido o tamanho do estrago.
O repórter Matheus Prado, do CNN Brasil Business, ouviu dois analistas do mercado, e nenhum deles acreditava que o caso teria impacto duradouro no preço das ações do Carrefour. “Uma revolta a curto prazo, talvez”, resumiu um deles, da Guide. Bom teste para o Brasil.
Caráter, ou a disposição de aceitar responsabilidade pela própria vida, é a fonte da autoestima, escreveu Joan Didion num de seus notáveis ensaios. Se o conceito for aplicado também a países e suas sociedades, fica a pergunta: o Brasil tem caráter?
Almir Pazzianotto Pinto: Constituição – realidade e ficção
Demagogia em conluio com utopia foi o erro de deputados e senadores eleitos em 1986
É impossível fazer vista grossa para a crise que assola o País e a responsabilidade que recai sobre a Constituição da República.
Exceto raros ex-integrantes da Assembleia Nacional Constituinte, é opinião generalizada que a oitava Carta Magna teve o prazo de validade ultrapassado. Não porque pequeno grupo conspire para derrubá-la. A morte virá por falência múltipla dos órgãos, decorrente de septicemia.
Poderoso argumento utilizado contra a convocação de nova constituinte consiste no receio da perda de direitos sociais, relacionados no Capítulo II do Título II, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais.
Afinal, o que é a Constituição, também denominada Lei Fundamental? Os especialistas na matéria não costumam pôr-se de acordo acerca da correta definição. Pinto Ferreira, após citar uma dezena, define-a como “conjunto de normas convencionais ou jurídicas que, repousando na estrutura econômico-social e ideológica da sociedade, determina de uma maneira fundamental e permanente o ordenamento do Estado” (Da Constituição, Ed. José Konfino, 1956).
Poderia ter dito apenas “conjunto de normas fundamentais que regem a organização do Estado”.
As definições convergem, todavia, na afirmação de que compete à Constituição determinar regras fundamentais. Tudo o que não for fundamental pertence à esfera da legislação ordinária. Assim o dizia o artigo 178 da longeva Carta Imperial de 1824, que vigorou por 65 anos e recebeu emenda uma única vez: “É só Constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições dos respectivos Poderes Políticos e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o que não for constitucional pode ser alterado, sem as formalidades requeridas, pelas Legislaturas ordinárias”. A Constituição republicana de 1891 foi a que mais se aproximou do salutar princípio. Daí ter durado 40 anos, com poucas mudanças, feitas de uma só vez, em 3/9/1926.
Para ser verdadeira e não descambar para o enganoso terreno da utopia, a Lei Fundamental deve refletir a realidade e não oferecer mais do que a infraestrutura econômica consegue proporcionar. Como diria Oliveira Vianna, o traço dominante das últimas constituintes consiste na fatídica crença no poder mágico das palavras. Da Constituição de 1988 recolho como exemplos de ilusionismo o elenco dos direitos sociais, a definição do salário mínimo, a proteção contra a automação na forma da lei, as garantias relativas à saúde, à educação, à segurança, ao emprego, ao trabalho (artigos 6.º e 7.º, IV e XXVII, 144, 170, 196, 205).
Os direitos sociais relacionados nos 34 incisos do artigo 7.º oferecem frágil cobertura a minoritário mercado formal, onde se encontram os que têm carteira profissional anotada. Para a maioria desempregada, subocupada ou desalentada prevalece a lei da oferta e da procura, agravada pela crise aprofundada pela pandemia, cuja extensão o presidente Jair Bolsonaro insiste em menosprezar. São 14 milhões de desempregados, 9 milhões sem carteira profissional assinada, 21,4 milhões de autônomos, 51,7 milhões abaixo da pobreza, vítimas das fantasias dos constituintes de 1988.
Direitos fundamentais, inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis são a igualdade perante a lei, a liberdade de imprensa e de opinião, a dignidade, a cidadania, a pluralidade política, o voto universal e secreto, o acesso ao trabalho e à livre-iniciativa. Não basta, para usufruí-los, que se encontrem escritos e encadernados. A Constituição dos Estados Unidos da América, aprovada em 17/9/1789 por 55 delegados representantes de 12 Estados, tem sete artigos, emendados 20 vezes. Não faz referência a direitos sociais, que só se concretizam quando o Estado é democrático e a economia, vigorosa, funciona bem.
Para que a admiremos a Constituição deve ser conhecida e manter vínculos de fidelidade com o povo. Eruditos comentários redigidos por acadêmicos e professores estão fora do alcance do grosso da população. São ótimos para a venda de livros que dissertam sobre mundo irreal. O Idealismo da Constituição, livro de Oliveira Vianna, talvez o único que analisou o fracasso da Constituição de 1934, está fora de circulação. Parafraseando o autor, a Constituição de 1988 falhou por instituir relações conflitantes entre idealismo, utopia e realidade nacional.
Fonte do direito positivo ordinário é a vontade revelada pelo Estado. Fonte do direito constitucional, entretanto, é a vontade revelada pelo povo por meio dos seus representantes, salvo quando não dimana, como em 1964, da ruptura da ordem jurídica provocada por golpe militar. Fazer da demagogia, em conluio com forte dose de utopia, fonte do Direito Fundamental foi o erro em que incidiram deputados e senadores eleitos em 1986, investidos erroneamente de poder constitucional.
Estamos a caminho da nona Constituição. Se não encontrarmos a fórmula política consensual para redigi-la e promulgá-la, a letal combinação entre crise econômica e crise social poderá deflagrar crise institucional cujo desfecho virá, como em 1964, pela violência das armas.
*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
Rolf Kuntz: O apagão das canetas e a perversão da política
O governo tem de gastar, diz o seu líder, para ter seus projetos aprovados
Votos custam dinheiro, muito dinheiro, no Congresso Nacional. Por isso o governo precisa gastar para ampliar sua base e conseguir aprovação de projetos. Quem diz isso é o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR). Diz em público, e suas falas têm sido noticiadas. Na terça-feira ele acusou órgãos de controle de causar um “apagão das canetas”, impedindo a liberação de verbas para obras de interesse de parlamentares. A discussão continuou e na quinta-feira já se falava, em Brasília, de negociações com o Tribunal de Contas da União. A ideia era obter autorização para empenhar recursos, neste fim de ano, para investimentos em 2021. Tudo foi dito abertamente, como se fosse normal e saudável, numa democracia, abrir o cofre em troca de apoio parlamentar.
Nenhum sinal de hipocrisia, até aí. A propósito, a hipocrisia, repetia-se em outros tempos, lembrando La Rochefoucauld, é a “homenagem que o vício presta à virtude”. Pressupõe-se no hipócrita, portanto, alguma noção de virtude, assim como algum respeito aos costumes valorizados numa sociedade. A fala aberta, sem subterfúgios, seria um sinal ainda mais certo da reverência àqueles valores. Será possível, no entanto, sustentar esse pressuposto no caso dos protestos contra o “apagão das canetas”? É duvidoso. Os envolvidos podem ter simplesmente usado em público, sem autocensura, a linguagem própria do seu meio e dos seus costumes.
O apagão, nesse caso, foi luminoso. Tornou mais clara, até ensolarada, a natureza da relação entre o Executivo chefiado pelo presidente Jair Bolsonaro e a sua, por assim dizer, “base de apoio”. Esta expressão é imprópria, embora usada no dia a dia, e também isso pode ter ficado mais visível para os menos atentos. Não se trata, de fato, de uma base, mas de um reservatório de votos, uma fonte acessível de acordo com as condições e as cotações de cada momento.
Outras práticas, diferentes da negociação de votos por verbas, são mais frequentes em outras democracias, especialmente naquelas onde os partidos têm cores mais definidas. Há acordos de conveniência, assim como conchavos e jogadas eleitorais, mas é possível, em geral, associar a votação a princípios partidários e ideológicos. Embora avariado, o Partido Republicano ainda é reconhecível. Nem o presidente Donald Trump conseguiu desfigurá-lo totalmente e convertê-lo em instrumento de seu populismo nacionalista, neofascista e, sobretudo, personalista.
Sem censura, a fala aberta revelou também, no episódio do apagão das canetas, a inversão de noções fundamentais da vida política. Segundo o líder Ricardo Barros, “o deputado quer uma obra”, isto é, quer “mostrar serviço a seus eleitores”. O governo, portanto, deve entregar o benefício ao congressista, para deixá-lo satisfeito. “Precisamos estabelecer a relação republicana que precisa existir entre parlamentar e governo”, concluiu o líder, segundo relato do Estadão.
Esse é um conceito muito particular de republicanismo. “Relação republicana” designa, em sentido próprio, algo muito diferente de um intercâmbio desse tipo, isto é, da troca de um benefício político-eleitoral, pago com dinheiro do Tesouro, por um voto a favor de um projeto.
A noção de república, em sentido próprio, remete a uma ordem comum, sujeita a um poder soberano (atributo do Estado) e caracterizada por leis conhecidas e formuladas segundo processos legitimados. Essas leis estabelecem, entre outros aspectos da vida coletiva, a distinção entre o público e o privado. Essa distinção desaparece quando meios públicos são usados para fins particulares.
Meios públicos podem ser dinheiro, empresas, instalações estatais, recursos humanos de qualquer escalão ou ainda processos e órgãos típicos de Estado. Exemplo: se um presidente, por hipótese, convocar dois altos funcionários para discutir problemas legais de um de seus filhos, meios públicos serão usados para fins privados. Esse uso é estranho às funções e aos poderes presidenciais e nada tem, portanto, de republicano.
A lei submete o Orçamento ao exame e à aprovação do Congresso. Congressistas podem apresentar emendas de interesse de suas bases eleitorais. A lei regula as condições de execução dessas emendas. Mas nenhuma lei confere caráter republicano à negociação de vantagens privadas com base nesse ou em qualquer outro uso de bens públicos.
Em quase todo o mundo o exercício do governo envolve negociações, articulações e trocas de vantagens políticas. A presença de mais de um partido no Ministério pode ser um meio de fortalecer a ação do Executivo. Mas isso pressupõe, normalmente, uma convergência possível entre orientações partidárias distintas – quando cada partido merece esse nome.
Interesses particulares, em escala nacional, regional ou local, sempre serão afetados, de forma positiva ou negativa, por decisões políticas de alguma importância. Decisões de caráter republicano sempre serão tomadas, no entanto, com base em princípios gerais e levando em conta as funções e os limites do poder público. Fugir disso é privatizar o Estado.
Vinicius Torres Freire: O mimimi das empresas que matam e o Carrefour
Empresas terceirizam responsabilidades para fugir da culpa, na Vale ou no Carrefour
Quando a lama da Samarco matou 19 pessoas em Mariana, em 2015, a Vale disse: "A Vale é apenas uma mera acionista da Samarco, sem nenhuma interferência operacional na administração dessa companhia, de modo direto ou indireto, próximo ou distante".
Era verdade. A Vale tinha "responsabilidade limitada" por lambanças da Samarco, embora essa limitação se torne mais e mais controversa. Já a “responsabilidade social e ambiental” foi logo para o vinagre tinto de sangue. O negócio era pegar a grana de acionista e terceirizar a imundície. Tanto era esse o caso que, em 2019, a Vale largou centenas de pessoas no caminho da lama da morte em Brumadinho.
Terceirizar a imundície é um negócio, na contratação de empresas selvagens de segurança ou de feitores que escravizam imigrantes costureiros de roupa de ricos, mas não só. O Carrefour terceirizou sua segurança para uma empresa de policiais, propriedade ilegal. Um funcionário dessa Vector matou João Alberto Freitas, aos 40 anos.
“Ah, essas empresas são quase todas assim”, talvez de milícias. Sim. Então, bota a boca no trombone, chama a Lava Jato, se vira. Para apoiar governo que sabota a democracia, faz propaganda do vírus, queima floresta e insulta “viado” vocês têm tempo e disposição, certo?
Quando dá besteira, polícia ou morte, executivos de empresas aparecem compungidos, “sofrendo”, tentando sair de fininho, seguindo o roteiro do “gerenciamento de crises”. As mais toscas dizem “não sabíamos”, “a empresa [que fez a porcaria direta] é terceirizada” ou “é caso isolado”, essas burrices sórdidas e insolentes.
Na hora de enfiar a faca no pescoço de quem atrapalha os ganhos, certas empresas vão bem. Quando se trata de evitar que enfiem o joelho no pescoço do “crioulo”, dane-se.
Quer conter risco? Até por frio pragmatismo, contrate empresas limpas. O Carrefour tem dinheiro. Faturou R$ 60 bilhões em 2019. Em 2020, está faturando 17% mais. O lucro neste ano já cresceu 49,5%. Os acionistas controladores são o Carrefour France (71,6%) e a holding Península (da família de Abílio Diniz, com 7,7%). Por falar nisso, no dia em que mataram o homem, o Ibovespa caiu e a ação do Carrefour subiu.
Além do mais, faça um contrato draconiano: pisou no pescoço, está fora. Ou, como ouvi no início deste século de um presidente de bancão: “Se o sujeito me perde tantos milhão [sic], a gente chupa o sangue dele”.
“…Queremos gerar uma experiência agradável de compra”, lê-se na introdução do “Relatório Anual de Sustentabilidade” do Carrefour, esses blablás de coach, de relações institucionais e de mendacidades socioambientais. Mas o segurança matou o homem preto.
“…Contribuímos para a inserção deles [“colaboradores”] no mercado de trabalho, priorizando segmentos historicamente discriminados”. O homem preto morreu.
“Nosso objetivo é fazer a diferença nos locais em que atuamos …através de ações de proteção ambiental, da promoção da diversidade e solidariedade”. O homem preto morreu.
Não é a primeira do Carrefour nem de supermercados e shoppings, onde volta e meia há um capanga da segurança da “sustentabilidade” dando um mata-leão em outro alguém do povaréu, tanto faz se tenha furtado um biscoito ou não. Estão preocupados com vidas à beira de uma represa da morte? Com o imigrante ou o terceirizado escravizado? Com o homem negro que morre na loja ou na “sala de massagem” (de tortura)? “Chupa o sangue” de quem barbariza, talvez o seu próprio, ou para de conversinha. Enfim, é preciso rever também a terceirização irresponsável.
Janio de Freitas: 'No Brasil não existe racismo', fala de Mourão, é a mais racista das frases
Considerar que inexiste racismo é dizer que discriminação compõe tratamento correto aplicado pelos brancos e merecido pelos negros
“No Brasil não existe racismo.” Essa é a mais racista das frases entre nós. Seu autor é um general, um dia eleito presidente do Clube Militar como reconhecimento às suas manifestações extremistas. Com a elevação à liderança do radicalismo de direita, no mesmo ano foi indicado pelo comando do Exército para completar a candidatura de Jair Bolsonaro, assim chegando à mais alta condição atual de um militar brasileiro —general-vice-presidente da República.
Considerar que inexiste racismo no Brasil é dizer que toda a discriminação social sofrida pela negritude, sua desvalorização remuneratória, a maior vitimação nas ações policiais, a proporção maior na pobreza, e tanto mais, compõem um tratamento correto aplicado pelos brancos e merecido pelos negros. Em tal caso, o que é racismo, raiz da violência mais disseminada no tempo e no planeta, seria considerado o humanamente normal e o legalmente adequado para os negros. É o que a sentença do general-vice proclama.
Nos últimos anos, temos convivido com uma forma de poder em que se combinam a anti-ideia, a obturação dos canais da percepção, a disfunção da experiência, a recusa ao conhecimento e à compreensão. Não é exclusividade do Brasil, Trump e metade dos Estados Unidos mostram-se com autenticidade, para engasgo dos que jamais quiseram vê-los como são. Aqui, porém, chega a parecer que os últimos anos cumprem programas perversos para exibir as cruezas da realidade.
É o que faz o batalhão de generais na ativa do governo e adjacências. Caso houvesse um programa para arruinarem a imagem do Exército, não seria diferente do que nos mostram. O Exército que chegou ao governo Bolsonaro era um, outro é o que a opinião pública vê. Bolsonaro, até na volta ao “capitão”, e Exército se entrelaçam. A noção, entre militares, desse dano institucional ficou perceptível em referências à desvinculação entre Exército e governo. Embora sem efeito, que palavras não desfazem esse nó muito cego.
Ao contrário, a coisa até se complica. Como as eleições de agora insinuam. Os resultados suscitam muitas interpretações diferentes, mesmo opostas, e ainda assim não desprezíveis. Está visto que o centrão e a direita tiveram segmentos de ganho, o status do DEM elevou-se e fortaleceu-o bastante. Mas Boulos, Manuela D’Ávila e Marília Arraes, entre outros, revelam recuperação de saúde surpreendente, e promissora, da esquerda. É muito e não é tudo. Só com o segundo turno haverá maior nitidez da nova disposição de forças. Exceto em um caso, que dispensa a espera.
Bolsonaro é o derrotado. O importante, no entanto, é não se tratar só dele, em pessoa. É o dispositivo de que ele é o ativador, nem sabe por quê. O crescimento de partidos como o PSL, o PP e o PSD é de correntes que, apesar de identificações ideológicas, são caras e inconfiáveis. Dos candidatos que apresentaram o sobrenome Bolsonaro, só o filho Carlos se elegeu, em devastadora perda de energia do símbolo no eleitorado. Perdas e inseguranças assim são numerosas.
E outras serão decorrentes.
As perspectivas para 2021 não são simpáticas a soluções dos problemas que crescem. Não o são também, portanto, à rejeição a Bolsonaro, já em 50% em São Paulo, e ao derrotado dispositivo. Lembra o lugar-comum que Bolsonaro passa e o Exército fica. Caso não haja mesmo a recuperação, as perdas não serão iguais para as duas partes enlaçadas. Daí que Exército não deva se ligar a governo, sendo instituição do Estado. Ideia clássica e lembrada agora, com muito aplauso na imprensa, pelo comandante do Exército. Mas não foi na história do Brasil que o general Edson Pujol se baseou.
CO-AUTORIA
O governo do Rio Grande do Sul também é responsável pela monstruosidade que assassinou João Alberto Silveira Freitas. Policial militar temporário é excrescência. Inconstitucional e já repudiada pelo Supremo. Apesar disso, mantida pelo governador Eduardo Leite, para ver agora, na pessoa de um temporário assassino, o resultado de sua própria excrescência.
Bruno Boghossian: Ministros já consideram 'inevitável' tentativa de Bolsonaro de contestar eleição se perder em 2022
Autoridades trabalham para desmontar teorias e veem orquestração para desacreditar processo de votação
Autoridades responsáveis pelo planejamento das próximas eleições já consideram inevitável uma investida do grupo político de Jair Bolsonaro contra o processo de votação em 2022. Ministros de tribunais superiores começaram a trabalhar para conter a tentativa crescente de desacreditar esse sistema.
A contestação sem provas da estrutura de votação no primeiro turno das eleições municipais foi o sinal de que a orquestração começou. Ainda no domingo (15), informações falsas sobre a segurança das urnas nasceram no submundo das redes e foram abraçadas por políticos da base radical do presidente.
A semana terminou com um dos ataques mais intensos e infundados do próprio Bolsonaro contra as eleições. "Fui roubado demais", disse o presidente a apoiadores, na sexta (20), sobre a disputa que ele mesmo venceu em 2018. "Ninguém acredita nesse voto eletrônico", declarou.
Bolsonaro trabalha numa enganação preventiva. Sem nenhum elemento além de textos conspiratórios e imagens falsas, os aliados do presidente preparam terreno para contestar uma eventual derrota em sua corrida pela reeleição.
O roteiro ficou claro para os ministros que vão organizar a disputa de 2022. Não é coincidência que o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, tenha citado a participação de "milícias digitais" com "motivação política" nos ataques feitos ao tribunal na semana passada.
A ação desse ano abriu uma brecha para a busca de um antídoto contra potenciais tentativas de subverter o resultado da próxima eleição. Investigadores vão buscar vínculos entre personagens da órbita de Bolsonaro e a construção de um mecanismo para difundir o discurso falso de fraude eleitoral.
Ministros acreditam que essa é a única maneira de travar o processo artificial de erosão da confiança na votação. Sem isso, eles dizem que os ataques sem provas vão continuar. Se Bolsonaro for derrotado, a ação de radicais bolsonaristas pode terminar nos tribunais.