Day: novembro 17, 2020

'Precisamos de coalizão para enfrentar governança das polícias', diz Luiz Eduardo Soares

Em entrevista à Política Democrática Online, ex-secretário Nacional de Segurança Pública afirma que ditadura reordenou instituições

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Ex-secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares diz que polícias militares são refratárias à democracia, em entrevista exclusiva à revista Política Democrática Online de novembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. “Nós precisaríamos de uma grande coalizão e entender a necessidade de enfrentar a questão da governança das polícias e do que eu chamei um enclave institucional, alterando posturas do Ministério Público, da Justiça”, disse.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de novembro!

Todos os conteúdos da revista são disponibilizados, gratuitamente, no site da FAP. Soares é um dos 579 alvos de um dossiê elaborado pelo Ministério da Justiça do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a partir do monitoramento secreto de um grupo descrito como “militantes antifascistas”. O entrevistado também é escritor, dramaturgo, antropólogo, cientista político e pós-doutor em Filosofia Política.

Soares tem proposto debates sobre segurança pública, polícias e justiça criminal no Brasil há mais de 30 anos. Na opinião dele, a transição para a democracia no Brasil não foi completa porque as polícias militares mantiveram-se no tempo da ditadura e são agentes na desigualdade e no racismo estrutural que ainda assola o país, diariamente.

De acordo com a entrevista concedida à revista Política Democrática Online, há um legado à democracia de estruturas organizacionais forjadas na ditadura. “A ditadura não inventou a violência policial, as práticas conhecidas e nem as instituições como as conhecemos, mas as reordenou, reorganizou e qualificou”, disse. ‘Qualificar aqui tem sentido negativo e problemático. Essas instituições reformadas, reorganizadas e retemperadas pela ditadura, instituições muito problemáticas que têm passado obscurantista, autoritário, que dialogam com o pior da nossa tradição escravagista, foram legadas pela ditadura acriticamente, por assim dizer”, lamentou.

Soares tem vinte livros publicados, como “Elite da Tropa” (com André Batista e Rodrigo Pimentel), editado em 2006 pela Objetiva, “Elite da Tropa II” (com os mesmos coautores e Claudio Ferraz), publicado pela Nova Fronteira, em 2010, “Espírito Santo” (com Rodney Miranda e Carlos Eduardo Ribeiro Lemos), editado pela Objetiva, em 2008, além de “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte”, publicado em 2015 pela Cia. das Letras, e os romances “Experimento de Avelar”, premiado pela Associação de Críticos Brasileiros em 1996, e “Meu Casaco de General”, este, finalista do Prêmio Jabuti em 2000. Foi professor da Unicamp e do IUPERJ, além de visiting scholar em Harvard, University of Virginia, University of Pittsburgh e Columbia University.

Leia também:

‘Kassio Nunes não é um dos mais notáveis juristas brasileiros’, diz Murilo Gaspardo

Benito Salomão afirma que eleições 2020 podem iniciar fase melhor da vida política

Forças de oposição devem fortalecer leque de alianças para segundo turno das eleições

Rubens Ricupero avalia potencial de eleição de Joe Biden para mudar o mundo

Política Democrática Online destaca coalizão para reforma estrutural nas polícias

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


El País: China e outros 14 países da Ásia e Oceania assinam o maior acordo comercial do mundo

Tratado RCEP, que englobará 30% do PIB e da população mundial, representa um impulso econômico e político para Pequim, em detrimento da influência dos EUA na região

Macarena Vidal Liy, El País

Quinze países da Ásia e da Oceania assinaram no domingo (15) um acordo para formar a maior associação comercial do mundo, em uma grande vitória para a China, principal promotora do projeto desde que ele começou a ser negociado, em 2012. A Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês) exclui os Estados Unidos, mas reunirá 2,1 bilhões de consumidores e 30% do PIB mundial.

China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia assinaram o pacto, juntamente com os dez países que compõem a Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) ―Indonésia, Tailândia, Singapura, Malásia, Filipinas, Vietnã, Myanmar, Camboja, Laos e Brunei― ao fim da reunião de cúpula desta organização, realizada neste ano por videoconferência devido à pandemia. A Índia, que decidiu abandonar as negociações no ano passado devido ao temor de que produtos chineses baratos inundem seu mercado, terá a possibilidade de se incorporar à RCEP no futuro, se quiser.

Como a reunião foi por videoconferência, a assinatura do acordo seguiu um protocolo próprio, adaptado às circunstâncias da pandemia. Cada país realizou sua própria cerimônia, na qual o respectivo ministro do Comércio firmou o documento sob o olhar de seu chefe de Governo ou de Estado.

“Estou muito satisfeito porque, depois de oito anos de negociações complexas, finalmente concluímos hoje de forma oficial as negociações da RCEP”, afirmou o primeiro-ministro vietnamita, Nguyen Xuan Phuc, cujo país preside atualmente a Asean.

Impulso

O sucesso das negociações e a assinatura do acordo representam um impulso econômico e político para Pequim. Como principal propositor dessa iniciativa, a China consolida sua influência na Ásia, em detrimento dos Estados Unidos. Envia a mensagem de que é Pequim, e não Washington, o Governo que está realmente interessado na região. Ela poderá desempenhar um papel-chave no desenvolvimento das regras comerciais do continente. O pacto abre ainda novos mercados para suas exportações, em um momento de incerteza sobre a evolução da economia global. E reforça as credenciais que o país busca como defensor global do multilateralismo, em meio a uma tendência à desglobalização que foi acelerada pela pandemia de covid-19.

O pacto é uma alternativa ao TPP, o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica. A administração do ex-presidente americano Barack Obama via o ambicioso acordo entre países dois lados do Pacífico, do qual a China estava ausente, como um pilar econômico para sustentar a influência dos Estados Unidos na Ásia. Quando chegou à Casa Branca, o presidente Donald Trump ordenou a retirada americana do pacto, que outros 11 países ratificaram.

A saída americana foi um golpe quase fatal para o TPP e reforçou os argumentos de quem afirmava que a maior potência mundial não tem interesse em se envolver realmente na região. A decisão de Trump reavivou as negociações para a RCEP, que se arrastavam havia anos. O interesse dos Governos regionais de encontrar formas de estimular suas economias, afetadas primeiro pela guerra comercial e tecnológica entre EUA e China e depois pela pandemia, fez o resto.

Para o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, “nas atuais circunstâncias mundiais, [o acordo] traz um raio de luz e de esperança em meio às nuvens escuras” deixadas neste ano pela pandemia e pelas tendências desglobalizantes. A RCEP, acrescentou, “mostra claramente que o multilateralismo é o caminho correto e representa a direção adequada para a economia mundial e o progresso da humanidade”.

“Acreditamos que a RCEP, como o maior acordo de livre comércio do mundo, é um importante passo rumo a um marco ideal de comércio global e regras para o investimento”, assinalaram os países signatários em um comunicado. É um grupo muito diverso, que inclui algumas das economias mais avançadas do mundo, como o Japão; a “socialista com características chinesas” em Pequim; e algumas das mais pobres do planeta, como Laos e Camboja.

Diferenças

A RCEP e o TPP são muito diferentes. Enquanto o TPP se concentrava na redução de barreiras não tarifárias (proteção do meio ambiente, padrões para investimento estrangeiro), a RCEP dá ênfase principalmente às tarifas, sem a preocupação com proteções dos direitos trabalhistas, oferecidas pela tratado promovido originalmente pelos EUA.

A aliança elimina tarifas sobre mais de 90% dos bens trocados entre os membros. O acordo também inclui proteções sobre propriedade intelectual e capítulos sobre investimentos e comércio de bens e serviços. Além disso, estipula mecanismos para a resolução de disputas entre os países.

No total, a RCEP reduz tarifas e estabelece regras em cerca de 20 áreas. Entre outros, elimina impostos sobre 61% das importações de produtos agrícolas e pesqueiros da Asean, Austrália e Nova Zelândia, juntamente com 56% da China e 49% da Coreia do Sul.

Com a assinatura do acordo, aumenta a pressão sobre o presidente eleito dos EUA. Joe Biden, para demonstrar o compromisso de seu futuro Governo com a região que acumula o maior potencial de crescimento nos próximos anos. Biden afirmou no ano passado que tentará renegociar o TPP para que os Estados Unidos se reincorporem ao pacto, o que não parece ser uma tarefa fácil.

As próprias negociações iniciais para levar adiante o pacto promovido pelos EUA já se mostraram muito espinhosas, e é possível que economias como a japonesa exijam condições mais rígidas. O próximo inquilino da Casa Branca também terá de lidar com um Congresso muito mais reticente em relação a grandes acordos comerciais. À medida que a campanha eleitoral foi avançando, Biden foi se mostrando menos enfático sobre suas aspirações de retomar o TPP, e já declarou que prefere se concentrar primeiro na recuperação econômica e na luta contra a pandemia.


Merval Pereira: Meia volta, volver

O resultado mais importante desta eleição municipal é que ela parece marcar o fim da polarização dos extremos políticos, caldo de cultura que levou Bolsonaro ao poder em 2018. A sensação é de que essa maneira de fazer política cansou os eleitores, que estão procurando coisas novas, não necessariamente do ponto de vista etário, mas diferente do cardápio que foi oferecido em 2018.

O fracasso do governo Bolsonaro, juntamente com a “nova política”anunciada na campanha presidencial e que acabou ancorada na velha política, mostra que o presidente fez bem ao escolher aliar-se ao Centrão para organizar sua base congressual, mas também que ele agora tem menos força na negociação com seus novos parceiros.

PP e PSD são as estrelas do Centrão, mas partidos que abandonaram o grupo para uma posição independente, como DEM e MDB, também se destacaram. O Centrão é tradicionalmente formado por partidos que se adaptam a qualquer governo, e essa maleabilidade também é uma ameaça à composição parlamentar de Bolsonaro, pois, para se posicionarem em outros caminhos, não custa. Até na esquerda os eleitores procuraram novas alternativas, a mais emblemática o PSOL, que não quer ser moderado, mas não está envolvido em corrupção, ao contrário, nasceu da revolta de alguns membros do PT com relação à corrupção, quando da confissão do marqueteiro Duda Mendonça, que admitiu ter recebido pagamento do PT em contas no exterior no mensalão.

O choro na ocasião de deputados petistas como Chico Alencar, que ontem teve uma grande votação no Rio como vereador pelo PSOL, ainda marca essa dissidência. Não é de estranhar que o PSOL continue aliado do PT, assim como o PSDB, nascido de uma dissidência dentro do MDB, ganhou vida própria, mas não impediu que os tucanos aderissem ao governo Michel Temer. Mas são bichos diferentes.

Está claro que as pessoas querem eficiência – para prefeito, essa exigência ainda é mais forte –, mas diante da tragédia que é o governo Bolsonaro, essa tendência vai contar mais na disputa presidencial em 2022 do que contou em 2018. A capacidade de gestão, o conhecimento, a experiência do candidato, passaram a contar para além da disputa ideológica.

Em São Paulo, o candidato do PSOL Guilherme Boulos, que teve uma votação importante, superando candidatos tradicionais como Marcio França ou Russomano e tornando-se o líder hegemônico da esquerda neste momento, vai procurar jogar o prefeito Bruno Covas para a direita, enquanto Covas já começou a colocá-lo como radical.

Ontem mesmo, depois do discurso de Covas na noite anterior dizendo que os paulistanos recusam o radicalismo, o governador tucano João Doria, candidato potencial do PSDB à presidência da República, disse uma frase que resume o que será a campanha nesse segundo turno: “Aqui, nós defendemos a propriedade privada, eles invadem”.

A pandemia foi fator preponderante nessa eleição. Ficou claro que governadores e prefeitos que tiveram atitudes firmes no combate ao coronavirus, à Covid -19, que adotaram desde o início o afastamento social e a obrigatoriedade de usar máscaras foram recompensados no final pela população, que entendeu que não era uma política contra, mas a favor dela.

É a antítese da pregação de Bolsonaro, que foi derrotado fortemente nessa eleição, não apenas pelos candidatos que apontou terem sido derrotados na ampla maioria dos casos, mas porque a visão dele da pandemia foi derrotada. Ele mesmo ficou irritado, recentemente comentou não entender como os políticos que fecharam tudo, quebraram a economia, estão sendo reeleitos.

Bolsonaro, num claro declínio, só recuperará sua popularidade se conseguir colocar o auxílio emergencial de novo na mão desses milhões de brasileiros que estão perdidos, sem emprego, sem perspectiva. Mas isso ele dificilmente vai conseguir, pois quebraria o país. A deputada mais votada no Brasil em 2018 foi Joyce Hasselman, que ontem foi das ultimas na eleição para a prefeitura de São Paulo. A deputada Carla Zambelli não conseguiu eleger o irmão, e apelou, insinuando fraude na eleição, seguindo os passos do próprio Bolsonaro, que ontem, aproveitando-se do problema técnico na apuração do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), voltou a insistir na inconfiabilidade de nossa urna eletrônica. Michele Bolsonaro apoiou quatro candidatos a vereador, e nenhum se elegeu. A ex-mulher de Bolsonaro, mãe dos 01,02,03, não se elegeu. Carlos Bolsonaro teve menos votos do que em 2016.

Assim como 2016 deu sinais do que poderia acontecer em 2018, agora parece que o vento deu meu volta, no sentido da direita civilizada.


Míriam Leitão: Muitas dimensões de uma derrota

A maior derrota do presidente Jair Bolsonaro é no campo das ideias. Ele defendeu o descuido com a vida, o eleitor premiou quem a defendeu. Ele quis extremismo, o eleitor, moderação. Ele ofende minorias, e as urnas elevaram a diversidade das câmaras de vereadores. Ele administra de forma errática, o eleitor quis boa gestão. Ele ameaça a democracia, o eleitor a defendeu. Sua derrota tem várias dimensões. A mais importante está ligada à pandemia. O “e daí?” pra vida dos brasileiros levou uma surra nas urnas.

Saiu perdedora a ideia de que sem estrutura partidária, com apenas os filhos e a milícia digital, ele poderia decidir o voto dos brasileiros. O principal recado do eleitor foi o de que confia na democracia e no sistema eleitoral, alvos contra os quais dispara constantemente. Ontem, voltou a atacar, logo cedo, depois de uma confessada noite mal dormida.

É natural que perdedores apresentem versões para atenuar as dimensões da derrota. E foi isso que fizeram ontem o presidente e seu vice, Hamilton Mourão. Bolsonaro disse que ganhou a direita conservadora e que a esquerda perdeu. Mourão disse que “sem uma estrutura partidária fica difícil”, e que ele “não entrou de cabeça”.

Há vários erros nessa reação. Quem implodiu a própria estrutura partidária foi Bolsonaro. E por quê? Porque ele sempre desprezou os partidos, esteve em 10, levou o PSL a ter a segunda maior bancada e o maior fundo eleitoral. Esse capital eleitoral foi destroçado pelo presidente e seus seguidores. Em dois anos, o PSL virou um nada. Repete o PRN de Collor, de existência curta. Com o Aliança, ele colheu a maior derrota da história da criação de partidos. A visão falsa dos fatos é a forma de Bolsonaro negar aos seus seguidores que ele seja um derrotado, que de fato é. O segundo turno de São Paulo, entre o PSDB e o PSOL, é apenas o exemplo mais visível disso.

Houve um aumento da representatividade de negros, mulheres, pessoas trans, grupos que ele ofende de forma jocosa. Desses grupos, Bolsonaro tira tudo. Internamente, nega-lhes o apoio de políticas públicas, externamente tira-lhes a voz com uma diplomacia estreita e alinhada aos países mais preconceituosos e fundamentalistas. Nesse aspecto, é dupla a sua derrota. Primeiro, os grupos que quer apagar da política ganharam mais espaço nas câmaras de vereadores. Segundo, esse aumento de representação amplia a democracia, que ele tem tentado minar. A democracia se fortalece quando é capaz de ter pessoas de todos os grupos da sociedade dentro dos espaços de decisão. São mais valiosos ainda nesse processo os que entendem a importância de combate às velhas discriminações. Pessoas negras que neguem o fosso racial histórico — visível, inegável — acabam tendo um efeito bumerangue. A mesma coisa ocorre no caso de mulheres que defendem a submissão aos homens. Consolidam o que se deve combater.

O presidente amanheceu admitindo não estar bem. É compreensível. Mas, mesmo indormido, permanece incansável no ataque à democracia. Ontem, voltou a dizer que o sistema brasileiro de apuração de votos, através da urna eletrônica, não é confiável. “Se nós não tivermos uma forma confiável de apurar as eleições, a dúvida vai permanecer”, disse ele disseminando mais uma vez a dúvida sobre o sistema brasileiro. Desacreditar a apuração é o método — aqui e nos Estados Unidos — de conspirar contra a própria democracia. O que houve foi que o sistema brasileiro foi atacado mas não foi atingido. Bolsonaro prometeu apresentar provas de que houve fraude na eleição que ele venceu em 2018. Nunca as apresentou.

Há muitas contas provando que ele é o derrotado nas eleições. Em São Paulo, o fiasco foi imenso. Na maior cidade do Brasil os dois candidatos confirmaram na primeira fala após o resultado que são contra as suas ideias. Bruno Covas (PSDB) deixou isso claro quando falou em “tolerância, valores democráticos e respeito à diversidade religiosa”. Seu adversário, Guilherme Boulos (PSOL), disse que era uma vitória contra Bolsonaro. Os balanços não deixam dúvidas de quem é o derrotado nesta eleição. Mas o mais importante não é um governo de estado a mais ou a menos, mas a ampla consagração das ideias de moderação, diversidade, boa gestão e proteção da vida ameaçada pela pior pandemia em um século, cuja gravidade ele ignora.


Carlos Andreazza: Segundas ondas

Será erro subestimar Bolsonaro à luz do que expressam as urnas

A eleição municipal será o menor dos problemas de Bolsonaro. Há exagero em nacionalizá-la, em responsabilizá-lo diretamente pelo derretimento daqueles que apoiou; talvez com o intuito — politicamente legítimo — de lhe colar derrotas. Ok. É do jogo. Ele perdeu. Os candidatos pelos quais pediu foram mal. Mas que não se leia na fotografia projeção de fraqueza. Será erro subestimá-lo — senhor da máquina federal — à luz do que expressam as urnas.

Será erro, aliás, não contar com a aceleração do populismo bolsonarista como resposta ao que manifestaram as urnas. Chegarei lá.

A experiência da pandemia foi a grande eleitora. Haveria um ensinamento aí. A sociedade escolheu não tomar riscos, numa espécie de ressaca de 2018 antecipada pelos efeitos da peste. Mas essa não é lição para um sectário personalista como Bolsonaro; para quem só uma questão interessa: qual a carga dos fracassos de aliados sobre sua reeleição?

À análise política cabe avaliar até que ponto 2020 condicionaria 2022. De partida: dificilmente a peste estará entre nós daqui a dois anos, mas respostas a seu flagelo, como um Bolsa Família turbinado, provavelmente sim. Não é pouco, dada a natureza imediatista-utilitarista do voto. E a aposta de Bolsonaro permanecerá a mesma. A única que pode fazer: defrontar-se novamente com Lula, ou um cavalo seu, e forçar o eleitor a escolher — de novo — entre rejeições.

Alguém dirá que haveria outra lição para o presidente desde as urnas: a inexistência de estrutura partidária a cobrar preço alto, sendo um equívoco supor que as circunstâncias lava-jatistas de 2018 — o auge da criminalização da política — se repetirão sempre. Essa reflexão, porém, importa para uma Zambelli e outros parasitas. Não para Bolsonaro. Ele não é líder de movimento orgânico baseado em representação política. É o corpo de fenômeno reacionário autocentrado, que despreza a democracia representativa, que depreda o sistema partidário, e que até pode beneficiar algumas de suas franjas, ou muitas, como há dois anos, mas que é ele e só ele, para ele e apenas ele.

Fala-se na força revigorada do centro emergindo em 2020. É um falso poder; esperança deforme. Ao menos por ora, já que sem canalização. Bons resultados — do DEM, por exemplo — aos quais não corresponde a ascensão de figura capaz de dar cara nacional aos números. Quem é o líder de centro-direita? De centro-esquerda? Sem esses nomes, e não é óbvio que surjam, e presos à busca cafona por um Biden brasileiro, os que se opõem a Bolsonaro, enquanto se engalfinham por rotular uns aos outros, só terão a seu favor a torcida para que seu governo, muito ruim, piore.

Será essa provável piora, contudo, suficiente para derrotá-lo? Ou, em dois anos, haveria como promover poderosa empresa populista que, dando poder de consumo à miséria, empurrasse a explosão fiscal para frente? A pandemia, tão servida como desculpa, desculpa continuaria sendo.

Das urnas em 2020, também saem robustos, partidos como PSD e PP, siglas sem identidade, cuja portentosa capilaridade prática — pergunto — mais facilmente se associaria a um projeto de centro para vencer Bolsonaro e tomar-lhe a cadeira, ou a um programa de Bolsonaro, já sentado no trono, por fazer jorrar renda no Nordeste?

Não existe moderação em Bolsonaro. Há conveniência. A fase populista nunca se opôs ao autoritário essencial. O populismo serve ao autoritarismo. O populismo serve à reeleição, a partir da qual o autocrata poderá se desenvolver desamarrado. Havendo grana, não lhe faltarão sócios.

Bolsonaro não tem como operar na normalidade — o que equivaleria a seu perecimento. Precisa de crises. O chamado Centrão sabe e (mesmo assim) fechou com ele. Não será excesso escrever que a pandemia lhe deu segurança. Não será excessivo afirmar que uma segunda onda lhe garantiria a musculatura competitiva. Seu governo é basicamente o auxílio emergencial. Esse é o seu problema; não a eleição municipal perdida por meia dúzia com quem fez lives: assegurar que haja dinheiro para lhe bancar o populismo, manter os parceiros satisfeitos e impulsionar um governo caótico à reeleição. (Não é impossível —fracassando o golpe de Alcolumbre — que logo tenha um presidente da Câmara para chamar de seu.)

O recrudescimento da doença —já disse Guedes —imporia a prorrogação do auxílio. Seria, pois, o caso de o esfomeado brasileiro torcer pelo agravamento da circulação do vírus; de modo a ter a segunda onda de arroz à mesa. Seria também o caso de desconfiarmos de o governo torcer pelo recrescimento da pandemia, com o que bancaria a própria existência —de resto defendida a popularidade do presidente. Faz sentido.

Um estado de calamidade longevo para um governo permanentemente calamitoso. Gatilho para alimentar a guerra contra governadores, limpar o campo para admitir a vacina e chancelar a rolagem da situação orçamentária excepcional; que prorrogaria o auxílio, aliviando o liberal-guedismo de explicitamente romper com o teto, além de lavar —com a escusa da crise derivada da peste — as cores aberrantes da incompetência em gerir o país.

Populistas, autoritários, incompetentes e irresponsáveis são eleitos (e reeleitos) o tempo todo. As cartas estão postas. Não sejamos os negacionistas.


Pablo Ortellado: Ciberataques

Vulnerabilidade dos sistemas públicos está sendo explorada por quem quer minar a confiança no sistema eleitoral

O aumento no número de incidentes em que hackers tiveram acesso a sistemas do governo, seguido de dificuldades operacionais nos sistemas do TSE, deve acender um alerta para nossa fragilidade no campo da cibersegurança dos sistemas públicos.

Embora não tenhamos evidências de coordenação, os ataques de domingo foram explorados pela extrema direita que tenta minar a confiança no sistema eleitoral.

A crise começou em outubro, quando os servidores do STJ foram invadidos por hackers, e os conteúdos, copiados e criptografados, supostamente para extorquir dinheiro do Poder Judiciário. Logo após o ataque, outros sistemas de órgãos públicos, como o do SUS e o da Anvisa, foram preventivamente desligados até que as condições de segurança fossem restabelecidas.

No meio desta crise, o TSE optou por dividir as atividades de seus dois servidores, reservando um deles apenas para cópias de segurança e concentrando todas as tarefas no segundo. Foi esse servidor único, sobrecarregado, que teve problemas no seu processador, gerando uma instabilidade que travou o funcionamento do eTítulo (aplicativo que substitui o título de eleitor) e atrasou a computação dos votos.

Além dessa instabilidade do sistema, o TSE foi alvo de dois ataques de hackers, aparentemente desconectados.
O primeiro, reivindicado pelo grupo hacker luso-brasileiro CyberTeam, capturou dados de funcionários do TSE e foi divulgado às 9h25 por meio de uma conta no Twitter. O manifesto do grupo mencionava violações de direitos humanos nas prisões brasileiras, mas parecia motivado apenas em mostrar que conseguiam acessar o sistema. O TSE diz que o ataque aconteceu antes de 23 de outubro, mas que os dados capturados foram divulgados no dia da eleição buscando visibilidade.

Logo depois, às 10h41, o TSE foi vítima de um segundo ataque, agora de negação de serviço (quando muitos acessos simultâneos tentam sobrecarregar o servidor). O CyberTeam nega qualquer relação com esse segundo ataque, que foi divulgado pelo TSE como causa adicional das instabilidades do sistema.
Essas foram as circunstâncias que convergiram com os esforços da extrema direita em minar a credibilidade das urnas, que não foram comprometidas pelos ataques. Desde outubro, os bolsonaristas retomaram as críticas ao sistema eleitoral, que começaram nas eleições de 2018 e foram ampliadas com a crise nas eleições americanas e a proximidade das eleições municipais.
Se não fizermos nada, a combinação de vulnerabilidade dos sistemas com ataques à confiabilidade das urnas pode criar grandes problemas em 2022.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Cristina Serra: O dedo podre de Bolsonaro e 2022

Huck e Moro são parte do problema, não a solução

A eleição municipal traz elementos importantes para o cenário de 2022. Bolsonaro ganhou o troféu dedo podre de 2020. Seu fracasso como cabo eleitoral mostra que ele pode ser derrotado daqui a dois anos. Já é um começo, mas é pouco.

No campo oposto, o desempenho de Boulos (PSOL) na cidade mais importante do país mostra que a esquerda está viva e encontra ressonância no eleitorado. Com apenas duas semanas até o segundo turno, o desafio de Boulos é gigante, enquanto seu aliado preferencial, o PT, lambe as feridas de uma derrota tão esmagadora quanto previsível no seu berço político.

Tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro a eleição municipal mostra que falta pensamento estratégico aos partidos progressistas. E isto pode ser fatal daqui a dois anos.

Quem nadou de braçada foi a direita. Conquistou capitais importantes e tem chance de ampliar as vitórias no segundo turno. O centrão, amálgama de siglas identificadas com a rapinagem na política e o velho toma lá, dá cá, aumentou sua presença no interior. Partidos como PSD, PP, PL e Republicanos passam a disputar com MDB e DEM a capilaridade Brasil adentro.

A direita já se movimenta para 2022 com alguma desenvoltura. Do seu laboratório de feitiçarias saiu recentemente a dupla Huck-Moro, que se apresenta como centrista, a fórmula mágica que pode encantar o eleitorado cansado da "polarização". O animador de auditório fez seu nome explorando a imagem da pobreza alheia na TV. Em 2018, disse que Bolsonaro tinha uma chance de ouro de "ressignificar" a política.

Moro, até ontem, serviu a um governo de extrema direita e a um presidente que defende a tortura. E propôs projeto anticrime que dava a policiais uma licença para matar sob forte emoção. Huck e Moro são parte do problema, não a solução.

Não só o eleitor deve evitar esse tipo de embuste mas também o jornalismo, como bem alertou a brilhante análise de Flávia Lima nesta Folha, no domingo.


Hélio Schwartsman: O que as urnas disseram

O mais eloquente é que Jair Bolsonaro se deu mal

O que as urnas disseram no domingo? Várias coisas. A mais eloquente delas é que Jair Bolsonaro se deu mal.

Dos 13 candidatos a prefeito que o presidente decidiu apoiar, nove fracassaram já no primeiro turno, dois se elegeram —os de Ipatinga (MG) e Parnaíba (PI), que não chegam a ser megalópoles— e dois passaram para o segundo escrutínio —Rio de Janeiro e Fortaleza—, com chance maior de perder do que de ganhar.
Dos três membros da família estendida que concorreram a cargos de vereador ostentando o sobrenome Bolsonaro, só um, Carlos, o zero-dois, conseguiu uma vaga, ainda assim com 35 mil votos a menos do que obtivera em 2016.

Também parece lícito concluir que a onda niilista que tomou de assalto o eleitor em 2018 passou. Prevaleceram nomes e partidos tradicionais. Aparecem nas listas de legendas vitoriosas DEM (depois de quase ter sido extinto nos anos Lula-Dilma), MDB, PSD, PP, PSDB (se triunfar em São Paulo). O PSL, que, na esteira da eleição de Bolsonaro em 2018, se tornara o segundo maior partido (em cadeiras na Câmara), teve até aqui desempenho pior do que pífio.

A esquerda parece estar se recuperando do desastre que foram as municipais de 2016, mas sem a hegemonia do PT. O partido que brilha nestas eleições é o PSOL.

O que tudo isso diz sobre 2022? Um pouco, mas não muito. A aparente mudança de humor do eleitorado é relevante, mas seria um erro tomar os resultados de agora como uma prévia de 22. É que, em eleições locais, o eleitor tende a privilegiar questões locais. O fato de ele ter escolhido agora lideranças mais moderadas não significa necessariamente que repetirá isso no próximo pleito.

Alguns países renovam parte do Legislativo no meio do mandato do presidente. É uma opção interessante para uma eventual reforma política. Dá ao eleitor uma chance de se manifestar sobre a administração, e ao líder, uma oportunidade para corrigir rumos.


Andrea Jubé: Destinos cruzados

Bolsonaro repete teimosia de Dilma e preocupa aliados

Candidato a prefeito de Recife, o deputado João Campos (PSB) teme o revés de uma derrota em dose dupla: para as urnas e para o destino.

Mais do que vencer a prima Marília Arraes (PT) no segundo turno na principal capital do Nordeste, João precisa driblar a arapuca eleitoral que o destino armou para ele.

O projeto político de João é repetir o pai, Eduardo, e se tornar governador de Pernambuco num futuro próximo. Mas João não quer repetir o pai, que saiu derrotado de sua primeira eleição majoritária. Justamente, para a Prefeitura de Recife.

Eduardo Campos tinha a mesma idade de João em 1992, quando desobedeceu a recomendação do avô, o ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, que o desaconselhou a concorrer ao comando da capital naquele ano.

Arraes ponderou que o neto, embora dedicado e competente, era jovem e inexperiente. Até então, seu único currículo na política era a chefia de gabinete do avô, em seu segundo mandato no Palácio do Campo das Princesas, de 1987 a 1990.

Arraes profetizou que Eduardo seria engolido pelos tubarões da política pernambucana. Ele enfrentaria nas urnas: Jarbas Vasconcelos (MDB), Humberto Costa (PT), André de Paula (do então PFL de Marco Maciel) e Newton Carneiro (PSC).

Cumpriu-se o vaticínio de Arraes: aos 27 anos, Eduardo Campos acabou em quinto lugar na eleição para a Prefeitura de Recife, atrás de quatro lideranças pernambucanas.

Agora, as coincidências tramam contra João: ele completará 27 anos no próximo dia 26, a três dias do segundo turno. Terá, então, a mesma idade de Eduardo quando este concorreu ao comando da capital há quase três décadas. Assim como o pai, seu primeiro emprego foi a chefia de gabinete do governador - no caso, Paulo Câmara (PSB), cria política do pai.

Não se sabe o que pensaria Miguel Arraes, morto em 2005, sobre o embate eleitoral entre os seus descendentes: a neta Marília e o bisneto João. A pecha da imaturidade, entretanto, recai sobre João. Não pelo alerta do bisavô, mas pela acusação da prima e adversária, que exibe trajetória mais longeva que ele na política.

No único debate na televisão antes do primeiro turno, Marília apontou o dedo para o primo, usando o argumento que o avô usou contra o neto no passado. “O debate mostrou quem é experiente e tem propostas, e quem é imaturo. Eu tenho trajetória, já o candidato do PSB é inexperiente e fabricado pelo marketing”.

João concorre menos verde que o pai na disputa atual: além da chefia de gabinete do governador, também exibe no currículo quase dois anos de mandato de deputado federal.

Dez anos mais velha que o primo, Marília foi vereadora em Recife por três mandatos. Em 2014, quis concorrer a deputada federal pelo PSB, mas não teve o respaldo de Eduardo, que presidia a sigla. No mesmo ano, ele nomeou João líder da juventude do PSB, cargo cobiçado pela prima.

Foi o estopim para o rompimento. Marília filiou-se, então, ao PT. Em 2018, despontou como nome competitivo para o governo, mas acabou sacrificada em nome de um acordo que evitou o apoio do PSB à candidatura presidencial de Ciro Gomes (PDT).

Agora, o destino pregou uma peça nos petistas. Marília se projeta como a principal aposta do PT para tentar levar uma prefeitura de capital, depois de um desempenho a desejar nas eleições municipais. Se João repetir a sina do pai, o destino pode dar um voto decisivo para Marília no segundo turno. Mas o destino, aos eleitores pertence.

Teimosia

Um dos aliados mais antigos do presidente Jair Bolsonaro acredita que ele paga o preço da teimosia ao sair com a pecha de derrotado nas eleições municipais.

Este aliado explica assim o desempenho presidencial no pleito: Bolsonaro “jogou errado” porque entrou tardiamente na campanha, e insistiu em apostar em candidatos desde o começo comprometidos com o fracasso.

Um exemplo emblemático é o Coronel Menezes (Patriota), que acabou em quinto lugar na disputa pela Prefeitura de Manaus. Em nenhum momento na campanha ele despontou sequer entre os três primeiros colocados nas pesquisas.

Confrontado por este aliado sobre o apoio inconsequente, Bolsonaro retrucou que não acredita em pesquisas. Alega que os institutos teriam falhado em sua eleição. Na tréplica, o aliado ponderou que na reta final, todas as pesquisas o confirmavam no segundo turno em 2018. Mas o presidente não dá o braço a torcer.

O presidente também não gosta de ouvir que as incursões pelo país para inaugurar obras irrelevantes ou inacabadas são inócuas para manter ou alavancar sua popularidade. Os poucos amigos não-bajuladores o advertem que as claques de 150, 200 pessoas que o recebem nos aeroportos, não representam, nem de longe, sua aprovação popular naquele Estado. Mas o presidente se irrita e desconversa.

Este aliado reafirma o que já se sabe até aqui: o presidente é refratário a críticas. Em vários episódios, demitiu auxiliares que ousaram dizer a verdade. O exemplo mais recente é o ex-porta-voz, general Otávio do Rêgo Barros.

Os ouvidos moucos e a aversão às críticas são reclamações que os petistas repetiam como ladainhas em relação à então presidente Dilma Rousseff. Lideranças influentes da sigla lamentavam que ela não sabia ouvir, e pagaria o preço da teimosia, quiçá, da arrogância.

Quando cedeu aos apelos para ouvir o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fez um primeiro gesto: substituiu Aloizio Mercadante por Jaques Wagner na Casa Civil. Mas já era tarde demais.

Este aliado critica os conselhos do núcleo político para que o presidente intensifique o tom moderado. O rompante da semana passada, com o “país de maricas”, e a menção à pólvora, assustou a ala militar, mais ponderada, e os aliados de centro preocupados com a reeleição.

O aliado rechaça que Bolsonaro se converta ao centro de uma vez por todas. “Como ele vai se transformar em político de centro, se ele foi de direita a vida toda?” Ele descarta qualquer mudança radical de Bolsonaro. “É uma bobagem falar em conversão, ele nunca vai mudar o jeito de ser”.


Roberto Romano: A pandemia do ódio, Trump e o Brasil

A governança é arte de promover a amizade entre cidadãos, laço essencial do Estado

Tristes povos os que suportam mal perigos naturais e rompem os laços de sociedade. Coletivos bem constituídos no campo civil enfrentam doenças em melhores condições do que os carentes de elos internos sólidos. Uma via para entender o caso é o livro de Tucídides sobre a catástrofe militar do Peloponeso.

Espartanos invadem o solo onde governa Péricles, cuja política, mesmo apoiada pela Assembleia, enfrenta a desunião social. A pandemia também ameaça o líder. Deixando o poder, logo ele morre como vítima. A narrativa de Tucídides mostra como os atenienses reagem à peste. O mal biológico acelera a fragmentação do regime. No início, “nem os médicos puderam debelar a praga, por ignorância do que era ela. Eles próprios morreram mais rápido pela proximidade dos enfermos” (The Peloponnesian War, tradução de Th. Hobbes, Livro II, 47).

O termo para designar a ignorância dos médicos e sua morte é agnoia (ausência de saber, erro). Cidadãos morrem por agir “normalmente” na moléstia. Muitas lições a passagem traz hoje aos médicos, políticos, militares, empresários, trabalhadores. Raros aprendem com a pandemia política ou biológica. O “normal” reside em ignorar o perigo.

“O aspecto mais terrível da doença é a apatia das pessoas atingidas (…). O contágio ocorre nos cuidados de uns doentes para com os outros e os mata em rebanho. É a maior causa da mortandade, pois se os doentes se abstêm por medo de visitar uns aos outros, todos perecem por falta de cuidados (…). Quem sobrevive com maior frequência se compadece em face dos enfermos e moribundos, pois conhecem a doença por experiência própria e confiam na imunidade. O mal nunca atacaria a mesma pessoa duas vezes com efeitos letais. Eles recebem elogios de todos e, no entusiasmo alegre daquelas circunstâncias, alimentam a esperança frívola de que pelo resto da vida não serão atingidos por outras doenças.”

Quem vive no campo vem para a cidade e perece espremido. Mortos postos em pilhas, cada um enterra os seus como pode. Corpos para serem incinerados são lançados em fogueiras alheias. Não existe a polis, a sociedade, a vergonha (Aidós), o respeito. Mesmo as aves carniceiras fogem dos corpos apodrecidos.

Elias Canetti comenta a passagem de Tucídides para evidenciar o fenômeno das massas que perdem o sentido da vida social e a visão política (Massa e Poder). Quando regimes políticos sucumbem à anomia, doenças oportunistas corroem suas bases e ressurge o estado de natureza. Vemos o interesse de Hobbes pela Guerra do Peloponeso: Tucídides permite entender o pacto proposto no Leviatã. (cf. Mario Ricciardi, Le retour du Léviathan. Peur, contagion, politique). Sob Péricles, brilhante estadista, embora tisnado pela demagogia, Atenas perde forças vitais em razão da inimizade crescente, não apenas em face dos atacantes externos, mas nas lutas internas. Quando a epidemia chega, o corpo cívico já está fragmentado, sem defesas.

A governança é arte de tecer elos entre cidadãos, promover a sua amizade, laço essencial do Estado. Tal doutrina é posta no diálogo Político de Platão. Se, pelo contrário, o dirigente divide as pessoas, a tirania surge com o signo da morte. Segundo Platão, a polis é ligada internamente pela philia. “O maior bem para a cidade é o que a une e a torna una”(República, 462 a-b). Tal elo faz dos múltiplos indivíduos um conjunto poderoso. “Entre amigos tudo é comum” (República 424 a). O Estado pertence a todos e cada um deve respeitar os concidadãos. No século 20 um jurista inverte a tese platônica e proclama que a política é arte de gerar inimigos internos e externos. Carl Schmitt morreu, mas sua doutrina vive em cabeças ignaras e poderosas. “Não se pode razoavelmente negar: os povos se unem conforme a oposição amigo/inimigo. Tal oposição é uma realidade atual e virtual em todo povo que existe politicamente” (Der Begriff des Politischen, 1927).

A passagem foi usada, de modo infeliz, por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Regimes tirânicos criam o inimigo interno, e assim temos o Holocausto e muitos genocídios. Até o fim da vida Schmitt insiste sobre a inimizade política: “Um povo só está seguro de sua identidade quando, de modo claro e sem equívoco, ele tem um inimigo” (Sobre a Tele-democracia, 1970, in Machiavel/Clausewitz).

Se a democracia grega falece com Péricles e ignora os conselhos platônicos, o que poderíamos dizer ontem dos Estados Unidos dominados por Trump e agora da nossa pátria, cujo presidente fomenta a divisão, gera inimigos, despreza a ciência médica e a própria ameaça da pandemia? Os norte-americanos exorcizaram o pesadelo político que desnorteia seu Estado. Será difícil ali retomar a via da comunidade, estratégica para garantir a força de um povo.

Aqui, infelizmente, as portas da UTI democrática se fecham, a moléstia do ódio e da ignorância corroem os pulmões do País E a liderança política não chega ao calcanhar de Péricles… Ou de qualquer outro estadista digno do título. Aqui d’el-rey!

*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)


O Estado de S. Paulo: Eleições reforçam centro e avanço de pauta identitária

Votação mostra preferência por nomes conhecidos da política convencional e avanço de transexuais, mulheres negras, indígenas e mandatos coletivos nos Legislativos municipais

Adriana Ferraz, Ana Lourenço e Fernanda Boldrin, O Estado de S.Paulo

Dois anos após uma eleição geral marcada pelo discurso antissistema – que ajudou a eleger não apenas o presidente Jair Bolsonaro, mas consolidou um campo político associado à extrema-direita também nos Estados e no Congresso Nacional, a votação em primeiro turno das eleições municipais indicou que esse movimento se arrefeceu. Além de eleger ou levar para o segundo turno mais representantes de centro do que dos extremos, ao menos nas capitais, o resultado da votação sob o impacto da pandemia do novo coronavírus ainda revelou uma preferência por nomes conhecidos da política convencional.

LEIA TAMBÉM

‘Debate se constrói na diversidade’, diz 1ª vereadora trans e mais votada de BH

Bancada Feminista
Integrantes da Bancada Feminista do PSOL que foram eleitas em mandato coletivo para a Câmara: Dafne Sena, Paula Nunes, Silvia Ferraro,  Carolina Iara e Natalia Chaves. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Segundo analistas ouvidos pelo Estadão, as urnas ainda apontam para um outro fenômeno: o crescimento da chamada política identitária nas Câmaras Municipais. Ao menos 25 transexuais e travestis foram eleitos vereadores em todas as regiões do País. Mulheres negrasindígenas e mandatos coletivos também obtiveram sucesso em 13 capitais – onde candidaturas que encamparam pautas LGBT, feministas ou antirracistas figuram entre os 10 mais votados para os Legislativos municipais.

Em Curitiba, por exemplo, a população elegeu pela primeira vez uma mulher negra como vereadora, a petista Carol Dartora. O mesmo ocorreu em Cuiabá. Já em Belo Horizonte, a professora Duda Salabert (PDT), que é trans, se tornou a parlamentar recordista de votos

“Sou professora há mais de 20 anos e também atuo em causas ambientais”, afirmou Duda, que não é adepta da polarização política. “Todos são bem-vindos: centro, direita. O que não podemos tolerar é desrespeito aos direitos humanos. Debate se constrói na diversidade.”

O cientista político Márcio Black, da Fundação Tide Setúbal, diz que a eleição de ontem mostrou uma certa inversão em relação a 2018. “A ‘nova política’ está chegando às Casas Legislativas enquanto a ‘velha política’ se converte em eleições para o Executivo. O que teremos como resultado serão Câmaras com vereadores mais progressistas em conflito com gestores ditos mais conservadores”, avaliou Black, para quem o avanço identitário revelado nas urnas pode ser atribuído a construções políticas que ocorrem no Brasil há pelo menos 15 anos.

Carol já projeta o mandato. Diz que vai lutar pela reeducação social para combater a violência contra a juventude negra em Curitiba, especialmente nas regiões periféricas. “A gente não pode mais falar sobre democracia no Brasil com 56% da população sub-representada. Isso não é democracia. A gente precisa avançar muito mais. Ser a primeira mulher negra? Ótimo, maravilhoso, mas eu espero que tenha mais futuramente.”

Para o professor Claudio Couto, cientista político da FGV, houve um retorno do eleitor à política convencional, em vez da antipolítica representada em discursos associados ao bolsonarismo, com alto grau de moralismo. “Mas não se trata exatamente de uma fuga dos extremos. Mesmo porque, entendo, que só há um extremo relevante na política brasileira, que é a extrema direita. A extrema esquerda é politicamente irrelevante, representada pelo PCO e o PSTU.”

A professora Duda Salabert, vereadora mais votada em Belo Horizonte (MG) com mais de 30 mil votos. Foto: Lucas Vila/PSOL

Reeleição

Colega de Couto na FGV, a Graziella Testa também considera que o primeiro turno das eleições deste ano marcaram uma resposta ao discurso da antipolítica de 2018. “A própria taxa de reeleição dos candidatos e o perfil dos que foram para o segundo turno, no caso do Executivo, mostra que a coisa dos outsiders e da antipolítica não está pegando mais”, disse.

Enquanto vê uma desarticulação na esquerda – que deixou partidos como PT e PDT de fora do segundo turno no Rio, por exemplo –, Graziella chama atenção para o crescimento do PSOL nas eleições. A cientista política avalia que o sucesso nas urnas de candidaturas ligadas a pautas identitárias se insere no contexto de crescimento do partido, mais ligado a esses temas. “Em municípios maiores, o PSOL teve um ganho, e é o partido que traz essa pauta de forma prioritária, mesmo no Congresso Nacional”, ressaltou.

O fenômeno ocorreu não apenas aos centros urbanos do Sudeste. Levantamento feito pelo Estadão mostra que candidatas que encamparam pautas LGBT, feministas, antirracistas ou em defesa dos povos indígenas obtiveram vitória em todas as regiões do Brasil. Nas 13 capitais citadas, elas ficaram entre as dez mais votadas

Em Belém, por exemplo, Bia Caminha (PT) saiu das urnas como a vereadora mais jovem da história da cidade. Aos 21 anos, ela se define como feminista negra e bissexual. Cenário que se repete em Aracaju, com a trans Linda Brasil (PSOL) alcançando o maior número de votos entre os eleitos. “Essa vitória deu um sopro de esperança também para que a gente possa cada vez mais ocupar esses espaços”, disse Linda. 

Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o aumento da representatividade é resultado de um número recorde de candidaturas pelo País. Estudo da entidade mostra que foram registradas neste ano 294 postulantes, com 25 pessoas eleitas – alta de 212% em relação a 2016.


O Estado de S. Paulo: Congressistas têm pior desempenho nas eleições municipais desde 1992

Mesmo considerando os que ainda concorrem ao comando dos Executivos locais, o número de parlamentares eleitos pode chegar a no máximo 18, igualando 2008

Daniel Weterman e Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O resultado das eleições municipais 2020 mostra o pior desempenho de deputados federais e senadores na disputa pelas prefeituras em quase três décadas, de acordo com levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Entre os 69 congressistas que se lançaram para os cargos de prefeito e vice-prefeito, apenas quatro se elegeram no domingo e 15 vão disputar o segundo turno. Do total, 50 já perderam a eleição.

LEIA TAMBÉM

Veja o resultado da apuração da votação nas capitais nas eleições 2020

Mesmo considerando os que ainda concorrem ao comando dos Executivos locais, o número de parlamentares eleitos pode chegar a no máximo 18 nas eleições de 2020, igualando 2008, o pior desempenho das últimas oito eleições desde a redemocratização. Isso porque em Recife o segundo turno será disputado entre dois deputados - João Campos (PSB) e Marília Arraes (PT).

De 1992 para cá, a média foi de 26 congressistas vencedores. Um deputado ou um senador não perde o mandato quando concorre na eleição municipal. Caso ganhe a disputa, um suplente é chamado para ocupar o mandato na Câmara ou no Senado.

Um dos fatores que explicam o baixo número de eleitos é que neste ano também houve o menor número de parlamentares candidatos na série histórica. "Além do ambiente fiscal que os municípios enfrentam, muitos parlamentares preferiram se dedicar ao mandato no Congresso ou por questões partidárias ou incerteza em relação a fazer campanha na pandemia de covid-19", afirmou o analista político do Diap Neuriberg Dias ao Estadão/Broadcast Político

Com a possibilidade de indicar recursos no orçamento federal e destinar verbas para seus redutos eleitorais, muitos congressistas preferiram ficar na segurança de seus mandatos federais. O cenário difícil para a economia dos municípios após a pandemia do novo coronavírus agrava ainda mais esse quadro, na avaliação do Diap. Dos 69 candidatos, 40 estão no primeiro mandato no Congresso, um número grande de estreantes, de acordo com o analista. "O eleitorado apostou mais na manutenção de políticos experientes na gestão municipal do que em renovação, como se imaginava."

Dos parlamentares vencedores, apenas dois deputados federais garantiram a eleição para prefeito no primeiro turno: Roberto Pessoa (PSDB), em Maracanaú (CE), e Alexandre Serfiotis (PSD), em Porto Real (RJ). Os outros dois vencedores – Paulinho Marinho Jr (PL), em Caxias (MA), e Juninho do Pneu (DEM), em Nova Iguaçu (RJ) – foram para o cargo de vice-prefeito. No Senado, Vanderlan Cardoso (PSD-GO) foi para o segundo turno em Goiânia e Jean Paul Prates (PT) perdeu na primeira etapa da disputa em Natal. 

Para o segundo turno, o PSD e o PT tem três congressistas candidatos, incluindo um senador e deputados. PSB e PSOL contam com dois cada. PDT, Podemos, Solidariedade e PROS tem um deputado federal cada concorrendo na segunda etapa da eleição municipal. 

Com a aposta do eleitorado destoando do quadro da eleição presidencial em 2018, o presidente Jair Bolsonaro elegeu apenas dez candidatos no primeiro turno entre os 59 políticos para os quais pediu votos nas últimas semanas. O cenário também influenciou o baixo desempenho dos congressistas na eleição, de acordo com o analista do Diap.

"A tendência da eleição de 2018 não se confirmou porque o próprio presidente da República saiu do partido depois do primeiro ano de mandato e não criou um novo. Isso enfraqueceu e fragmentou os grupos que vinham ascendendo na política. O eleitor manteve a naturalidade das eleições municipais quando se esperava uma mudança maior", afirmou Neuriberg Dias.