Day: novembro 11, 2020

RPD || Benito Salomão: Eleições 2020 e seus reflexos para 2022

Primeira eleição após a reforma política realizada pelo PLC 75/2015, pleito deve ser marcado pelo barateamento dos custos das campanhas eleitorais em todo o País e pela concentração partidária, avalia Benito Salomão

Em 15 de novembro, data próxima à da publicação desta Revista, serão escolhidos, em primeiro turno, prefeitos em 5.475 municípios brasileiros com número de eleitores inferior a 200 mil. Nos outros 95 municípios em que a massa eleitoral supera esse contingente, poderá haver uma disputa em segundo turno. A injeção de cerca de R$ 230 bilhões na economia, no rastro do auxílio emergencial, deve favorecer a reeleição ou continuidade de governos que estariam fadados à derrota no atual contexto de pandemia, agravada pela recessão. Por continuidade quero dizer a não exclusão de políticos tradicionais diante do fracasso da “nova política”, plasmado pela eleição em 2018 de figuras pouco expressivas e sem currículo como Bolsonaro, Witzel, Zema e tantos outros.

Esta é, ainda, uma eleição atípica, por ser a primeira após a reforma política realizada pelo Projeto de Lei Complementar (PLC) 75/2015, que mudou inúmeras regras para as eleições no Brasil. A primeira mudança consiste na forma de financiamento das campanhas políticas, com a suspensão dos aportes de origem empresarial e a criação do fundo eleitoral público. Duas consequências devem ocorrer a partir desta nova regra: A primeira é o barateamento dos custos das campanhas eleitorais em todo o Brasil. Quem caminha pelos grandes centros brasileiros e percebe a ausência de campanhas pelas ruas tende a imaginar que se trata de mais um efeito da pandemia, mas, na verdade, boa parte dos candidatos recebeu apenas recursos para financiar os programas de televisão. Em segundo lugar, a tendência à consolidação dos partidos tradicionais. Levantamento do IBOPE em 30/10, abrangendo 23 capitais, mostra clara tendência de concentração em alguns poucos partidos.

Democratas e PSDB são os que estão sendo mais bem avaliados pelas pesquisas, cada um liderando em 5 capitais. PMDB e Podemos estão à frente em outras 3, cada. O PSD desponta como vencedor em 2 capitais. PP, PC do B, PSB e PDT lideram em 1 capital cada um.

Ou seja, dos atuais 27 partidos com representação na Câmara dos Deputados, apenas nove devem eleger prefeitos. Dos atuais grandes partidos brasileiros, apenas PT e PSL não lideram as pesquisas em capital alguma. O PT corre em 2° ou 3° lugar em algumas capitais; o PSL, nem isso. A se confirmarem esses resultados, pode surgir novo centro de resistência à polarização bolsonarismo x petismo, fenômeno que poderá ser aproveitado por alguma liderança de projeção nacional.

Esta tendência de concentração partidária deverá se refletir também, porém de forma mais imperfeita, na composição da próxima Câmara. Isso porque, a partir de 2022, a cláusula de desempenho para acesso partidário ao fundo de financiamento e ao horário na televisão se tornará mais apertada do que foi em 2018. Na eleição de 2022, de acordo com a PEC 33/2017, o partido precisará ter 2% dos votos válidos em 9 unidades da Federação e ser obrigado a eleger um número mínimo de 11 deputados federais. Somado com o fim das coligações proporcionais, isso tende a reverter o processo de proliferação partidária verificado nos anos 2000 e 2010.

Ainda é cedo para projetar, com base no que suponho possa ser o desempenho eleitoral dos principais partidos nos municípios, a configuração do próximo Congresso. As eleições para deputado federal têm outra dinâmica. Dependem muito do resultado das eleições no interior, tanto mais porque a possível concentração partidária, a ser registrada nesta eleição municipal, pode não se refletir na eleição para o Parlamento, por duas razões:

i) as disputas por prefeituras de cidades menores, espalhadas pelo interior, tendem a favorecer a pulverização partidária; e

ii) o objetivo de alguns candidatos a prefeitos não é tanto superar pesquisas eleitorais adversas e vencer as eleições, mas, antes, cacifar suas campanhas para deputado em 2022. Em outras palavras: partidos como o PSL e o PT, mesmo que não consigam eleger prefeitos em cidades importantes, poderão preparar-se para formar bancadas poderosas nas próximas eleições.

As eleições de 2020 talvez inaugurem nova fase da vida político-eleitoral brasileira. Na minha opinião, fase melhor, com campanhas mais baratas, maior fidelidade partidária, número menor de partidos, com maior eleitorado.

*Benito Salomão é economista.


RPD || André Amado: A página de abertura dos romances

Com exemplos de três universos culturais distintos, mas que convergem na técnica, André Amado nos brinda, em seu artigo, sobre como os grandes escritores procuram transformar os leitores em seus cúmplices na construção de uma obra de ficção

Sou dos que se deixam impressionar pela página de abertura de um romance. Como diz David Lodge, é fronteira que separa o mundo que imaginamos do que o romancista imaginou. Ilustro com três exemplos.

Vejam como o argentino Ernesto Sábato ambienta o começo de Sobre héroes y tumbas:
A esa hora en que comienzan a oírse los pequeños murmullos, en que los grandes ruidos se van retirando, como se apagan las conversaciones demasiado fuertes en la habitación de un moribundo; y entonces, el rumor de la fuente, los pasos de un hombre que se aleja, el gorjeo de los pájaros que no terminan de acomodarse en sus nidos, el lejano grito de un niño, comienzan a notarse con extraña gravedad. Un misterioso acontecimiento se produce en esos momentos: anochece.

Agora é a vez do britânico Ian McEwan, em A balada de Adam Henry, outra brilhante tradução de Jorio Dauster, que nos faz esquecer estarmos lendo um livro, cujo original não foi escrito em português:

Londres. Sessões do tribunal encerradas havia uma semana. O templo implacável de junho. Fiona Maye, juíza do Tribunal Superior, em casa na noite de domingo e deitada numa chaise longue, olha além de seus pés calçados com meia para o fundo da sala, uma pequena litografia de Renoir, representando uma mulher no banho, comprada trinta anos atrás por cinquenta libras. Provavelmente falsa. Abaixo da gravura, no centro de uma mesa redonda de nogueira, um vaso azul. Nenhuma recordação de sua origem. Nem de quando pusera flores nele pela última vez. Havia um ano a lareira não era acesa. Gotas de chuva enegrecidas caíam de forma irregular no suporte de ferro da lareira, estalando ao se chocarem com as folhas de jornal amarrotadas que já começavam a amarelar com o passar do tempo. Um tapete Bokhara cobrindo as largas tábuas enceradas. Na margem de seu campo de visão, um piano de cauda curta sobre cujo tampo negro e reluzente se viam fotografias da família em molduras de prata…

Complemento com Venenos de Deus, remédios do diabo, do moçambicano Mia Couto:

O médico Sidónio Rosa encolhe-se para vencer a porta, com respeitos de quem estivesse penetrando num ventre. Está visitando a família de Bartolomeu Sozinho, o mecânico reformado de Vila Cacimba. À porta, a esposa, Dona Munda, não desperdiça palavra, nem despende sorriso. É o visitante quem arredonda o momento, inquirindo:
– Então, o nosso Bartolomeu está bom?
– Está bom para seguir deitado, de vela e missal…
A voz rouca parece distante, contrariada como se lhe custasse o assunto. O médico acredita não ter entendido. Ele é português, recém-chegado à África. Refaz a questão:
– Perguntava eu, Dona Munda, sobre o seu marido…
– Está muito mal. O sal já está todo espalhado no sangue.
– Não é sal, são diabetes.
– Ele recusa. Diz que se ele é diabético, eu sou diabólica.
– Continuam brigando?
– Felizmente, sim. Já não temos outra coisa para fazer. Sabe o que penso, Doutor? A zanga é a nossa jura de amor.

São todos trechos retirados das primeiras páginas das obras de referência. Ernesto Sábato seduz o leitor pela maneira como lida com a noção de tempo, maestria literária que é uma promessa de que a repetirá mais adiante na narrativa. Ian McEwan recorre a jogo mais sutil. Com o apoio de detalhes, em geral secundários, do ambiente doméstico, opõe o melancólico ao sofisticado e deixa no ar a questão: será o presente estéril ou ainda haverá esperança de futuro. Já Mia Couto retrata, também de entrada, a vida de um casal, cuja rotina consiste em suportar-se. Aqui a pergunta não é tanto se, mas como as relações haverão de evoluir.

Três escritores procedentes de universos culturais tão distintos convergem na técnica de, no início, não mais do que insinuar a história que desenvolverão, quando, então, passam a convidar o leitor a se sentar a seu lado, para acompanhá-lo na textura da trama, no traçado dos personagens, na solução dos conflitos, no afivelamento dos fios soltos da narrativa. É assim que os grandes escritores procuram transformar os leitores em seus cúmplices na construção de uma obra de ficção. Eles têm plena consciência de que, em literatura, o leitor é fisgado pela intriga, pela curiosidade, até mesmo pela aspiração – em muitos casos, inconfessa – de querer ser o coautor do que está sendo concebido.

*André Amado é embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online.


RPD || Henrique Brandão: Borgen - No reino da Dinamarca, a política vira sucesso na TV

Uma das melhores séries políticas em cartaz atualmente nas redes de streaming mostra os intestinos da política na Dinamarca, um dos países mais desenvolvidos e civilizados da Terra

A série televisiva escandinava que tem feito sucesso no mundo inteiro não tem detetives, nem mafiosos e tampouco navegadores vikings como tema. É um drama político contemporâneo, que mostra os jogos de interesses que se desenvolvem na política dinamarquesa. Chama-se Borgen (Castelo). O nome vem da forma como se referem ao Palácio de Christianborg, local que abriga as três esferas do poder dinamarquês.

A série foi exibida na Dinamarca entre 2010 e 2013. O que deu nova dimensão ao folhetim foi o fato de a Netflix tê-la comprado e incluído as três temporadas (10 episódios cada) na programação. O êxito foi tanto que a gigante do streaming pensa em nova leva de episódios.

No Brasil, Borgen faz muito sucesso. Mas qual é o segredo da série entre os brasileiros?

Creio que uma das chaves para a resposta está na naturalidade com que a política é encarada na Dinamarca. Ocupar altos cargos na administração pública ou nas esferas de base da estrutura partidária não é encarado como algo proveitoso, do qual se deve tirar vantagens, mas como parte da vida coletiva.  

Por isso, quando nós, brasileiros, vemos na série a futura primeira-ministra indo de bicicleta para o Parlamento, assim como vários de seus pares, nos surpreendemos como a liturgia inerente ao cargo soa pouco pomposa por lá.  

Ao chegar em casa, a primeira-ministra vai para a cozinha preparar o jantar. Tarefa que é dividida com o marido. Os afazeres domésticos são compartilhados por todos, pais e filhos. Convenhamos, seria difícil algo semelhante acontecer em Brasília. Para servir o sofisticado café da manhã preferido do Presidente, pão com leite condensado, vários criados ficam à mercê de Sua Excelência.

Não é apenas essa diferença gritante de costumes que faz o sucesso da série. Ela tem ótimo roteiro, diálogos inteligentes e belas atuações, principalmente do elenco feminino. Sidse Babett Knudsen interpreta a primeira-ministra, Birgitte Nyborg, líder dos Moderados. Sua atuação passa credibilidade à personagem, uma mulher decidida na política, mas que na vida afetiva tem suas fragilidades. Sidse tem o apoio luxuoso de Birgitte Hjort Sorensen, que faz o papel de Katrine Fonsmark, uma jovem e sexy jornalista de TV, batalhadora e ambiciosa, que acaba virando sua assessora de comunicação. Benedikte Hansen também brilha como uma veterana e alcoólatra jornalista da mesma emissora. O peso do elenco feminino não é à toa: como a trama espelha a sociedade dinamarquesa, a presença das mulheres na história é expressiva.

A Dinamarca é uma monarquia constitucional, com sistema parlamentarista de governo. As negociações entre as forças políticas que possibilitam a montagem de maiorias parlamentares são intensas, nos mostra a série. É dessa forma que a primeira-ministra assume o poder. E da mesma maneira também o perde. Existem barganhas, chantagens, alianças frágeis, traições. No entanto, as crises de gabinete são encaradas como normais – a série deixa bem claro que raposa política é um animal universal.  

Outro aspecto retratado é o peso enorme da mídia no dia a dia da política. O assessor de imprensa tem mais importância que muitos dos ministros. E os veículos – jornais, TV, sites –, dependendo dos interesses em jogo, não se furtam a dar a notícia conforme lhes convêm.  

Para além da indiscutível qualidade artística, é na comparação entre as realidades dos dois países que a série se impôs por aqui. A diferença entre as sociedades – a nossa comparada com a deles – é enorme. Para se ter uma ideia, em 2011 a Dinamarca foi considerada, segundo o índice de Gini, o país com o menor grau de desigualdade social do mundo. As marcas do Welfare State – saúde, bem-estar, assistência social e educação universal – são indeléveis. Além disso, em 2008 o país foi classificado como o menos corrupto do mundo pelo Índice de Percepção de Corrupção.

Em tempos de enfrentamentos toscos e baixarias vis, acompanhar a trajetória de Birgitte Nyborg é um bálsamo. A série acabou atraindo desde comunistas convictos até o mais empertigado dos liberais. Um feito e tanto.

Nossa realidade política não tem nada da civilidade imanente de Borgen. Está mais para os golpes abaixo da cintura desferidos por Francis Underwood, o personagem vivido com maestria por Kevin Spacey em House of Cards. Qualquer semelhança entre ele e o sinistro capitão que habita o Palácio da Alvorada talvez não seja mera coincidência. Está mais para retrato falado.

* Henrique Brandão é jornalista. 


Roberto DaMatta: Uma vitória da democracia

Donald Trump foi derrotado pelo seu desprezo pelos valores democráticos – diferenças devem igualar e não construir muros

Na véspera de minha primeira viagem aos Estados Unidos, em 1963, recebi de Dick Moneygrand – que iniciava suas pioneiras pesquisas no Brasil – um conselho inesquecível. “Na América – recomendou – faça sempre o contrário do que manda o seu brasileiro coração. Coma a pizza com a mão; não se preocupe com desodorantes, mas pinte o cabelo; obedeça ao que estiver escrito, jamais encoste a mão no seu interlocutor e não olhe fixamente para uma mulher bonita. Seja compulsivamente pontual e, acima de tudo, note bem – recomendou meu amigo com ênfase –, acalme-se quando sua reclamação for importante. Quanto mais difícil for o seu problema, mais calmo você deve ficar. Lembre-se de que, nos Estados Unidos, não existe o vosso nervoso e recorrente ‘Você sabe com quem está falando?’”

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O narcisismo e a base teatral da arrogância de Donald Trump me fez supor que Joseph Biden seria derrotado. Afinal, dizia meu julgamento cultural brasileiro, ele é idoso, é muito controlado e enfrenta uma dura polarização. Puxando, porém, pela memória, me lembrei de como os americanos enfrentaram polarizações muito mais tenebrosas como, em 1860, a Guerra Civil; na década de 50, o macarthismo fascista; em 1960, o movimento pelas liberdades civis, e outros eventos nefastos com decisiva serenidade democrática.

Talvez a quietude seja um traço cultural puritano que obriga a aprender com os erros, convoca calma diante da pressa, resistência diante da agressão e controle diante do nervosismo. Um otimismo e uma confiança que a nossa ética da malandragem e do jeitinho trata como ingenuidade. Mas foi como eles reagiram a Pearl Harbor, ao assassinato de John Kennedy, ao terrorismo das Torres e, agora, diante da presidência etnocêntrica e antiglobalista de Donald Trump.

Trump sabe agora que não foi eleito rei, mas presidente. Conforme os recém-eleitos enfatizaram nas suas falas inaugurais, eleitos recebem periodicamente mandatos. Tarefas legitimadas pelo voto.

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Algo jamais discutido no Brasil, onde os eleitos literalmente não inauguram, mas “tomam posse” de cargos que garantem a impunidade e facilitam o enriquecimento. No Brasil, os eleitos pelos pobres ficam imensamente ricos. Além disso, esquecem seus compromissos e atuam pessoalmente. Tal como Bolsonaro, eles se comportam de modo absolutista, olvidando que mandato não é fidalguia.

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Donald Trump foi derrotado pelo seu desprezo pelos valores democráticos – diferenças devem igualar e não construir muros e, acima de tudo, a preocupação com o planeta e não apenas com o seu poderosíssimo país.

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Essa vitória da democracia americana renovou em mim a crença nos ideais perdidos. Os únicos, aliás, pelos quais vale a pena lutar. Foi como um escutar da inteligência. Sobre isso, diz Thomas Mann: “O intelecto humano é fraco comparado com a vida instintiva do Homem. Mas há algo especial nessa fraqueza – a voz do intelecto é suave, mas ela não descansa antes de ter adquirido ouvidos. No fim, depois de inúmeras e repetidas rejeições, ele os encontra”.

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Tive a tentação de chamar essa crônica de “Mister Biden goes to Washington” (O senhor Biden vai a Washington) porque a vitória de Biden&Harris tem sido valorizada pelo recalcitrante narcisismo de um Trump que rejeita o princípio da realidade e não aceita a derrota. A dramaticidade da vitória levou-me ao filme de Frank Capra, realizado em 1939. No filme Mr. Smith Goes to Washington conta-se como um ingênuo senador suplente chega à capital das tramoias e dos cínicos realistas para derrotar com sua inocente integridade (toda integridade é inocente) um político corrupto e restabelecer valores adormecidos.

Quando ouvi o emocionante discurso de Kamala Harris – negra, filha de imigrantes, mãe indiana e pai jamaicano, educada naqueles Estados Unidos que reencarnavam a América –, veio-me a lembrança de um rapaz de Niterói que, graças à filantropia, foi estudar em Harvard e lá foi tratado como um igual. Daí ao filme de Capra foi um passo, pois rememorei o seu espírito e, na sua obra, a marca democrática dos que torcem pela igualdade como eu. Aquele momento foi, não tenho a menor dúvida, editado por Capra. Era a vida imitando no campo sujo da política, a arte; ou era o ideal democrático fundado em eleições a afirmar que existem ideais?

*É historiador e antropólogo social, autor de ‘Fila e Democracia’


Fernando Exman: Um ponto central para analisar no domingo

Fim das coligações proporcionais é esperado desde 2017

Muitos sucumbirão à tentação. Já na noite de domingo, antes mesmo de uma análise mais fria dos resultados das eleições municipais, irão comemorar a eficiência do sistema político-eleitoral brasileiro e uma suposta pujança da democracia local. Farão comparações do desempenho das urnas eletrônicas com o que se viu recentemente nos Estados Unidos, onde a apuração demorou dias para ter um desfecho e ainda enfrenta questionamentos do lado derrotado. Mas, recomenda-se cautela.

Só depois de uma avaliação pormenorizada da configuração das novas câmaras de vereadores será possível dizer se a proibição das coligações nas disputas proporcionais de fato ajudará a depurar o sistema político. Espera-se há anos pela aplicação dessa regra, instituída por meio de uma proposta de emenda constitucional em 2017, e finalmente seus efeitos serão conhecidos. Talvez o principal deles seja a diminuição no número de partidos existentes no país.

Será a primeira vez que os candidatos a vereador só poderão disputar o cargo por meio de chapa única dentro dos seus próprios partidos. Se não houver nenhum desvio de rota, a regra será mantida nas próximas eleições e isso pode fazer toda a diferença na conformação do Congresso que será eleito em 2022 e conviverá com o próximo presidente da República. Seja ele qual for.

No sistema proporcional, por meio do qual são escolhidos deputados e vereadores, o voto dado é primeiro considerado para o partido ao qual o candidato é filiado. O total de votos de uma sigla define quantas cadeiras ela terá no Legislativo e, definida a quantidade de vagas, os candidatos mais votados desse partido são chamados a ocupá-las.

No entanto, até agora a coligação funcionava como um partido único: ao votar em um candidato a vereador ou deputado, o eleitor dava seu voto para toda a coligação. O resultado é conhecido. São muitas as disfunções do sistema, que hoje conta com 33 partidos registrados na Justiça Eleitoral. Muitos deles viraram siglas de aluguel ou legendas criadas como empreendimentos voltados à captação de recursos públicos.

São diversos os exemplos de partidos de campos ideológicos antagônicos que fecharam alianças táticas, para eleger representantes e se manterem a salvo da cláusula de barreira. O sistema sempre incentivou a formação de coligações com finalidades meramente eleitorais. Pragmáticas, muitas siglas foram sobrevivendo - preservaram fatias nos fundos públicos e tempo de propaganda em rádio e TV.

Por outro lado, essas mesmas estruturas partidárias foram contribuindo com o processo de enfraquecimento de um sistema marcado por escândalos de corrupção e pelo descrédito dos agentes políticos.

O modelo até então vigente nunca facilitou a formação de maiorias congressuais ou primou pela estabilidade. Passadas as posses, essas mesmas legendas voltavam a atuar em lados opostos. Com o princípio da proporcionalidade distorcido, restava aos governantes a busca incessante pela formação de bases aliadas, muitas vezes por caminhos heterodoxos mais conhecidos pelos peritos da polícia do que pelos analistas políticos.

Mesmo assim, poucas iniciativas conseguiram avançar no Congresso no âmbito da reforma política, a exemplo das discussões sobre o voto distrital e distrital misto. O fim das coligações nas eleições proporcionais foi uma exceção e, embora inicialmente tenha sido concebido para já valer nas eleições de 2018, acabou sendo adiado para o pleito municipal deste ano.

Alguns efeitos da medida já foram percebidos. A estratégia de grande parte dos partidos foi lançar candidaturas majoritárias no maior número possível de municípios. São elas, muitas vezes, que acabam impulsionando a eleição de vereadores. Ao todo, o sistema do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registra 557.383 candidaturas neste pleito, ante 496.927 em 2016. No período, houve um aumento tanto no número de candidaturas a prefeito (19.345 contra 16.568) como a vereador (518.321 ante 463.405).

Outros efeitos ainda deverão ser notados com o passar do tempo. Uma tendência é os partidos que não tiverem bom desempenho serem compelidos a enfrentar processos de fusão. Isso pode ocorrer, por exemplo, na esquerda. Outras siglas, como Novo e Rede, podem acabar tentando sobreviver com candidaturas de nicho nas disputas majoritárias, mesmo que fadadas a ficarem com modesta representatividade no Poder Legislativo.

Não é de surpreender, portanto, que a regra já seja alvo de críticas no Congresso. Existem algumas propostas em tramitação tentando mudá-la. E mesmo os maiores partidos, em tese os principais beneficiários, já fizeram chegar algumas queixas ao TSE.

Uma reclamação é que, agora, cada partido passou a ser obrigado a preencher 30% das candidaturas reservadas às mulheres individualmente. Antes, o cumprimento da chamada cota de gênero se aplicava à coligação como um todo. O mesmo tipo de reclamação se dá em relação a supostas dificuldades em respeitar a regra de divisão proporcional de verbas públicas de campanha entre homens, mulheres, negros e brancos.

Outra crítica ao formato final da regra se dá em relação ao rateio das vagas remanescentes nos legislativos. Elas serão distribuídas entre todos os partidos que participarem do pleito, independentemente de terem atingido ou não o quociente eleitoral. Isso pode acabar reduzindo a margem de redução do número de siglas no curto prazo.

Mesmo assim, seria positivo se ter um diagnóstico completo dos efeitos da nova regra, antes de recolocá-la em discussão apenas para atender interesses específicos de um ou outro partido. Não se deve, também, esperar alguma liderança do presidente da República nesse processo de otimização do sistema eleitoral. Além de colocar sob suspeição as urnas eletrônicas, sua batalha mais recente neste campo, a de criar um novo partido, diverge do espírito da PEC aprovada depois de muita discussão no Parlamento.


Vera Magalhães: Masculinidade frágil

Derrota de Trump e agruras do 01 abalam confiança de Bolsonaro

Jair Bolsonaro é uma cobaia ambulante para qualquer tese psicanalítica. Ontem, diante de tantos “eventos adversos graves” para si, sua família e o seu projeto político, o presidente surtou. Como sempre acontece com ele, esses surtos envolvem ao mesmo tempo decisões graves, com consequências para o País, e arroubos que funcionam mais como cortina de fumaça para tentar esconder suas fragilidades.

Vamos separar o joio do trigo. Ou o joio do joio, pois não há trigo nesse silo.

No rol dos absurdos com graves consequências para o Brasil está a decisão da Anvisa de paralisar os testes da Coronavac por conta de um efeito adverso grave com um entre mais de 13 mil voluntários dos testes clínicos da vacina desenvolvida em parceria entre o Instituto Butantan e o laboratório Sinovac. Acontece que a morte desse paciente nada teve a ver com a vacina.

Sem fazer questão de esconder o caráter puramente político da decisão, que escancara o aparelhamento da agência, o presidente se arreganhou: “Mais uma que Bolsonaro ganha”.

A masculinidade frágil é um fenômeno que atinge homens heterossexuais inseguros, que precisam a todo momento reafirmar sua superioridade. Ganha? O presidente comemora vitória sobre seu adversário João Doria Jr. sapateando desrespeitosamente nos cadáveres dos mais de 162 mil brasileiros mortos pela covid-19, e especialmente no desse paciente transformado em bode expiatório.

Como esses surtos denotam justamente o contrário de “vitória”, vê-se que Bolsonaro sentiu as derrotas recentes. A começar pela de Donald Trump, para a qual passou recibo na “superterça” da alucinação. Numa solenidade oficial, buscou ajuda do infalível Ernesto Araújo para dizer que Joe Biden, a quem chamou de postulante a chefe de Estado (a negação é outra característica da psique bolsonarista) estaria ameaçando nossa soberania e, nesse caso, não bastaria a diplomacia. “Tem que ter pólvora, senão não funciona.” É de um ridículo de dar pena.

Não faltou, claro, o tradicional comentário homofóbico, também recheado de desdém com a morte. Diante das perdas para a covid-19, sapecou que temos de deixar de ser “um país de maricas”.

Até quando o Brasil terá de aguentar esse tipo de postura por parte de seu mais importante mandatário?

Para as bravatas e as grosserias que denotam a masculinidade frágil há pouco a fazer, a não ser esperar as urnas e que a onda de racionalidade que ajudou a varrer o trumpismo nos Estados Unidos sopre para cá.

Mas a paralisia da pesquisa de uma de várias vacinas que podem nos livrar do flagelo da pandemia é outra história. Nesse caso é urgente e inescapável que os que têm prerrogativa ajam. É preciso que Ministério Público da União, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Instituto Butantan ou entidades da sociedade civil tomem a frente de uma ou múltiplas ações com pedido de cautelares no Supremo Tribunal Federal para sustar a decisão da Anvisa.

Bolsonaro e o almirante Antonio Barra Torres, o bolsonarista no comando da agência, sabotam o combate à pandemia tendo como objetivo atingir um adversário político. A fala do presidente é prova cabal contra si, e nela há vários indícios de que ele recebeu informações que a agência não poderia lhe fornecer.

E o Supremo precisa voltar a conter os ímpetos letais de um presidente atordoado por derrotas políticas, como o péssimo desempenho de seus candidatos a prefeito de Norte a Sul, o fim do sopro de popularidade do auxílio emergencial, a derrota do “amigão” na América e o agravamento das evidências de crimes variados por parte de seu filho Flávio. É um pacote pesado para quem tem masculinidade frágil, mas descontar na vida da população é crime de responsabilidade.


Rosângela Bittar: Centrão na cabeça

Das disputas municipais saem fortalecidos o PSD, o MDB e o PP, segundo previsões

O presidente Jair Bolsonaro cometeu um erro essencial de política. Transformou um presságio em uma aposta do tipo cara ou coroa. No fim, quedou-se paralisado, à espera de uma decisão por pênaltis que não virá porque nem sequer consta do regulamento. Por este momento de alucinação, torpor e instabilidade, Bolsonaro terá de operar uma desafiadora metamorfose: transformar-se de radical raivoso em moderado condescendente.

Se vai conseguir é o que veremos nos próximos meses. No momento, comporta-se como reles perdedor em série. Perdeu com a vitória de Joe Biden e Kamala Harris. Perdeu com o revés de Donald Trump, um modelo pessoal e político. Perdeu com o péssimo desempenho de seus candidatos nas eleições municipais. Perdeu diante do impulso de reação dos seus adversários presidenciais, que foram acordar logo agora, na sua maré baixa.

Isolado, o presidente consolidou a condição de maior refém do Centrão, sendo a única saída para sobreviver e ainda pleitear a reeleição. Por esta dependência presidencial, o Centrão se fortaleceu. Sobretudo porque sairá revitalizado das eleições municipais.

Para avaliar o preço que o Centrão cobrará não é preciso ter imaginação. Seus parlamentares sabem onde, quando e como tomar de assalto o governo. No restrito grupo de aliados fanáticos do presidente ainda se ouvem apelos esparsos para ele recrudescer nas atitudes de beligerância, fugindo, como sua matriz, à realidade. Mas o Centrão vai pressionar em contrário. Acredita ser fácil mostrar ao presidente que sua tropa é a última reserva de que ele dispõe.

Bolsonaro não tem saída, certamente refletirá sobre as transformações a que deve se submeter. As mais difíceis não estão relacionadas à troca dos ministros, que ele poderá sacrificar, sem problemas, doando-lhes outras vantagens.

Terá, porém, de redimensionar alguns caminhos. A importância da rede social como instrumento principal de campanha se relativizou. Com a chegada da regulação das empresas de tecnologia, que tiram mentirosos do ar, as redes deixaram de ser espaço livre por onde circulavam, impunemente, a falsidade e o conflito. Bolsonaro terá de reinventar o uso e abuso desses meios. Neste capítulo, o difícil será atender a família, insaciável, permanente e agressiva. Desta não dá para se livrar.

Não colou, até agora, a tática de denúncia antecipada de fraudes na eleição. Trump não conseguiu sensibilizar nem todo seu eleitorado e Bolsonaro vem denunciando, sem sucesso, fraude na eleição que venceu, de 2018. Imagine-se o que fará numa eleição que poderá perder. Desde sempre incentiva aliados a apresentarem projetos para a volta do voto impresso. Renegando a tecnologia, cada vez mais dominadora e irreversível.

E o fantasma do comunismo? Não deu certo lá e não tem apelos mais fortes no Brasil. Embora tenha feito sua carreira política em cima destas fixações, Bolsonaro deve avaliar sobre como se livrar destes anacronismos que são a sua essência.

É impossível ter êxito num recuo tão radical em temas de que está impregnado o seu cotidiano, mas pode tentar. A negação da ciência na pandemia, por exemplo, exige-lhe revisão urgente, e ele insiste em politizar a vacina, a doença e a morte. Como fez ainda ontem. Mudar seria uma guinada e tanto para Bolsonaro.

E dele se exige que preste atenção aos fenômenos que, se não configuram nova onda política, podem lhe servir de alerta. Os progressistas que se opõem ao seu receituário estão ganhando todas na vizinhança. Além dos Estados Unidos, vimos Argentina, Bolívia, o plebiscito do Chile e, bem antes, o México. É para pensar.

Desde que se aproximou do Centrão, Bolsonaro tem alternado radicalismo e moderação. Das disputas municipais saem fortalecidos o PSD, o MDB e o PP, segundo as previsões para a votação no domingo. A colheita eleitoral desses partidos dará a dimensão precisa da transformação que Bolsonaro precisa realizar, se quiser se manter no poder.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro, um dia de fúrias e de crimes contra o país

Presidente cometeu tantos crimes de responsabilidade que a lei do impeachment se tornou letra morta

Jair Bolsonaro já violou impunemente tantos artigos da lei dos crimes de responsabilidade que essa norma que pretendia enquadrar e conter o comportamento do Presidente da República tornou-se letra morta. As instituições e boa parte da elite lhe dão carta de corso para barbarizar o Estado, a decência e a ordem. Isto é, enquanto reparta o butim.

Como ficou ainda mais claro desde o tempo da subversão dos comícios golpistas (não faz nem seis meses), o poder mortal de Bolsonaro não será ameaçado desde que não cause mais danos financeiros do que custaria um processo de impeachment. Ou seja, desde que não provoque um tumulto econômico, derrubando o teto de gastos, que não aumente impostos de modo significativo e que pague os serviços que comprou no Congresso.

Esta terça-feira foi um dia pleno de bolsonarismo. Logo pela manhã, houve a saudação fúnebre. Bolsonaro jactou-se de derrotar João Doria porque uma morte prejudicou o andamento dos testes da vacina encomendada pelo governo de São Paulo. Mas passemos, porque “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”, como está escrito no artigo 9º da lei dos crimes de responsabilidade, do impeachment, é o comportamento esperado de Jair Bolsonaro.

Na tarde de um dia especialmente abjeto até para os padrões bolsonaristas, o capitão da extrema direita ameaçou os Estados Unidos com “pólvora”. As frases são as seguintes: "Assistimos há pouco um grande candidato à chefia de Estado dizer que, se não apagar o fogo da Amazônia, vai levantar barreira comercial contra o Brasil… Apenas diplomacia não dá. Quando acabar a saliva, tem que ter pólvora”.

E daí? Bolsonaro subiu um tom apenas na sua irresponsabilidade de iletrado desvairado, pode se dizer. É aceitável para seus cúmplices e colaboracionistas em geral, que fizeram por isso o país se tornar esta casa de tolerância. É um “surto” dizem. Talvez porque um de seus filhos tenha sido acusado formalmente de roubar dinheiro público. Talvez porque um ministro do Supremo tenha mandado para a Procuradoria-Geral da República uma notícia-crime, pois Bolsonaro manipula as instituições para evitar que seus filhos e amigos milicianos terminem na cadeia.

Mas é crime. Como está escrito no artigo 5º da lei do impeachment, um dos crimes de responsabilidade contra a existência política da União é “cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade”. Parece piada, porque Bolsonaro será, em parte, ignorado na sua insignificância lunática. Em parte.

Em parte, não. Pelo menos tentar qualquer dos crimes de responsabilidade mencionados na lei pode motivar processo de impeachment. Mais relevante, de prático, Bolsonaro e seus cúmplices também no governo, vários deles oficiais-generais, atentam contra a segurança nacional e contra os interesses econômicos do país porque ameaçam as relações diplomáticas, comerciais e financeiras com alguns dos maiores países do mundo e tantos de nossos vizinhos, países amigos.

Bolsonaro ainda zombou dos mortos, dos brasileiros que cuidam de si e de seus compatriotas evitando espalhar a doença e a morte, disse que as eleições no Brasil são passíveis de fraude e muito mais. Pareceu apenas um pot-pourri, um show de sucessos de sua sordidez habitual. Mas não. Bolsonaro demonstrou mais uma vez que é uma ameaça; quem tolera seus crimes, no Congresso ou no mundo do dinheiro grosso, é seu cúmplice maior.


Bruno Boghossian: Bolsonaro mente e usa túmulo como palanque para buscar vitória particular

Presidente sobe mais um degrau na exploração macabra do governo em nome de interesses políticos

Jair Bolsonaro não teve vergonha de admitir que está mais preocupado com ganhos pessoais do que com a vida dos cidadãos. Ao festejar a interrupção dos testes da Coronavac, o presidente subiu um degrau na exploração macabra do governo em nome de interesses políticos.

Bolsonaro lançou mão de algumas marcas registradas: usou um túmulo como palanque, reforçou suspeitas de aparelhamento de um órgão público e surfou na desinformação para buscar uma vitória particular.

Logo pela manhã, o presidente celebrou a decisão da Anvisa de suspender os experimentos da vacina do laboratório chinês Sinovac após o registro de um “evento adverso” com um voluntário. Ele ironizou o desafeto João Doria, patrono político do imunizante, e sentenciou: “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.

Àquela altura, coordenadores do Instituto Butantan já diziam que o tal “evento adverso” não tinha relação com a vacina, mas o presidente não se importou. Mais tarde, soube-se que o voluntário havia morrido por suicídio ou overdose.

O presidente da Anvisa não quis comentar a festa do chefe. Antonio Barra Torres disse que rejeitava insinuações de que o órgão agia para favorecer Bolsonaro. Ele declarou ainda que só tinha “informações incompletas” a respeito da morte, que não indicavam a suspeita de suicídio.

Isso não explica por que o presidente mentiu sobre o caso. Ao comentar a interrupção dos testes, Bolsonaro afirmou sem provas que o imunizante provocava danos graves: “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar todos os paulistanos a tomá-la”.

A decisão de interromper os testes da Coronavac segue padrões éticos desse campo, mas a decisão de explorar a suspensão é política e joga dúvidas sobre o trabalho da Anvisa.

O presidente da agência ainda tentou fingir que Bolsonaro não havia manchado o trabalho do órgão. “Fomos acometidos agora por alguma loucura que fez jogar por terra tudo o que já fizemos até agora?”, perguntou Barra Torres. Não, não foi agora.


Ruy Castro: O mundo que espere por Bolsonaro

E espere sentado porque, enquanto não for a hora certa, ele não cumprimentará Biden

O vice-presidente, general Hamilton Mourão, declarou que Jair Bolsonaro irá cumprimentar o presidente eleito americano, Joe Biden, “na hora certa”. Significa que, para Mourão, os líderes mundiais que ignoraram o esperneio de mau perdedor de Donald Trump e reconheceram a vitória de Biden, como os representantes de Alemanha, França, Reino Unido, Canadá, Índia, Israel, Emirados Árabes, Irã, Iraque, Egito, Jordânia, Líbano, União Europeia, ONU, OMS, Otan e até nossos vizinhos Argentina, Uruguai e Chile, fizeram isso na hora errada.

Para Mourão, especialista em dizer platitudes ao ser abordado em trânsito entre um gabinete vazio e outro desocupado, Bolsonaro faz bem em “esperar que termine esse imbróglio aí, de discussão, se tem voto falso, se não tem, para dar o posicionamento dele”. Deve imaginar que Biden e os países mais adultos e responsáveis estão esperando sentados, sem respirar, por Bolsonaro. E que, quando ele falar, as relações entre Brasil e EUA tomarão seu caráter institucional normal, como entre dois países com o mesmo peso.

Mas não é assim, claro, ou Bolsonaro e seus zeros não teriam dedicado os últimos dois anos a abjetos shows de subserviência diante de Trump —que, ao contrário do que eles pensam, não foram recebidos com apreço pelo clown americano, mas com o desprezo devido aos que rastejam diante do nhonhô. Se, como se diz, Trump chama seus próprios seguidores de “otários”, imagine sua opinião sobre Bolsonaro —se é que alguma vez este lhe veio à cabeça fora da agenda oficial.

Além disso, Trump tem mais com o que se preocupar neste momento do que com o apoio de remotos políticos bananeiros. Está consciente de que, assim que for evaporado da Casa Branca, uma chuva de processos o espera na dona Justa.

Recomenda-se a quem achar no lixo o boné de Eduardo Bolsonaro com os dizeres “Trump 2020” que o deixe lá. Pode ter sido ele que deu azar.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ricardo Noblat: Bolsonaro é a mais perfeita tradução do seu (des) governo

De volta à normalidade

Em dia de fúria, o presidente Jair Bolsonaro teve pelo menos um momento de argúcia. Foi quando desabafou, em cerimônia no Palácio do Planalto: “Não estou preocupado com a minha biografia. Se é que eu tenho biografia”. De fato, não está. Do contrário, não teria feito o que fez em um período de poucas horas.

Começou o dia celebrando o falso insucesso da vacina chinesa contra a Covid-19. Depois disse que o Brasil, temeroso do vírus, não passa de um país de maricas. Por fim, afirmou que se não houver entendimento com o futuro governo de Joe Biden em torno do futuro da Amazônia, chegará a hora de usar a pólvora.

Biden ameaça o Brasil com sanções econômicas se Bolsonaro não cuidar melhor da Amazônia, onde aumenta o desmatamento e multiplicam-se os focos de incêndio. Bolsonaro tenta vender aos brasileiros a ideia de que outros povos querem ocupar a Amazônia porque ela é muito rica em minérios. Daí a referência a guerra.

Foram os chineses que inventaram a pólvora. Segundo garantiu há oito anos o general Maynard Marques Santa Rosa, ex-secretário de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa, as Forças Armadas do Brasil não possuem munição suficiente para sustentar uma hora de combate.

Bravata pura de Bolsonaro! Que mereceu, uma hora mais tarde, a resposta indireta do embaixador americano no Brasil. Viralizou nas redes sociais o vídeo postado pelo embaixador sobre a passagem de mais um aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Uma demonstração de força bem a propósito.

O saldo do dia em que Bolsonaro despiu a fantasia recém-vestida de presidente normal e reconciliou-se com o que sempre foi, é e será, pode ser resumido assim:

  • Aumentou a desconfiança em relação a uma vacina promissora como tantas outras que estão sendo testadas aqui e lá fora;
  • Aumentou também a desconfiança nas decisões técnicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, até aqui amplamente respeitada no exterior;
  • O Supremo Tribunal Federal sentiu-se obrigado a interferir na questão dando um prazo de 48 horas para que o governo explique por que suspendeu os testes com a Coronavac;
  • Outra vez, os governadores se uniram contra o presidente da República e o acusaram de politizar o combate à pandemia.

O que mais, além do medo de não se reeleger em 2022, levaria Bolsonaro a comportar-se da forma estúpida e amadora como se comportou criando uma uma nova crise? Não é possível que a derrota do seu ídolo Donald Trump o tenha afetado tão gravemente a ponto de ele perder o juízo.

Maior do que o medo de não se reeleger deve ser o medo de assistir ao colapso da carreira política do seu filho mais velho Flávio Bolsonaro, réu pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa no esquema de desvio de dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio de Janeiro.

O presidente acidental eleito há dois anos transformou-se num presidente atormentado. Ruim para ele, pior para o país.

Para o livro dos pensamentos de um presidente atormentado

Medo de perder a cadeira e apelo para que deixem sua família em paz

  • “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o [governador João Doria] queria obrigar todos os paulistanos a tomá-la”, escreveu o presidente como resposta. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.
  • “Tudo agora é pandemia. Tem que acabar com esse negócio. Lamento os mortos, todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, fugir da realidade, tem que deixar de ser um país de maricas”.

(Maricas, segundo os dicionários, quer dizer: que tem comportamentos tidos como femininos; efeminado; que é homossexual; gay; repleto de covardia e medo.)

  • “Começam a amedrontar o povo brasileiro com a segunda onda. […] O que faltou para nós não foi um líder, foi não deixar o líder trabalhar”.
  • “Vem uma turminha aí falar ‘queremos o centro’, nem ódio para cá nem ódio para lá. Ódio é coisa de maricas. Meu tempo de bullying na escola era porrada. Agora chamar um cara de gordo é bullying. Nós temos como mudar o destino do Brasil, não terão outra oportunidade”.
  • “Querem chegar lá [na presidência] não pelos seus próprios méritos. Não querem chegar pelos seus méritos, mas derrubar quem está lá. Se alguém acha que tenho ‘uma tesão’ por aquela cadeira lá está completamente enganado.”
  • “Não teremos um líder feito no Brasil de dois anos, não vai aparecer. A não ser montado na grana, comprando um tantão de coisa por aí, em especial os marqueteiros. Fora isso, não terão outros líderes num curto espaço de tempo”.
  • “O Brasil não pode ir para esse lado (da esquerda), meu Deus do céu. Minha cadeira está à disposição. [Vejo pessoas] criticando, falando mal, falando besteira, mentindo, provocando, caluniando, perseguindo meus familiares o tempo todo”.

Bernardo Mello Franco: A captura da Anvisa

O bolsonarismo já havia capturado a Polícia Federal, a Receita Federal, a Procuradoria-Geral da República e a Abin. Agora chegou a vez da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Numa decisão exótica, a Anvisa ordenou a suspensão dos testes da CoronaVac, vacina desenvolvida pela chinesa Sinovac e pelo Instituto Butantan. A agência atribuiu a medida à morte de um voluntário. Era um pretexto enganoso. De acordo com a polícia, o homem cometeu suicídio.

O presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, disse que a decisão de interromper os estudos clínicos foi “técnica”. Ele é contra-almirante e aliado próximo de Bolsonaro no governo. Em março, acompanhou o presidente numa manifestação golpista em frente ao Planalto. Os dois desfilaram sem máscara, desrespeitando as recomendações sanitárias.

O capitão trava uma guerra contra a CoronaVac. No fim de outubro, ele humilhou o ministro Eduardo Pazuello, que havia anunciado a compra de 46 milhões de doses do imunizante. Mandou cancelar o negócio e disse que não bancaria a “vacina chinesa de João Doria”.

Ontem a desfaçatez foi ainda maior. Bolsonaro festejou a suspensão dos testes — e a morte do voluntário — como se comemorasse um gol na arquibancada. “O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, celebrou.

Na campanha, o presidente prometeu acabar com o “aparelhamento” no governo federal. No poder, ele submete órgãos de Estado para proteger os filhos e atingir adversários políticos. Na guerra das vacinas, o alvo é o governador de São Paulo. A Anvisa mirou Doria e acertou o Butantan, que tem 119 anos de serviços prestados à ciência e à saúde.

Enquanto a oposição sonha com 2022, o capitão avança com seu projeto de destruição nacional. Ontem ele definiu o Brasil como um “país de maricas”. Em seguida, ameaçou declarar guerra aos Estados Unidos. Depois de 19 minutos de surto, deixou escapar duas frases sensatas: “Não estou preocupado com a minha biografia. Se é que eu tenho biografia”.