Day: outubro 29, 2020

Ribamar Oliveira: Uma ajuda muito além do imaginado

União repassou R$ 31 bilhões acima das perdas estaduais

O apoio financeiro aos Estados para o enfrentamento da pandemia do coronavírus ficou muito acima do que se poderia imaginar. Os dados preliminares do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) indicam que a receita acumulada de janeiro a setembro do ICMS, o principal tributo estadual, caiu cerca de R$ 3 bilhões, na comparação com igual período de 2019. Para compensar a perda, os governadores receberam R$ 37 bilhões, considerando apenas a lei complementar 173/2020.

Mas a ajuda federal não ficou só nisso. A arrecadação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto de Renda (IR), que é dividida com Estados e municípios, também caiu durante os meses iniciais da pandemia. Por isso, a medida provisória 938/2020, que foi convertida na lei 14.041/2020, autorizou a União a manter os repasses aos fundos de participação de Estados e municípios (FPE e FPM), de março a novembro, em valores equivalentes aos repassados nos mesmos meses de 2019. Com essa medida, os Estados já receberam R$ 7,359 bilhões, de acordo com o Tesouro Nacional.

O Boletim de Arrecadação de Tributos Estaduais, editado pelo Confaz, estima que a receita de todos os tributos estaduais - além do ICMS, o IPVA, o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) e todas as taxas cobradas - ficou em R$ 437,4 bilhões, no acumulado de janeiro a setembro.

Este dado, no entanto, ainda não inclui a arrecadação do Distrito Federal e do Pará no mês passado. Se essas duas unidades da federação tiverem registrado a mesma receita de setembro de 2019, a arrecadação total subiria para R$ 439,52 bilhões. É provável que a receita fique maior do que esse valor, pois, em setembro, a arrecadação de todos os Estados superou aquela obtida no mesmo mês do ano passado.

Como a arrecadação acumulada de janeiro a setembro do ano passado do conjunto dos Estados ficou em R$ 445,14 bilhões, a perda de receita por causa da pandemia foi de, aproximadamente, R$ 5,6 bilhões.

Para compensar essa perda, os Estados receberam da União (LC 173 e MP 938) nada menos que R$ 44,359 bilhões (R$ 37 bilhões mais R$ 7,359 bilhões). Considerando que os recursos da União autorizados pela MP 938 foram apenas para manter constantes os valores dos repasses do FPM e do FPE, na comparação com 2019, os Estados tiveram cerca de R$ 31,4 bilhões a mais, de janeiro a setembro deste ano, do que em igual período de 2019 (R$ 37 bilhões menos R$ 5,6 bilhões).

O aumento nominal da arrecadação total dos Estados nos primeiros nove meses deste ano está em torno de 7% (considerando apenas o repasse de R$ 37 bilhões), o que é um dado significativo, tendo em vista que o país está em recessão, com a previsão de queda em torno de 5% para o Produto Interno Bruto (PIB). Mesmo nessa situação, as receitas estaduais apresentarão aumento real, uma vez que a inflação deste ano está estimada em torno de 3%.

Ainda não há informações sobre como os governadores estão gastando os recursos transferidos pela União. A LC 173 diz apenas que, dos R$ 37 bilhões repassados aos Estados, R$ 7 bilhões terão que ser utilizados em ações de saúde e assistência social.

Os demais R$ 30 bilhões serão utilizados livremente pelos governadores, pois cairão diretamente no caixa de cada Estado e não estão carimbados, ou seja, não têm destinação definida em lei. Os recursos poderão, portanto, ser utilizados no pagamento de despesa com pessoal.

É importante que o contribuinte saiba que a União foi obrigada a emitir títulos públicos para arrecadar os recursos que transferiu, na forma de ajuda financeira aos Estados e aos municípios. Assim, a receita maior dos Estados neste ano resultou de aumento do endividamento do Tesouro Nacional.

O impacto da pandemia nas receitas estaduais foi desigual. Na verdade, os Estados do Centro-Oeste e do Norte apresentaram ganho de arrecadação, provavelmente porque são grandes produtores de commodities agrícolas e suas economias não foram muito afetadas pela pandemia. As perdas ficaram com os Estados de Nordeste, Sul e Sudeste.

A arrecadação total de tributos de Mato Grosso, o maior produtor de grãos do país, por exemplo, aumentou 16,18% de janeiro a setembro, na comparação com igual período de 2019, de acordo com os dados do Confaz. Mesmo assim, o Estado recebeu um auxílio de R$ 1,485 bilhão da União (só com a LC 173). Com a ajuda, a receita total de Mato Grosso nos primeiro nove meses deste ano ficou em R$ 15,19 bilhões, um aumento de 28,8%, na comparação com a arrecadação do mesmo período de 2019.

Na região Norte, os maiores ganhos de arrecadação ficaram com Amazonas e Pará. O primeiro registrou aumento de 6,6% de janeiro a setembro, na comparação com o mesmo período do ano passado, de acordo com os dados do Confaz. O segundo ainda não divulgou os dados de setembro, mas a receita estava crescendo 6,62% até agosto.

Na região Nordeste, as maiores perdas ficaram com o Ceará (queda de 8,82%), Bahia (queda de 5,03%) e Rio Grande do Norte (menos 5,17%). No Sudeste, a receita total de Minas Gerais caiu 2,73%, a do Rio de Janeiro, 3,94%, e a de São Paulo, 2,76%. No Sul, a maior queda de receita foi de Santa Catarina, com menos 3,09%, de acordo com os dados do Confaz.

Todos os Estados que perderam receita foram mais do que compensados com o auxílio dado pela União, de tal forma que nenhum terá em seu caixa, neste ano, uma receita menor do que a obtida no ano passado, embora alguns tenham sido mais beneficiados do que outros pela ajuda federal.

Em conversa com o Valor, o secretário de Fazenda e Planejamento de São Paulo, Henrique Meirelles, chamou atenção para o fato de que o pagamento das dívidas estaduais, que foi suspenso neste ano por causa da pandemia, será retomado em janeiro de 2021. “Isso vai acontecer em um quadro ainda de dificuldades”, observou. Para ele, embora a economia esteja em recuperação, está retomando em um nível mais baixo, o que impactará negativamente as receitas.


Celso Ming: A turbulência financeira e a nova onda da covid-19

Mercados foram tomados por onda de forte aversão ao risco sob cenário de incertezas

Nesta quarta-feira, os mercados financeiros foram invadidos por onda de forte aversão ao risco. É como se todos os bichos da floresta fugissem para suas tocas.

Veio abaixo até mesmo o mercado do ouro, multissecular porto seguro em meio a quaisquer turbulências. A onça-troy (equivalente a 31,1 gramas) chegou a cair 2,04% e fechou em baixa de 1,65%. O único ativo que continua inspirando segurança é o dólar.

Os gráficos apresentam quanto caíram algumas das principais bolsas de valores e qual foi, nesta quarta-feira, a trajetória do dólar em relação ao real, ao rand sul-africano, ao euro e ao iene.

O alarme foi disparado pelo novo toque de recolher (lockdown) parcial na Alemanha e na França, decretado para enfrentar a nova onda da covid-19. Por mais paradoxal que pareça, a principal diferença entre esta recaída e o início da pandemia ainda não está disponível. Trata-se da vacina. Mesmo as que estão em fase final de testes ainda precisarão de tempo para produção e para distribuição. Mas não estão mais no ponto zero, como em fevereiro e março, quando os pesquisadores ainda não conheciam o inimigo.

Por esse ponto de vista, contra essa aversão ao risco há um limitador importante. Chegada a vacina, não haverá mais necessidade de medidas drásticas, mas, nesta quarta-feira, ninguém levou isso em conta.

Outra fonte de incerteza extrapola o campo sanitário. É a das eleições nos Estados Unidos. Por mais bem elaboradas que sejam, as pesquisas nem sempre preveem corretamente os resultados. E se há alguma probabilidade de que a voz das urnas seja submetida à decisão judicial, como pode ser desta vez, então fica inevitável a disseminação de ansiedades, que acabam passando para o preço dos ativos.

Afora esses males globais, há os específicos do Brasil. E aqui estão dois deles: o impacto da inflação e as mazelas das contas públicas.

A prévia do IPCA (que é o mesmo índice mensal, mas medido a partir de cada dia 15) mostrou uma esticada de 0,94% neste mês de outubro. Não é uma inflação que preocupa, porque é o resultado de desencontros episódicos de contas.

A pandemia interferiu nos fluxos econômicos. A paradeira que se seguiu ao confinamento das famílias derrubou o consumo e desorganizou as redes de produção e distribuição. Depois, veio a distribuição do auxílio emergencial, que aumentou repentinamente o consumo de alimentos e de materiais de construção num mercado semiabastecido. O afrouxamento dos esquemas de confinamento, por sua vez, voltou a acionar o consumo e pegou muitas empresas desprovidas de matérias-primas para a retomada.

Esses descasamentos nas redes de suprimentos produziram uma inflação momentânea que tende a perder força à medida que a vida econômica se normalizar.

Questão mais grave e ainda sem resposta é a do agravamento da situação das contas públicas. A dívida vai para 100% do PIB, os juros de longo prazo embutidos nos negócios de revenda de títulos públicos voltaram a embicar para cima, o que demonstra preocupação crescente com a capacidade de solvência do Tesouro. O governo permanece calado sobre como pretende enfrentar essa encrenca. Mas, passadas as eleições municipais, ficarão inevitáveis a edição de mais um saco de maldades para tentar contê-la e de mais movimentos novos que encaminhem as reformas. Se não vierem, o dólar tenderá a disparar e a alta dos importados contaminará a inflação.

Em sua reunião desta quarta-feira, o Comitê de Política Monetária (Copom) deu mais importância à deterioração do quadro fiscal do que ao repique da inflação, como ficou claro no seu comunicado.


Zeina Latif: Os muitos pontos de não retorno

Não se sabe ao certo quando uma mudança brusca nos padrões comportamentais será atingida no País

Várias áreas do conhecimento utilizam o conceito de ponto de não retorno (tipping point) para designar fenômenos em que, uma vez atingido uma massa crítica ou ponto crítico, dispara-se uma mudança brusca de padrões de comportamento. É a gota d’água.

As ciências sociais utilizam o conceito para explicar mudanças de costumes da sociedade, como a moda e novos valores. Na saúde, para designar quando uma curva normal de contágio se transforma em epidemia.

O conceito tem sido empregado na questão ambiental. Alguns modelos experimentais preveem a substituição em grande escala da floresta amazônica por vegetação semelhante à savana até o final deste século. Uma vez atingido um certo nível de desmatamento, reduzem-se o ciclo de chuvas e a umidade da floresta, ampliando ou produzindo incêndios. Aumentam os eventos climáticos e o ritmo de degradação acelera, não sendo possível regenerar o bioma.

O cientista Carlos Nobre acredita que a floresta amazônica está chegando no ponto de não retorno, pelas secas prolongadas, pela temperatura média mais elevada e pelo comportamento das espécies – as mais adaptadas ao clima seco prosperam, enquanto as de clima úmido morrem em ritmo recorde.

Também se usa esse conceito na criminalidade urbana. A julgar pelo crescimento das milícias no Rio de Janeiro e também em São Paulo, há razões para temer a existência de um ponto de não retorno. Pesquisadores apontam a atuação das milícias em todo tipo de atividade: de proteção a serviços públicos. Áreas verdes são desmatadas para loteamento e construções. Há sinais de infiltração em instâncias do poder público e associação com o narcotráfico.

Na economia há também aplicação do conceito de ponto de não retorno. Mudanças bruscas de expectativas dos agentes econômicos podem ocorrer em função de alguma informação nova ou nível crítico atingido por alguma variável econômica relevante (threshold).

Ataques especulativos contra a moeda de um país – como os da década de 1990 no Brasil, quando o câmbio era controlado –, podem decorrer de avaliação de investidores de que o estoque de reservas internacionais atingiu nível crítico e o banco central não teria mais como defender a moeda.

No início do processo de impeachment de Dilma, houve relativamente rápida reversão de tendência e alívio de expectativas inflacionárias e de confiança de empresários, por conta da perspectiva de correção da política econômica.

No contexto atual, a percepção sobre o compromisso com a disciplina fiscal pode ser gatilho para mudanças bruscas de expectativas. As projeções de inflação e taxa Selic estão bem comportadas – 3,1% e 2,75%, respectivamente em 2021 –, e refletem o cenário básico dos analistas, que certamente têm como hipótese central a manutenção da regra do teto. É provável que estejam reduzindo a probabilidade desse cenário, em função dos sinais de baixa convicção de Bolsonaro com a disciplina fiscal. Se, por alguma informação nova, se convencerem que o teto será furado, atualizarão suas projeções e utilizarão um cenário alternativo. As mudanças nas projeções poderão ter saltos.

O mesmo vale também para a disposição de investidores de financiar a dívida pública, que poderá se reduzir mais rapidamente.

Não à toa o Banco Central faz seus alertas sobre o problema fiscal. Mudanças de cenários podem ser bruscas.

Não se sabe ao certo quando um ponto de não retorno será atingido. Geralmente se percebe quando é fato consumado, pela mudança de regime. Correções de rumo tornam-se mais difíceis ou mesmo impossíveis.

Em vários aspectos, o Brasil está em situação crítica. A falta de informações e de transparência – não há dados confiáveis sobre o dano ambiental e não há dados consolidados e amplos de segurança pública – e a negação dos problemas pelo poder público sugerem que estamos brincando na beira do precipício com olhos vendados.

É necessário um ponto de não retorno também da sociedade, mudando seu comportamento e dando um basta.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Ascânio Seleme: É dando que se recebe

Maracutaia ocorre no mundo inteiro

Uma das melhores séries políticas em cartaz nas redes de streaming mostra os intestinos da política na Dinamarca, um dos países mais desenvolvidos e civilizados da Terra. Chama-se “Borgen” e é excelente, feito goma arábica, de tanto que gruda. A história começa com a eleição do Parlamento e a construção de um novo governo de centro, em substituição a um de direita. Embora ficcional, a obra apresenta um bastidor imaginário do poder que não deve ser muito diferente do real, já que o roteiro é de três dinamarqueses. E esse é um valor extra que a série tem, além do entretenimento, pois se enxerga como funciona a realpolitik local.

Aquela aura de incorruptibilidade que se vislumbra sempre que um país nórdico é mencionado desvanece logo nos primeiros episódios. Claro que nada se compara ao Brasil, onde corrupto carrega dinheiro enfiado entre as nádegas, e operações políticas desviam bilhões de cofres de empresas públicas para contas de partidos. Mas nem por isso o que ocorre em Borgen é a quintessência do puritanismo na vida pública. Muito pelo contrário. Já no primeiro episódio, o primeiro-ministro que está de saída se vê na contingência de pagar compras da mulher com cartão corporativo oficial. Foi por acaso, pois ele estava sem a carteira. Mas, na chance que teve para devolver o dinheiro, foi convencido por um assessor de que era possível resolver aquilo jogando o gasto numa rubrica qualquer do gabinete.

Em seguida, passada a eleição, ocorre uma intensa negociação de cargos em troca de apoio. Até aí, tudo normal, está se construindo um novo governo, e partidos que são próximos politicamente repartem os ministérios entre si. Se é assim no presidencialismo, imagine no parlamentarismo, como o dinamarquês. Formado o governo, no momento em que a nova primeira-ministra tenta aprovar seu Orçamento, começa um festival de chantagens e traições. Dissidentes de um partido da base exigem dela a construção de uma estrada em troca de seus votos. E o que faz a primeira-ministra? Arruma seis bilhões de coroas (R$ 5,4 bi) para comprar os chantagistas. Mais alguns bilhões são dirigidos como subsídios a um setor da indústria local, de maneira a garantir o apoio de outro grupo.

Mais adiante, de forma a conseguir a extensão do prazo para aprovar o mesmo Orçamento, a primeira-ministra negocia com seu antecessor. Promete sentar em cima das investigações sobre aquele gasto privado do cartão corporativo, que acabou se tornando público durante a eleição, se ele a apoiasse na questão. Feito o acordo, a investigação sobre o crime é encerrada no dia seguinte, com o governo anunciando não ver elementos para seguir com o inquérito. De qualquer ponto que se olhe o caso, o que se vê é um escândalo. Não tem as dimensões tsunâmicas brasileiras, mas não é bobagem em se tratando do país menos corrupto do mundo, segundo o ranking da Transparência Internacional.

Na série há também ataques à imprensa. Pelo menos duas vezes jornalistas são abertamente constrangidos por membros do governo. Na primeira, uma repórter é intimidada na própria casa. Na segunda, a polícia entra numa redação de TV local que denunciava um caso e informa que os jornalistas estão sendo processados por interceptação de produto de roubo. O produto são fotos, repassadas a repórter por fonte militar, que mostram que aviões americanos pousaram em base dinamarquesa com prisioneiros ilegais. Apesar de a primeira-ministra ficar fula da vida com a incursão policial antes de ela acontecer, ela ocorre mesmo assim.

O leitor pode estar se perguntando o que o articulista quer provar com isso. Nada. Trata-se, como já foi dito, de uma ficção. Obviamente não se pretende igualar a Dinamarca ao Brasil, à Somália ou ao Sudão. Mas parece claro, pelo menos para os roteiristas de “Borgen”, que maracutaia ocorre no mundo inteiro. Todo país tem um centrão para chamar de seu.


Vinicius Torres Freire: A segunda onda na europeia no Brasil

Segunda onda na Europa é um alerta para a epidemia e economia do Brasil

Números gerais não permitem descartar um recrudescimento da epidemia por aqui

A segunda onda da epidemia nos grandes países da Europa ficou evidente na mesma data: começo de setembro. É quando acabam as férias de verão. Foi então que o número de mortes começou a aumentar de modo inegável. Em meados de outubro houve a disparada. Em países como Alemanha, Espanha, França, Itália e Reino Unido, as taxas mínimas de morte haviam ocorrido em julho, mais ou menos.

O número diário de novas mortes por milhão anda entre 2,5 e 3,5 nesses países, com exceção da Alemanha, onde está por volta de 0,5 por milhão (média móvel de sete dias). No Brasil, o morticínio agora está perto de pouco mais 2 novas mortes por milhão, em queda lenta, faz algum tempo. No pico da mortandade nesses países europeus, a taxa diária de mortes por milhão ficou em torno de 15 (com exceção, outra vez, da Alemanha (que chegou perto de 3).

É um alerta para o Brasil? Sempre é. Aprendeu-se que a epidemia é, até certo ponto e tempo, regional, o que é um aspecto muito significativo em um país do tamanho e população como o nosso. Ainda assim, convém dar uma olhada em estatísticas mais gerais, ao menos para dar a escola de grandeza do problema.

O número de mortes pode ser um indicador aproximado do tamanho da epidemia, do número total de infectados. Sim, existe grande controvérsia sobre a letalidade da doença. Isto é, quantas pessoas morrem entre aquelas que foram infectadas. Como se tornou evidente, as pesquisas na população têm dificuldade de estimar o número total de infectados. Logo, a taxa de letalidade da doença é motivo de polêmica.

Suponha-se que ela seja aproximadamente igual e que se leve em conta as diferenças demográficas (a Covid mata mais os idosos. Tudo mais constante, países com mais idosos terão mais mortes). A taxa de mortes por milhão no Brasil é maior do que a da Espanha, o país grande da Europa mais afetado. A do estado de São Paulo é ainda maior. Levando em conta a idade da população, a diferença aumenta.

A taxa de mortes do estado de São Paulo, sem qualquer ajuste, é de 866 por milhão. A da Espanha, 755. A julgar apenas pelo número de mortes e pela hipótese de que certo número de mortes esteja associado a uma taxa de infecção, seria possível especular que um recrudescimento da epidemia não pode ser descartado por aqui. O estado de São Paulo ainda conta 2 mortes diárias por milhão. A Espanha da segunda onda conta 3,3.

Nem de longe, claro, é prognóstico. Em meses de conversas com excelentes epidemiologistas do Brasil, muito cientista dedicado observou que levou dribles e outros bailes da epidemia. O que todos dizem é que não dá para relaxar, que cada medida de alívio das restrições tem de ser muito bem fundamentada, que aglomerações são insanidades, que se deve usar máscara, que é preciso fazer mais testes e tentar encurralar a doença.

A nova onda europeia ainda está longe de ser tão mortífera quanto em abril. Mas a mortandade afeta o mundo inteiro pela economia, é preciso e horroroso dizer. A percepção de riscos aumentados e a incerteza vão ecoar pelo mundo, como se viu nos mercados financeiros desta quarta-feira, e a segunda onda vai atingir a atividade econômica em alguma medida. Alemanha e França vão ter isolamentos duros durante novembro inteiro.

Os alertas estão aí. O controle da epidemia no Brasil foi vergonhoso; o governo federal não se ocupa nem ao menos do manual básico da economia. Estamos sem imunidade na política sanitária e na econômica.


Maria Hermínia Tavares: O clima nas eleições - Sustentabilidade entra na agenda dos candidatos nos municípios

Sustentabilidade entra na agenda dos candidatos nos municípios

Misto de atraso, interesses mesquinhos e má-fé, os esforços do governo Bolsonaro para desmontar a política ambiental não tiveram só as previsíveis consequências desastrosas: aumento das queimadas, do desmatamento e das atividades ilegais em áreas protegidas. Produziram o efeito bumerangue de gerar inédita reação da sociedade.

Os três maiores bancos brasileiros se uniram em torno de um plano sustentável para a Amazônia. Com o mesmo fim, cem personalidades criaram a Concertação para a Amazônia, enquanto 230 organizações formaram a Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura, um foro de diálogo entre grandes empresas e organizações ambientalistas.

Rapidamente, a discussão vem se ampliando para incluir outros temas relacionados à recuperação dos estragos econômicos e sociais trazidos pela Covid-19. Agora, 24 organizações da sociedade civil, algumas empenhadas na formação de novas lideranças políticas, acabam de lançar a Agenda Urbana do Clima, destinada a inspirar candidatos a prefeitos e vereadores. Ela oferece uma visão abrangente da questão: governança das metrópoles; saneamento e gestão da água; saúde e redução da poluição; segurança alimentar; trato de resíduos sólidos; geração de empregos em sistemas de economia solidária; transporte público e mobilidade; áreas verdes, energias renováveis e eficiência energética.

Impossível medir a sensibilidade ao tema dos milhares de candidatos que disputam prefeituras ou câmaras municipais no país. Não é, nem de longe, questão central nas campanhas da maioria dos aspirantes ao comando das maiores cidades. Mas o tema começa a aparecer nas propostas que todos têm de apresentar ao registrarem suas candidaturas.

Em São Paulo, os cinco prefeitáveis mais fortes inscreveram a sustentabilidade em seus programas de governo. Apenas como menção protocolar no caso de Celso Russomanno, como um ponto entre outros para Marcio França e sem muito destaque na agenda centrada em inclusão social da chapa Guilherme Boulos-Luiza Erundina. Uma concepção avançada e madura da sustentabilidade como dimensão das principais políticas municipais está presente apenas nas propostas de Jilmar Tatto e de Bruno Covas, aliás em termos muito semelhantes e bem próximos da Agenda Urbana do Clima.

Propostas de campanha costumam se situar em alguma nuvem entre pura propaganda, vaga declaração de intenções e compromisso a se efetivar em um futuro incerto. Ainda assim, dizem algo sobre o que está no horizonte de cada candidato e o que a sociedade organizada dele pode --e deve-- cobrar caso se eleja.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Gabriela Prioli: A briga das direitas e as novas esquerdas

O Rei está sempre só

Faz alguns anos que o maior assunto da política é a ascensão da nova direita. As esquerdas, que antes —dizem— teriam oprimido intelectualmente todos nós, agora estão na descendente. Uma estrela cadente, digamos.

A realidade, como sempre, é mais complexa do que a narrativa. Ao chegar ao poder e ter que, de fato, governar, a nova direita se tornou "as direitas". Liberais-na-economia-conservadores-nos-costumes, libertários, religiosos, lava-jatistas, militaristas, faria-limers etc. haviam abraçado o bolsonarismo oportunisticamente, para chegar ao poder. Agora, descobrem, uns surpresos, outros nem tanto, que não fizeram o Rei. O Rei é que os instrumentalizou para estar onde está. E com o seu completo consentimento.

O poder corrompe até quem se elegeu discursando sobre corrupção pelo poder. É possível que o Aliança pelo Brasil herde do partido Novo mais do que só a novidade. As direitas brasileiras brigam entre si pela pureza direitista valendo-se de um método já conhecido: jogando seus novos desafetos para o lado de lá.

Paralelamente ao racha da direita, surgem indícios de uma rearticulação das esquerdas. A volta do kirchnerismo na Argentina em 2019. A eleição de Arce na Bolívia. O "sim" em prol de uma nova Constituição no Chile, abandonando de vez a herança de Pinochet. A possível --quase provável-- vitória de Joe Biden nos EUA.

Talvez seja muito forte dizer que é uma tendência. Afinal, quatro anos atrás estávamos comentando que os EUA elegeriam sua primeira mulher presidente. Mas tudo isso tampouco quer dizer que o nacional-populismo vai desaparecer do debate público. O tema chegou para ficar.

Pode ser apenas uma consequência do fato de que a maior crise já enfrentada em gerações chegou exatamente quando a nova direita estava se assentando no poder. Mas serve para lembrar que nunca se deve ficar muito confortável, mesmo com a caneta na mão, e nunca se deve perder a esperança, mesmo diante do inimaginável.

*Gabriela Prioli, é mestre em direito penal pela USP e professora na pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.


Maria Cristina Fernandes: Faísca, o SUS e o Rubicão dos liberais

Teto de gastos pode se mostrar curto demais para abrigar vacinas e empregos

Na segunda-feira, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, terminou, pelo Palácio do Planalto, uma agenda de visitas a autoridades em Brasília. Tratou de privatizações no BNDES e do socorro fiscal a seu Estado na Câmara dos Deputados. Com o presidente Jair Bolsonaro, resolveu acrescentar mais um tema, a vacina contra a covid-19.

Na entrevista que se seguiu, o governador conseguiu subir ao pódio do campeonato de disparates da atual temporada: “Sou de um partido liberal. Sou da opinião que quem quiser, deve se vacinar. Mas sou da opinião também que uma empresa que empregue mil funcionários exija, de alguém que trabalhe lá, que seja vacinado porque, caso contrário, ele pode representar risco para os outros. Então sou sempre favorável à liberdade do ser humano.”

Pela declaração do governador conclui-se que o dono da empresa que a comanda pelo zoom tem o direito de não se vacinar, mas ao funcionário do chão de fábrica resta apenas o dever de fazê-lo. Único governador eleito pelo Novo, Zema sugere um velho dilema: a liberdade do ser humano termina onde começa a necessidade de manter as empresas em funcionamento.

O ex-prefeito de Belo Horizonte, ex-ministro e hoje deputado federal Patrus Ananias (PT-MG), viu na declaração do governador a “privatização do ordenamento jurídico”. O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), foi além e identificou resquícios da “mentalidade escravocrata”. No dia seguinte, o governador voltaria a se pronunciar sobre a vacina num tom dois degraus abaixo dizendo que se tratava de um tema mais de “consciência do que de obrigatoriedade”.

A declaração de Zema foi a cereja de um falso debate. Desde o estabelecimento do Plano Nacional de Imunização, em 1973, as leis sobre o tema preveem algum grau de compulsoriedade - vide o Estatuto da Criança e do Adolescente, a lei que criou o Bolsa Família ou até mesmo a primeira lei de enfrentamento da pandemia (13.379) em fevereiro deste ano.

Foi assim que o SUS, com um portfólio de 19 vacinas, uma das maiores ofertas públicas do mundo, chegou a erradicar doenças como poliomielite e varíola. Hoje enfrenta as notícias falsas, a fronteira com a Venezuela, o desaparelhamento de postos de saúde e o sucateamento da produção nacional para evitar que doenças como sarampo, já detectado em 21 Estados, voltem a se disseminar.

Nas pesquisas de opinião sobre a vacina da covid-19, a adesão supera 70%. Por isso, sanitaristas respeitados têm dito que não precisa obrigar a vacina, basta torná-la disponível e garantir que a população tenha acesso. Era assim que acontecia quando o tema era tratado acima das disputas políticas. O ex-ministro da Saúde e ex-governador José Serra (PSDB) posava vacinando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por quem havia sido derrotado.

Hoje o presidente da República sugere que só leva Faísca, seu cachorro, para se vacinar e diz que a cloroquina é mais importante que a vacina. Por outro lado, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que exibe a parceria da Sinovac com o Butantã como vitrine de sua guerra pela ciência, não desistiu de garfar a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp). Depois de recuo na Assembleia Legislativa, apresentou novo projeto (PL 627) para congelar 30% de seus recursos.

A guerra da vacina contaminou outros governadores, como Ratinho Jr (PSD), do Paraná, e Rui Costa (PT), da Bahia, que firmaram acordos com o instituto Gamaleya, para que as fábricas de seus Estados (Tecpar e Bahiafarma) produzam a vacina russa. O recuo federal na compra da Coronavac pelo SUS levou governadores a imaginar que poderiam repetir, com a vacina, os consórcios formados para a compra de ventiladores.

O alvoroço levou à precipitação do presidente do Supremo, Luiz Fux. Depois de ter provocado um surto da covid-19 na Corte com sua posse, o ministro resolveu que chegara a hora de convocar as partes a entrar na justiça. Se inexiste vacina, não dá para dizer que há direito sendo negado.

No afogadilho, a primeira vítima é a obviedade. Primeiro vem o estabelecimento dos critérios de eficácia e segurança testados pela Anvisa, depois a possibilidade de produção e fornecimento. Se ainda houver algo a ser definido que não conste da legislação, ou garantias que precisem ser reforçadas dada a presença do rei do agito no Palácio do Planalto, parece ser atribuição do Congresso e não do Supremo.

O alvoroço levou muitos a imaginar que poderiam replicar o atropelo dos ventiladores, quando a falta de coordenação nacional do Ministério da Saúde levou governadores a formar consórcios e outros, quadrilhas. Com vacina é diferente. Um Estado pode colocar uma equipe de médicos e fisioterapeutas para testar respiradores, mas não há como contornar o papel da Anvisa e do SUS na certificação e na distribuição da vacina.

Outra dificuldade é que não estão assegurados os recursos estaduais para um programa de imunização. Este sempre foi um gasto federal. Se os Estados tiverem que bancá-lo vai ficar difícil arrumar dinheiro para manter as Unidades Básicas de Saúde (UBS).

É este o pano de fundo da trapalhada desta quarta-feira em torno do decreto para estudar a viabilidade de parcerias público-privadas (PPIs) para a construção e gestão das UBS. O financiamento da saúde é um dos buracos negros do orçamento de 2021. Se o SUS não cabe no teto de gastos, não está claro como a terceirização de seus serviços pode vir a caber. Alguém vai ter que pagar a conta. O mais provável é que sejam aqueles que ganharão uma vacina do governador de Minas e perderão o emprego.

Do jeito que foi apresentado, o tema pareceu nascido de um governo que não sabe como enfrentará o ano que vem, quando se aproximará do que o ex-porta-voz da Presidência chamou de Rubicão. Pra quem achou que já tinha visto tudo, o general Otávio do Rêgo Barros, avisou que, para atravessá-lo, aquele a quem chamou de ‘governante piromaníaco’, ainda tem um arsenal de “atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade”.


Bruno Boghossian: Decreto mostra que Bolsonaro prefere assinar primeiro e perguntar depois

Presidente parece não conhecer planos de subordinados ou não tem coragem de bancá-los

Em outubro do ano passado, Jair Bolsonaro editou um decreto que abria caminho para vender a operação da Casa da Moeda. A empresa era uma das prioridades na lista de privatizações do governo, mas o plano não saiu do papel. Depois de assinar a medida, o próprio presidente reclamou da proposta.

“Queriam privatizar a Casa da Moeda. Aí, o pessoal fala, eu interferi”, disse Bolsonaro, há poucas semanas. “Eu achei que não era o caso, tendo em vista informações que eu tive de outros países que privatizaram e depois voltaram atrás.”

Bolsonaro pode até dizer que considera a venda da estatal uma má ideia. Mas ele também poderia explicar por que saíram do gabinete presidencial dois documentos que abriam caminho para a privatização: aquele texto de outubro e uma medida provisória que quebrava o monopólio da empresa, no mês seguinte.

A desordem se repetiu agora, com o decreto do governo que incluiu as unidades básicas de saúde num programa de parcerias com a iniciativa privada. O documento assinado pelo presidente foi publicado na última terça (27) e revogado um dia depois.

Dessa vez, Bolsonaro não criticou a própria decisão. Ele afirmou que aquele não seria um movimento de privatização do SUS e que o objetivo era concluir obras e permitir que os cidadãos fossem atendidos na rede privada. Mas resolveu revogar a medida e prometeu reeditar o decreto “em havendo entendimento futuro dos benefícios propostos”.

O presidente mostrou mais uma vez que prefere assinar primeiro e perguntar depois. Em vez de discutir os tais “benefícios propostos” com gestores do Sistema Único de Saúde, o governo se apressou. Caso ninguém tivesse percebido, o decreto teria continuado de pé.

A equipe econômica entregaria até as emas do Palácio da Alvorada à iniciativa privada, se pudesse. O presidente endossou essa agenda na campanha, mas parece não conhecer os planos de seus subordinados ou não tem coragem de bancá-los. Bolsonaro governa por acidente.


Bernardo Mello Franco: O negócio da saúde

O ensaio de privatização do SUS resumiu, em um episódio, quatro características do governo Bolsonaro: insensibilidade social, autoritarismo, falta de transparência, voracidade para fazer negócios.

Ontem o Diário Oficial trouxe um decreto que dispunha sobre a “qualificação da política de fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada”.

Com o palavrório, abriu-se uma porta bilionária para a privatização das unidades básicas de saúde, que atendem até 80% dos problemas dos brasileiros.

Avesso à participação social, o governo não ouviu os conselhos de saúde, as entidades médicas ou os gestores locais. O ministro decorativo da Saúde, Eduardo Pazuello, também foi ignorado. Neste mês, o general admitiu que assumiu a pasta sem saber o que era o SUS. Dias depois, reconheceu que está no cargo para cumprir ordens. “Um manda, o outro obedece”, explicou.

A Constituição define a saúde como “direito de todos e dever do Estado”. Com a canetada de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, o sistema público, universal e gratuito seria rifado a operadores privados. A experiência com as organizações sociais (OSs) dá uma ideia de onde isso poderia parar. No Rio, o modelo produziu escândalos de corrupção, precarização de serviços e calotes em servidores.

Para os empresários da saúde, a privatização seria uma mina de ouro. Além de lucrar com o atendimento, eles receberiam informações coletadas desde o nascimento dos pacientes. Um fabuloso banco de dados para impulsionar novos e velhos negócios.

Num país em que 71,5% da população não conseguem pagar um plano de saúde, as UBSs garantem consultas, exames, remédios e vacinas de graça. Privatizá-las significaria quebrar a espinha do SUS. Apesar de todas as dificuldades, o sistema reafirmou sua importância no combate à pandemia. Isso explica a pressão que obrigou Bolsonaro a revogar o decreto um dia depois de publicá-lo.


Sergio Fausto: O delírio contra a ‘vacina chinesa’

Sem imunização em massa corremos o risco de o novo coronavírus persistir entre nós

O maior risco na política é o delírio. Quando fomentado por um líder, pode arrastar grande contingente de pessoas a adotar comportamentos destrutivos para si e/ou para os outros. Quando mobiliza o poder do Estado, as consequências podem ser catastróficas.

Na semana que passou tivemos um pequeno exemplo dos graves problemas que o delírio pode provocar quando passa a condicionar decisões de política pública. Não merece outro nome a recusa presidencial de adquirir a vacina contra a covid-19 ora em produção na China, em fase final de testes para comprovar a sua eficácia.

Por trás da recusa está uma teoria conspiratória com duas versões: a mais amalucada sustenta que a vacina altera o material genético das pessoas e pode servir de veículo para a inoculação de chips capazes de controlar o pensamento dos indivíduos vacinados; a menos endoidecida, mas ainda assim disparatada, vê na vacina produzida pela Sinovac, em parceria com cientistas e governos de distintos países do mundo, um instrumento a serviço da projeção global do poder da China. Num caso ou no outro, é incitada a fantasia paranoica de que nos estaríamos submetendo ao comando do Partido Comunista daquele país.

A versão tosca do delírio é disseminada nas mídias sociais pela rede de apoiadores do presidente Bolsonaro. A versão supostamente sofisticada da maluquice é articulada pelo chanceler Ernesto Araújo, o mesmo que enxerga em Donald Trump a salvação da cultura judaico-cristã e na China, o motor do globalismo e do marxismo cultural.

Não é preciso gastar muita tinta para demonstrar a insânia da referida teoria conspiratória, tampouco para mostrar as consequências desastrosas da eventual recusa, se definitiva, de se adquirir uma vacina, venha ela de onde vier, desde que comprovadas sua segurança e sua eficácia, em meio à maior pandemia dos últimos cem anos. A rigor, as consequências, neste caso, vêm antes do fato, uma vez que as declarações presidenciais atiçam o irracionalismo antivacina que ganha fôlego no Brasil e no mundo.

Basta observar a queda na cobertura vacinal da população brasileira nos anos mais recentes para se dar conta da tempestade que pode estar se formando. Sem imunização em massa, corremos o risco de que o novo coronavírus persista entre nós, junto com o ressurgimento de doenças já erradicadas, das quais o sarampo é apenas um exemplo. Vale a analogia com o que vem acontecendo no meio ambiente, visto que os sinais emitidos pelo candidato e pelo presidente Bolsonaro tiveram inegável papel no aumento dos incêndios na Amazônia e no Pantanal.

Diante desse quadro me pergunto o que significa a “normalização” do governo Bolsonaro. Outro exemplo: seria “normal” a aliança que selamos, sob a liderança dos Estados Unidos, com outros 30 países que não apenas criminalizam o aborto, como também as relações homoafetivas?

A cegueira ideológica, beirando o fanatismo, é um grande mal, em particular quando passa a condicionar decisões sobre questões essenciais à vida, como são a proteção contra doenças contagiosas e o controle sobre a mudança climática.

Não fosse trágica, a cegueira ideológica do governo nessas matérias seria patética. Mimetizam-se, como bichinho amestrado, as ações e os gestos da política externa de Trump. Nem sempre o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, muito menos quando o governo americano se move exclusivamente em função de seus interesses unilaterais de curto prazo. Menos ainda quando se está em meio a uma eleição que, tudo leva a crer, provocará importante mudança política naquele país.

Países não têm amigos, têm interesses, disse originalmente lorde Palmerston, ministro da Guerra do Reino Unido no início do século 19. Certo, mas os países têm interesse em cooperar entre si quando se veem diante de desafios que não podem resolver sozinhos. Em nenhuma época da História houve competição tão acirrada quanto na guerra fria, entre Estados Unidos e União Soviética. Confrontavam-se duas ideologias distintas que buscavam arregimentar os demais países em blocos antagônicos. Ainda assim, americanos e soviéticos cooperaram em questões vitais.

Na área nuclear, a construção de acordos e mecanismos formais e informais de consulta e verificação impediram que a guerra fria evoluísse para uma guerra quente de consequências devastadoras. Em momentos decisivos, como na crise dos mísseis, em outubro de 1962, a racionalidade pragmática prevaleceu na Casa Branca e no Kremlin e o mundo se salvou da mútua destruição nuclear entre as duas grandes potências.

Menos conhecida é a cooperação entre Estados Unidos e Rússia na erradicação da varíola, doença que na década de 1960 ainda matava cerca de 2 milhões de pessoas nos países do então chamado Terceiro Mundo. Os soviéticos contribuíram com centenas de milhões de doses da vacina, os americanos com outras tantas e com a logística de distribuição.

Não se tem notícia de que o comunismo se tenha espalhado nos países que receberam as vacinas soviéticas. Em tempos de delírio, cabe esclarecer: isso é uma ironia.

*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP


Ricardo Noblat: Bolsonaro, um presidente acidental, outra vez dá meia volta volver

Marcha soldado, cabeça de papel

Bolsonaro nada aprendeu em 30 anos de vida pública. Em compensação, nada esqueceu. De duas, uma. A inclusão das unidades básicas de saúde num programa de parcerias com a iniciativa privada era uma boa ideia, e por isso ele assinou o decreto publicado, anteontem, no Diário Oficial. Ou então era uma má ideia, e por isso ele revogou o decreto 24 horas depois.

Algo semelhante aconteceu na semana passada quando Bolsonaro disse que a vacina chinesa contra a Covid-19 jamais seria comprada. Foi uma humilhação para o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, especialista em logística, que anunciara a compra da vacina. Mas, em seguida, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária desautorizou Bolsonaro, e ele calou-se.

O ator Ronald Reagan foi um dos presidentes mais aclamados da história dos Estados Unidos. Detestava pegar no pesado. Não gostava de governar. Entendia de poucas coisas. Soube cercar-se, porém, de auxiliares competentes. Bolsonaro é quase tão ignorante quanto Reagan. Pegar no pesado não é com ele. Gosta do poder, de governar, não. Cercou-se de auxiliares incompetentes.

Onde já se viu assinar um decreto de tal importância, que necessariamente alcançaria larga repercussão como era fácil de prever, sem antes discuti-lo com os mais diretamente interessados e também com representantes do distinto público? Por unanimidade, os secretários estaduais de Saúde rechaçaram o decreto. O distinto público matou-o a pau sem dó nem piedade.

O movimento nas mídias sociais em defesa do Sistema Único de Saúde registrou a maior repercussão negativa via Twitter de uma medida do governo Bolsonaro desde janeiro de 2019. Dados levantados pela consultoria Arquimedes registram que 98,5% das menções feitas sobre o tema foram desfavoráveis ao decreto. A consultoria analisou mais de 150 mil referências.

Se não liga para o que lhe diz o ministro da Saúde, Bolsonaro liga em demasia para o que lê nas redes. Ali, estava acostumado a ver suas decisões aprovadas sem grandes discussões. De uns tempos para cá, parte delas passou a ser rejeitada. Foi o caso da demissão de Sérgio Moro, do seu comportamento na batalha contra o coronavírus e da aliança com o malsinado Centrão.

O mais bizarro: ao anunciar a revogação do polêmico decreto, Bolsonaro afirmou que ele era muito bom, sim senhor, e que poderá mais tarde ser reeditado. É mais fácil concluir que ele simplesmente não sabe direito por que assina certas coisas. Só sabe por que recua depois – mas isso não conta. Recua com medo de não se reeleger. É só o que lhe importa e orienta.