Day: outubro 26, 2020

Webinar da Política Democrática especial discute caminhos da inovação

Evento online terá participação de Roberto Alvarez, André Corrêa d'Almeida, Clara Clemente Langevin e Benjamin Sicsu

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Caminhos da inovação serão discutidos, nesta quarta-feira (28), a partir das 19 horas, no quinto e último webinar da programação de lançamento da 55ª edição da revista Política Democrática impressa, cujo título é A reinvenção das cidades, mesmo nome do ciclo de debates. O evento online será transmitido, ao vivo, no site e na página da FAP (Fundação Astrojildo Pereira) no Facebook.

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A publicação, produzida e editada pela FAP em parceria com a Tema Editorial, foi lançada no dia 30 de setembro, durante o primeiro debate online, e já está à venda na internet. A mediação do debate será realizada pelo sociólogo e diretor da FAP Caetano Araújo, que também é consultor do Senado. A jornalista Beth Cataldo, organizadora da edição temática, também tem participação permanente na série de webinars.

Confira o vídeo!



Por meio da sala virtual do zoom, os internautas poderão interagir diretamente com os debatedores, autores de análises sobre inovação publicadas na revista Política Democrática impressa. Participa da discussão o doutor em engenharia e diretor executivo da Federação Global de Conselhos de Competitividade (GFCC), Roberto Alvarez. A organização global é sediada em Washington (EUA) e está presente em mais de 30 países.

Também tem presença confirmada no evento online o professor André Corrêa d'Almeida, da Universidade de Columbia, conselheiro sênior da Academia de Ciências de Nova Iorque e autor de Smarter New York City: How City Agencies Innovate. Clara Clemente Langevin, que tem MBA em Prática de Desenvolvimento da Columbia University e é especializada em utilizar tecnologias emergentes no setor público, é outra debatedora.

Além deles, o público poderá interagir com o engenheiro civil Benjamin Sicsú, convidado para debater com os autores. Ele foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e vice-presidente de novos negócios da Samsung Eletronics para a América Latina. É presidente do Conselho de Administração da FAS (Fundação Amazonas Sustentável).

Ficha técnica

Título: A reinvenção das cidades – Revista Política Democrática edição 55
Número de páginas: 282
Projeto gráfico e diagramação: Rosivan Pereira
Revisão textual: Mariana Ribeiro
Preço versão impressa: R$ 45,00
Publicação: Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e Tema Editorial

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Cacá Diegues: O mistério do galo

Pelé era o que nós queríamos que o Brasil fosse

O brasileiro Edson Arantes do Nascimento acaba de completar 80 anos de idade, o que passaria despercebido se Edson não fosse o Pelé, como é conhecido no mundo inteiro. Nelson Rodrigues comparava o maior atleta do século XX a gênios como Homero e Leonardo. Mas, acima de tudo, Pelé era a representação de nossa alegria e graça; de nossa superioridade produzida pelo drible, o risonho engenho de dobrar o outro; pelo gol inevitável e fatal, nunca igual e nem mesmo semelhante; pela festa dos estádios celebrando o que ele fazia por nós. Pelé era o que nós queríamos que o Brasil fosse.

Como escreveu outro craque, Tostão, “a perfeição não é humana, Pelé é uma exceção”. Dessa perfeição, uma exceção, tirávamos nossa desforra de tudo o que nos maltratasse, da fome do povo à namorada que nos traía, do político mentiroso à nota baixa em filosofia, do subdesenvolvimento à praia sem sol. Pelé era o gol que nunca perdemos, mesmo que tomássemos de goleada no cotidiano. Direto de Vila Belmiro, ele nos trazia a esperança da chegada de um novo país igual a ele. Igual ou parecido, que parecido já estava muito bom.

Esse país nunca chegou e talvez nem chegue mais, pois Pelé já está fazendo 80 anos, e ninguém tem notícia de um Brasil igual ou parecido com ele: maneiro e correto, cordial e guerreiro, capaz de mudar sua própria história numa única, inventiva e solitária jogada, ou de se misturar com a equipe para reescrever a história da civilização. Não estou inventando nada, perguntem a quem jogou com ele, como Jairzinho e Tostão, como Coutinho ou Pepe. Era muito mais fácil fazer gol com Pelé no time, contando com sua íntegra solidariedade com os companheiros de valor.

Durante todo o século XX, a cultura brasileira sempre oscilou entre a procura de uma identidade nacional e o desejo de uma integração cosmopolita na ponta do mundo contemporâneo. Essa busca não foi só um empenho de poetas e artistas, de intelectuais e pensadores. Mas também de brasileiros de várias outras atividades, empenhados em nossa originalidade funcional e afetiva, capaz de nos diferenciar no mundo daquele tempo, dominado apenas por duas únicas ideias mandonas.

Nossa cultura sempre viveu dessa dualidade, entre o que somos e o que gostaríamos de ser. Orgulhosos de nossa exuberância e sensualidade, começamos por nos extasiar diante do barroco colonial. Quase nunca lembramos que essas igrejas douradas eram construídas por milhões de pretos escravizados, vítimas do mais torpe, corrupto e selvagem regime social de que se tem notícia no continente. E depois, pela cor de sua pele e por sua condição social, nem permissão tinham para entrar nos templos que haviam construído.

Foi com esse “barroco espiritual” que nascemos para o resto do mundo ocidental, com nossa fama solar às vezes contestada, mas sempre defendida por alguma versão oficial. Se Gregório de Matos e Antônio Vieira nos remetiam à miséria e à podridão, ao inferno social e moral que encontravam aqui, o padre Simão de Vasconcellos foi levado ao tribunal da inquisição por afirmar que o paraíso terrestre se encontrava no Brasil.

Talvez seja o caso de levantar a hipótese de que essa originalidade nunca tenha se manifestado pra valer em nossa história social, mas ela pode ser o mais belo, profundo e secreto projeto inconsciente do povo deste país. Um projeto de invisíveis, sempre inviabilizado pelo Brasil dos infernos, às vezes detectado por mestres mediúnicos. Como Pelé. Afinal de contas, o mistério do galo não está na ilusão de que ele seja capaz de fazer nascer o sol, mas em que seu canto anuncia a existência do sol, mesmo ainda por nascer.

Nem todos os brasileiros são ou serão Pelé. Mas basta que os tenhamos em número suficiente para evitar que nossos pobres ministros ignorantes discursem, para seus jovens diplomatas, contra João Cabral de Melo Neto, um dos maiores poetas da língua portuguesa. Que a vacina chinesa, como tudo mais inventado por lá, papel, pólvora, macarrão, bússola etc., seja condenada como imprestável por ter nascido na China. Que um manda, o outro obedece, e pronto. Para evitar, enfim, que Pelé seja apenas um retrato nostálgico na parede, mas que ele seja um exemplo poderoso do que o Brasil um dia ainda será. Love, love, love.


Eric Posner: Crise constitucional a caminho nos EUA?

O direito capturou a Suprema Corte, mas perdeu a batalha para a opinião pública

Desde a eleição de Donald Trump em 2016, juristas como eu têm sido bombardeados por e-mails de jornalistas que querem saber se os Estados Unidos estão passando por uma “crise constitucional” ou caminham para ela. A maioria dos questionamentos tem sido motivada pelo desapreço do presidente às leis, incluindo sua interferência na investigação do promotor especial Robert Mueller sobre a interferência da Rússia nas eleições, seus ataques verbais a jornalistas e juízes e seus esforços para lançar investigações contra seus adversários políticos.

Uma crise constitucional, devidamente entendida como um ponto de inflexão que pode levar ao colapso ou transformação do sistema, não ocorreu. Mas tal crise parece agora cada vez mais provável. Não estou falando das eleições (embora elas possam produzir uma crise constitucional se o resultado for apertado, ou na improbabilidade de Trump de alguma forma se recusar a deixar o cargo). Na verdade, estou me referindo a uma crise que poderá ocorrer mesmo se Trump perder. Essa crise surgiria de uma tensão que existe ao longo de toda a história americana; isto é, entre os tribunais e um sistema de democracia que concede o poder máximo ao povo.

Até hoje houve duas crises constitucionais na história americana. Ambas envolveram um choque entre a Suprema Corte e autoridades eleitas apoiadas pela opinião pública. A primeira começou com o infame caso Dred Scott versus Sandford em 1857. Nesse caso, a Suprema Corte julgou que os afro-americanos não eram cidadãos dos EUA e que o Compromisso de Missouri de 1820 - que adiou a guerra civil ao fornecer uma fórmula para dividir o território entre Estados pró-escravatura e Estados pró-abolicionistas - era inconstitucional.

A decisão da Suprema Corte inflamou as tensões entre o Norte e o Sul e contribuiu para a Guerra Civil, em parte ao bloquear o caminho para um comprometimento. A crise constitucional que se seguiu ultrapassou o tempo de duração da guerra em mais de uma década, com a Suprema Corte continuando a enfraquecer a legislação e as emendas constitucionais que deveriam proteger os escravos libertos, e o Congresso retaliando com a retirada da jurisdição da Corte. A resolução definitiva confirmou a abolição da escravidão e a união dos Estados, mas preservou um sistema segregado no Sul.

A segunda crise aconteceu na década de 30, quando a Suprema Corte derrubou estatutos do New Deal que deveriam tratar da emergência econômica provocada pela Grande Depressão. Em 1937, eleito pouco antes com uma vitória esmagadora, o presidente Franklin D. Roosevelt propôs uma lei para aparelhar a corte com juristas pró-New Deal. Embora a proposta tenha sido derrotada, a Suprema Corte recuou, revertendo sua oposição à regulamentação econômica. Mesmo depois de Roosevelt ter conseguido preencher as vagas e garantir uma maioria simpática, a Suprema Corte permaneceria receosa por outros 20 anos.

Dada a exaltada volatilidade política atual, não há como saber exatamente que forma a próxima crise constitucional assumiria; no entanto, seu contorno geral começa a ficar aparente. Assim como nas disputas anteriores, o direito capturou a Suprema Corte, mas perdeu a batalha para a opinião pública. Desde os anos 80, decisões conservadoras vêm coagindo as regulamentações econômicas nacionais - repetindo a anteriormente desacreditada postura da Corte pré-1937 - e criaram o direito individual da posse de armas, fortaleceram os direitos religiosos, derrubaram restrições aos financiamentos de campanha, enfraqueceram as proteções às minorias raciais e corroeram o direito ao aborto.

À esquerda, a insatisfação com a Corte vem fervendo em fogo brando desde a década de 80, mas dois acontecimentos levaram essa raiva ao ponto de fervura em anos recentes. Primeiro, o Affordable Care Act (Obamacare), a conquista progressista que foi a marca dos últimos 20 anos, foi colocado sob grave ameaça. A lei foi confirmada por pouco pela Suprema Corte em 2012 e desde então ela vem sendo surrada por uma série de desafios jurídicos nas instâncias inferiores da Justiça. Se a Suprema Corte emitir decisões ainda mais desfavoráveis ao Obamacare, o futuro não só desse programa como também o de qualquer legislação progressista ambiciosa estará em dúvida.

Em segundo lugar, os democratas não confiam mais que os republicanos jogarão de acordo com as regras no que diz respeito a nomeações de magistrados, graças às reviravoltas dos republicanos nas nomeações para a Suprema Corte. Tendo se recusado até mesmo a apreciar a indicação de Merrick Garland pelo presidente Obama para a Suprema Corte em 2016, alegando a aproximação das eleições presidenciais, a maioria republicana do Senado agora se apressou para sabatinar a indicada por Trump, Amy Coney Barrett, menos de um mês antes das próximas eleições.

Essa má-fé, juntamente com a má sorte no “timing” do surgimento de vagas na Suprema Corte, praticamente garante que haverá uma maioria conservadora na Corte, capaz de bloquear as propostas legislativas democratas por pelo menos os próximos quatro anos - e provavelmente por muito mais tempo.

A combinação de uma Suprema Corte de direita com a visível má-fé dos republicanos encorajou os democratas a jogar duro. Muitos à esquerda querem que o adversário de Trump, Joe Biden, se comprometa a “aparelhar a corte” se ele for eleito. Isso significaria aumentar o número de assentos - supostamente de nove para treze - para que mais quatro juízes possam ser nomeados e assim criar uma maioria amigável de 7 a 6 para uma agenda liberal.

É difícil exagerar o significado dessa proposta. O plano de Roosevelt de aparelhar a corte sofreu uma derrota devastadora e causou um dano político duradouro à sua Presidência. Aparelhar a Corte é um ato radical, uma tática de déspotas. E a Suprema Corte continua relativamente popular entre a população. Mesmo assim, Biden, apesar de seus instintos moderados, não tem sido capaz de se afastar da ideia, sem dúvida por estar preocupado com a reação da ala esquerdista do Partido Democrata.

Mas o problema de Biden não é com a esquerda; é, ou será, com a Corte. Afinal, sua campanha vem se concentrando cada vez mais na promessa de serviços de saúde e numa resposta mais forte à pandemia - duas áreas com as quais os juízes conservadores vem demonstrando grande hostilidade. Assim, se Biden vencer as eleições e conseguir a maioria nas duas câmaras do Congresso - algo de que ele precisará para implementar qualquer plano de aparelhamento da Corte -, ele enfrentará um dilema. Se ele tentar aparelhar a Corte, corre o risco de perder apoio dos democratas moderados, aumentando a polarização política e prejudicando a posição da Corte aos olhos da população. Mas se ele não fizer isso, poderá acabar politicamente impotente.

Até mesmo Roosevelt ficou embaraçado demais para chamar seu projeto de lei de plano de aparelhamento da Corte. Em vez disso, ele alegou que os juízes mais velhos do Judiciário federal precisavam ser complementados por colegas mais jovens. Biden, longe de gozar da mesma popularidade de Roosevelt, não tem boas opções a não ser esperar que os juízes conservadores da Corte demonstrem bom senso e moderem sua hostilidade com a legislação popular e as ações do governo.

John Roberts, presidente da Suprema Corte, demonstrou até aqui que isso é possível. Mas com a adição de Barrett à Corte, Roberts poderá se ver em minoria. E se Barrett unir-se aos outros quatro conservadores linha-dura em anular a determinação de um governo democraticamente eleito, a crise constitucional decorrente poderá levar anos para ser resolvida. (Tradução de Mário Zamarian).

*Eric Posner, professor na Universidade de Chicago, é autor de The Demagogue’s Playbook: The Battle for American Democracy from the Founders to Trump (All Points Books, 2020). Copyright: Project Syndicate, 2020.


Bruno Carazza: Dando nome aos bois

Processo sobre imposto sobre doações é exemplo de concentração de renda

No início dos anos 2000, uma notinha da coluna Radar, na revista Veja, contou que um ascendente empresário de São Paulo, mostrando-se interessado em comprar um jatinho Gulf Stream de última geração, perguntou a Abílio Diniz sobre os custos de manutenção da aeronave. O então dono do Grupo Pão de Açúcar teria respondido nos seguintes termos: “Se você se preocupa com esse tipo de questão, certamente ainda não está preparado para ter um avião como esse”.

De acordo com os registros da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), existem 46 jatinhos Gulf Stream voando pelos céus brasileiros. Quatro deles são modelos da sexta geração, cujo preço se situa acima de US$ 60 milhões, e foram comprados ou arrendados pelas famílias Diniz, Oliveira Andrade (Caoa) e Sanchez (farmacêutica EMS), além de uma empresa de táxi aéreo.

O que pouca gente sabe é que a propriedade de jatinhos de luxo não é tributada no Brasil graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 2007. Valendo-se de um malabarismo semântico e de uma frágil interpretação da evolução histórica da legislação, o ministro Gilmar Mendes convenceu a maioria de seus pares de que a determinação da Constituição de instituir impostos sobre a “propriedade de veículos automotores” (art. 155, III) só se aplica a veículos terrestres, não devendo ser estendida a aeronaves e embarcações (RE 379.572-4). A partir daí, ao contrário dos pobres mortais que pagam IPVA sobre seus carrinhos, os jatos, helicópteros, iates e lanchas dos multimilionários estão isentos.

Na última sexta (23/10) a instância máxima de nosso Judiciário iniciou um julgamento que pode ratificar uma nova benesse para os 0,001% mais ricos. Amparando-se numa ambivalência de outro dispositivo constitucional (desta vez o art. 155, § 1º, inciso III, alínea a), algumas das famílias mais ricas do Brasil recorreram ao STF para não terem de pagar tributos sobre recursos transferidos ou gerados no exterior por seus patriarcas e que agora retornam ao país na forma de doações a seus herdeiros. Alegando que o Congresso Nacional não aprovou uma lei complementar que deveria tratar da cobrança do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD) quando o doador tiver residência no exterior, nossos bilionários pretendem ratificar uma lucrativa estratégia de planejamento sucessório.

As alíquotas do imposto sobre heranças e doações no Brasil situam-se na faixa de 4% a 8%, a depender do Estado. Trata-se de um patamar bem inferior ao de países como Japão, Coreia do Sul, França, Inglaterra e Estados Unidos, onde superam 40%. No entanto, são tantas as isenções e regras especiais criadas justamente para beneficiar os mais abastados, que a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem defendido sua completa reformulação, mudando sua incidência do doador para o recebedor das transferências de renda intrafamiliares. De acordo com a proposta, o valor recebido como herança ou doação deveria ser considerado renda, e taxado na fonte com alíquotas bem mais altas.

Por aqui, em vez de ampliarmos o debate por uma maior igualdade e progressividade na tributação, as discussões sobre a reforma são interditadas pela gritaria de setores que se dizem prejudicados com as PECs que criam um Imposto sobre Valor Agregado de alíquota única e simplificada, aplicado de forma justa e igualitária para todos os bens e serviços. E enquanto a reforma tributária empaca no Congresso Nacional, o topo do topo da pirâmide de distribuição de renda recorre ao Judiciário para sacramentar seu “planejamento tributário” que envolve remessas de valores para paraísos fiscais e sua posterior repatriação sem imposto, com o consentimento do STF.

Quando estudamos as causas do subdesenvolvimento das nações, as elites econômicas e políticas são frequentemente apontadas como responsáveis pela criação de mecanismos que levam à concentração de renda e de poder nas mãos de poucos, em detrimento de milhões. Mas na maioria das vezes as críticas ocorrem em bases genéricas, sem apontar quem são essas elites e tampouco quais engrenagens elas utilizam.

No caso específico do julgamento do ITCMD sobre as heranças, temos uma rara oportunidade de dar nome aos bois. No parágrafo anterior, onde está escrito “elite econômica”, segundo levantamento feito pelas repórteres do Valor Joice Bacelo, Beatriz Olivon e Adriana Cotias, estamos tratando dos herdeiros das famílias Safra, Depieri (laboratórios Aché), Steinbruch (CSN), Bellini (Marcopolo) e os já citados Diniz, entre outros.

Já no polo da “elite política” estão os onze ministros do Supremo Tribunal Federal, que pode ratificar mais esse episódio de concentração de renda (RE nº 851108). Aliás, o relator Dias Toffoli já votou em parte favorável à tese dos mais ricos - o processo foi suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

As estimativas indicam que, só no Estado de São Paulo, esse presente para os bilionários pode passar de R$ 60 bilhões. Essa é a medida de mais um episódio explícito de benefícios concentrados para poucos e custos difundidos por toda a sociedade - afinal, todos nós acabaremos pagando o pato por essa perda fiscal, seja por meio do aumento de outros tributos, com juros mais altos ou uma maior inflação.

É bem verdade que nossa Constituição garante a qualquer pessoa recorrer ao Judiciário quando entender que seus direitos estão sendo lesados. Mas quando empresários bilionários se valem da Justiça para pagar menos impostos, eles perdem a legitimidade de reclamar do tamanho da carga tributária no Brasil e de suas distorções, pois eles são ampliados muitas vezes por privilégios criados em seu benefício.

Também não dá mais para admitir que a cúpula do Judiciário se valha de interpretações literais das normas para agravar um sistema de concentração de renda que se perpetua por décadas.

O caso da isenção da cobrança do ITCMD sobre a repatriação de recursos do exterior é mais um exemplo do mecanismo de concentração de renda brasileiro funcionando em toda a sua extensão.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Mathias Alencastro: Ruptura da diplomacia dos EUA acaba com papel de xerife do mundo

Confronto com China será maior legado do mandato de Donald Trump

Para um presidente que se define como ultranacionalista, Donald Trump se mostrou sempre muito investido, e por vezes até fascinado, pelas tramas de política externa.

A sua atitude de desprezo pelas instituições internacionais, tratadas como burocracias decadentes, contrasta com a forma apaixonada com que lidou com outras agendas diplomáticas.

Aos trancos e barrancos, ele redesenhou os jogos de poder em certas regiões do mundo e redefiniu o debate da política externa nos Estados Unidos.

A forma como estabeleceu os termos do confronto entre os Estados Unidos e a China será, sem dúvida, o maior legado do seu primeiro mandato. Pouco importa que a guerra comercial seja inócua ou até contraproducente.

Feito notável, Trump deixou claro para o cidadão médio norte-americano a maneira pela qual os planos de Pequim impactam a sua existência. Daqui para a frente, a identidade dos EUA se construirá em função da China.

O Oriente Médio é outro espaço transformado pelas suas iniciativas. Washington encerrou o ciclo iniciado pela Primavera Árabe com a transferência de poder regional do Egito, transformado em prisão a céu aberto, e da Síria, arrasada pela guerra civil, para a Arábia Saudita e as petromonarquias do Golfo Pérsico.

Causa espanto o entusiasmo de alguns com o potencial transformador dessas novas lideranças, mais conhecidas por decepar jornalistas, perseguir mulheres e chacinar populações inteiras, como no Iêmen. Mas deve-se reconhecer que as relações entre Israel e seus vizinhos saíram da inércia depois de décadas.

Em outros casos, Trump destacou-se pela inconsequência ou desinteresse.

A diplomacia tela quente na Península da Coreia trouxe pouco mais do que manchetes de jornais sobre cimeiras tão bizarras como fúteis. Para a desilusão dos teóricos do imperialismo, Trump tratou a América Latina como uma terra insignificante. Até a questão da Venezuela, de alto potencial eleitoral, acabou terceirizada para o senador Marco Rubio e o secretário de Estado, Mike Pompeo.

O declínio da influência americana na Eurásia trouxe consequências inesperadas. A União Europeia acabou reforçando sua coesão interna, como se viu nas negociações pelo pacote econômico de luta contra a pandemia. Os charlatões do brexit, que viram ruir o sonho de uma grande aliança com os Estados Unidos, tentam se virar com Canadá e Austrália.

No mediterrâneo, os atores regionais já operam em modo pós-Otan, com a Turquia emergindo como a principal antagonista política e militar dos europeus depois da Rússia.

Muitos pensam que, numa eventual derrota de Donald Trump, a ordem internacional irá se reconstituir num estalar de dedos do novo presidente Joe Biden. Isso seria subestimar as consequências dos últimos quatro anos.

A ruptura da diplomacia dos Estados Unidos abriu um espaço inesperado para potências médias consolidarem a sua autoridade. A questão não é saber se os Estados Unidos conseguem retomar o protagonismo, mas se a figura de xerife do mundo, criada por Washington, voltará um dia a existir. ​

*Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Ruy Castro: Um dia na vida do presidente

Ele não tomava medidas genocidas, não agredia as instituições, não mentia para a nação

"O Sr. Presidente da República acorda invariavelmente às 7 da manhã e, vestido de seu rôbe de chambre, tendo à cabeça uma touca de seda preta, dirige-se para o banheiro, onde toma banho morno. Depois do banho, S. Exa. bebe um copo de leite e, pouco depois, serve-se de café, que deve ser forte, rejeitando-o quando assim não acontece. Em seguida, faz sua toalete e passa a ler os jornais, dirigindo-se depois para a sala particular de sua Exma. esposa, onde conversa algum tempo, sempre com aquele modo frio, seco e pouco expansivo. Às 11 horas, almoça e desce para a sala de despachos no palácio, onde examina os papéis e as questões que tem de decidir.

"Durante o dia conserva-se na sala de despachos, em trabalho com os ministros que o procuram, ou vem à sala de audiências conferenciar com alguma pessoa sobre assunto importante. Nas terças-feiras dá audiências públicas no Salão Jardim, de 1 às 2 da tarde. À 1h30, toma S. Exa. um copo de leite e, às 2, uma xícara de café, continuando na sala de despachos até às 6 da tarde, quando não há muito serviço.

"Dirige-se a essa hora pela arcada interna do palácio para a sala de sua Exma. esposa e daí para a de jantar. É excessivamente sóbrio e não usa de vinhos. Depois do jantar, conversa com a família e recebe as pessoas de sua amizade, ficando às vezes até meia-noite. Nunca altera a voz e até com certa dificuldade se faz ouvir. À hora de dormir, toma um banho morno e, em seguida, um copo de leite. Etc. etc.".

O que se leu acima é parte de um texto de Ernesto Senna, o primeiro repórter brasileiro, publicado no Jornal do Comércio, sobre um dia na vida do presidente Prudente de Moraes, que governou de 1894 a 1898.

Grandes tempos. O presidente da então jovem República não tomava medidas genocidas, não agredia as instituições, não protegia filhos corruptos, não mentia para a nação. Não fazia nada. Melhor assim.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Celso Rocha de Barros: Veto à vacina mostra que Bolsonaro cede aos radicais em tudo que só ferrar os pobres

Presidente sabota a saúde pública para fazer guerra contra governadores e arrisca tornar o Brasil um pária internacional

Na semana passada, o presidente da República decidiu que o governo brasileiro não vai comprar a vacina Coronavac porque ela é fabricada na China. A vacina que o governo federal prefere, da Astrazeneca (a “vacina de Oxford”), também tem insumos chineses, mas Bolsonaro não se importa.

O que lhe pareceu importante foi atacar o governador de São Paulo, João Doria, que vai aplicar a vacina “chinesa” em São Paulo. De fato, nada demonstra melhor que as instituições brasileiras estão funcionando do que a condução de um debate científico por meio de crise federativa.

Em plena pandemia, vetar uma vacina para sabotar um adversário político é crime que deveria dar uma cadeia boa, mas, sinceramente, por que Bolsonaro teria medo disso?

O que aconteceu com ele nos primeiros 155 mil mortos? Ou dos dois primeiros ministros da Saúde que ele não deixou que fizessem seu trabalho? Não vejo por que Bolsonaro deveria respeitar limites que nunca lhe foram apresentados. Mas, além de ser crime, pode ter sido um erro.

Uma coisa é explorar a ignorância e a falta de solidariedade social dizendo que as pessoas não têm uma obrigação: a obrigação de ficar em casa durante a quarentena, a obrigação de usar máscaras, a obrigação de se informar com especialistas etc. Outra coisa é dizer que elas não têm um direito, como o direito de tomar a primeira vacina que for considerada segura e estiver disponível.

É fácil imaginar pessoas usando olavismo para justificar preguiça intelectual ou fraqueza moral. Outra coisa, bem diferente, é imaginá-las se sacrificando pelo olavismo.

Só quem seria estúpido o suficiente para fazer isso seriam, é claro, os olavistas e membros de outros grupos radicais nos extremos do bolsonarismo.

E, de fato, o veto à Coronavac agradou essa turma, que gosta de falar mal da China. Os doidões estavam chateados com Bolsonaro desde que o presidente indicou para o STF um moderado que sabe ver hora.

A propósito, cabe esclarecer que olavistas e similares não estão com raiva de Kassio Nunes por causa de acordão, combate à corrupção, centrão e nada disso.

Os radicais do bolsonarismo são pró-corrupção e, no fundo, querem uma boquinha. Não chiaram com Queiroz, com as manobras de Aras, com a demissão de Moro.

O que eles queriam era um golpista no STF que aceitasse, por exemplo, mentir que o artigo 142 da Constituição autoriza intervenção militar. Havia candidatos. Isso Bolsonaro não lhes deu porque precisava de um STF camarada no caso Queiroz. Como prêmio de consolação, deu-lhes os milhares de mortos e os meses adicionais de crise econômica que a falta de vacina deve causar.

O veto à vacina mostrou o quão vacilante é a recente moderação de Bolsonaro. Ele ainda faz questão de manter sua base extremista satisfeita, mesmo com custo de popularidade potencialmente alto.

Ele ainda aceita sabotar a saúde pública para fazer guerra contra governadores. Aceita o risco, cada vez maior, de tornar o Brasil um pária internacional. Os radicais ainda estão todos lá. A Abin investiga “maus brasileiros” que denunciam o desmatamento e protege “bons brasileiros” como Flávio Bolsonaro.

O veto à vacina mostrou que Bolsonaro continua cedendo aos radicais em tudo que só ferrar pobre.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Luiz Felipe Pondé: Revolução Russa é mais bem compreendida numa chave trágica

A liberdade é um recurso bruto: o conflito de valores e atitudes é seu destino

Nos Estados Unidos, a esquerda se chama liberal, com razão. A esquerda que sobrou é filha do liberalismo de John Locke (século 17) a John Stuart Mill (século 19). Um pressuposto básico do pensamento liberal desde Locke é a exclusão da violência como instrumento político legítimo.

A deslegitimação da violência como instrumento político é um fator essencial. Assim como a legitimidade da guerra como continuação natural da política por outros meios, como afirmou Carl von Clausewitz (1780-1831) no seu clássico "Sobre a Guerra", caiu em desgraça, a violência revolucionária teve o mesmo fim.

Restou à política os espaços institucionais e o mercado, que também têm se transformado em poder representativo da República, ainda que indireto, como a mídia o é há muito tempo. Daí o vínculo entre lugar de fala, marketing e cotas.

Mas talvez não tenha sido apenas a política como violência que fosse a justificativa para que os russos realizassem a revolução bolchevista.

A hipótese de Orlando Figes sobre a Revolução Russa em seu "A Tragédia de um Povo: A Revolução Russa (1891 - 1924)" (ed. Dom Quixote) —autor conhecido entre nós pelas suas obras "Uma História Cultural da Rússia" e "Sussurros" (sobre o stalinismo)— é mais bem compreendida numa chave trágica. O que isso quer dizer?

Isso quer dizer que a revolução aconteceu por inúmeras razões que escapam ao controle humano quando vistas numa longa duração entre 1825 e 1924. Como se o descontrole de um número gigantesco de variáveis desenhasse a própria noção de destino trágico traçado por forças que nos escapam do ponto de vista da razão.

A revolução começou em fevereiro de 1917, quando começa a queda do regime czarista, com protestos contra a falta de pão, massacres de gente aleatória, motins no Exército, casais transando nas ruas e sem nenhuma liderança objetiva única. Nem os bolcheviques acreditavam na revolução naquele momento.

Isso não quer dizer que, olhando pontualmente certos momentos na cadeia infinita de fatos, não percebamos a incompetência do Estado czarista no seu vai e vem diante da modernização europeia e a resistência a ela por parte de alguns setores da inteligência russa.

A vastidão infinita da Rússia e seus Estados satélites, a Primeira Guerra Mundial, a precariedade técnica e burocrática, a ignorância e a miséria profundas e a inapetência do "governo provisional" pré-bolchevique são causas identificáveis, mas incontroláveis quando postas lado a lado.

A interpretação forte dessa hipótese nos leva à suposição de que uma revolução dessa magnitude só acontece como tragédia.

Ninguém —nem mesmo Kerenski, Lênin, Trótski ouStálin, seus protagonistas conhecidos— foi, de fato, senhor do processo. A contingência foi a senhora da história. E quando a contingência é a senhora da casa, estamos na casa da tragédia.

A Revolução Russa, cozida profundamente sob o impacto do racionalismo hegeliano, acabou por se provar anti-hegeliana e antimarxista: não há agente histórico racional capaz de conduzir nenhum processo histórico dessa magnitude.

O liberalismo como tradição exclui qualquer opção violenta e pretende conter toda ação política e social dentro de uma racionalidade institucional. Entretanto, como bem viu Isaiah Berlin (século 20), muito influenciado pela inteligência russa do 19, a liberdade é um recurso bruto: o conflito de valores e atitudes é seu destino. Daí ser ele denominado por John Gray, já no século 21, como o liberal trágico por excelência.

A liberdade como dado bruto representa a cegueira final dos processos históricos. Isso não implica recusa da liberdade, mas sim percepção de que ela, assim como sua mais nova ferramenta, as redes sociais, é da ordem da fissura do átomo e da energia nuclear.

Tolstói, no epílogo da segunda parte do seu "Guerra e Paz", desenhou a melhor teoria da história para esse quadro: a história é cega e resultado de infinitas ações que escapam ao nosso controle cognitivo e a nossa vontade.

Nunca sabemos para onde vamos. Somos agentes da contingência, e não de um processo histórico racional.Luiz Felipe Pondé

*Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.


Marcus André Melo: Manipulação eleitoral nos EUA e no Brasil

Há justificada perplexidade em relação à governança eleitoral na maior democracia do mundo.

A criação de barreiras à participação de determinados segmentos do eleitorado é inédita nas democracias. As formas que essa exclusão potencial assumem são variadas: exigências peculiares quanto ao voto pelo correio, problemas de acessibilidade às cabines de votação ou quanto à sua localização, além de exigências quanto à identificação do eleitor.

A situação é tão crítica que os estados com um histórico de práticas excludentes têm que submeter as alterações de procedimentos ao Departamento de Justiça. No passado, tais práticas consistiam de exigências como quitação de taxas individuais ou testes severos de alfabetização, o que acabava excluindo a população negra e/ou pobre.

Entre nós a exclusão dos setores pobres é muito mais complexa. A Lei Saraiva (1881) proibiu o voto dos analfabetos; a legislação posterior referendou-a, mas a implementação era pífia. As coisas só mudam na prática com a adoção, em 1955, da cédula oficial em substituição as fornecidas pelos próprios partidos, e que permitia a violação sutil do sigilo do voto.

A nova cédula exigia que o eleitor escrevesse o nome/número dos candidatos para os vários cargos, o que acarretou uma enorme expansão dos votos inválidos. A cédula distribuída pelos partidos já continha esta informação, o que permitia que os analfabetos votassem. Prevalecia assim um equilíbrio perverso que permitia a sobrevivência política de elites rurais com controle histórico sobre um eleitorado cativo.

Os bastidores da reforma de 1955 estão disponíveis na forma de registro diário e detalhado das negociações ocorridas entre 11 e 26 de agosto daquele ano, transcritas pelo paladino da reforma, Afonso Arinos, em suas memórias. Tratava-se de uma das medidas da UDN contra o abuso de poder do getulismo, e contou com apoio ativo da Igreja Católica e do TSE, e pressão dos militares. O ator chave, o PSD (majoritário no Congresso), só retirou seu veto após a garantia de que a cédula oficial também pudesse ser distribuída pelos partidos na eleição de 1955.

Esse estado de coisas foi simbolicamente alterado com a extensão do voto aos analfabetos pela emenda constitucional 25, de 1985; a mudança radical ocorreu em 2000, com a adoção da urna eletrônica. A percentagem de votos em branco e nulos que era uma das maiores do mundo —a média para o período 1980-2000 chegou a inimagináveis 37%, enquanto na Costa Rica, Uruguai, Chile, Argentina girava em torno de 5%— caiu brutalmente.

Desde 2000 o Brasil é modelo de governança com altas taxas de comparecimento às urnas e baixas taxas de votos nulos.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).


Fernando Gabeira: Vai-se a segunda pomba

Existe uma vacina contra a raiva, mas não existe uma vacina combinada contra raiva e estupidez

Vai-se a primeira pomba despertada…/Vai-se outra mais…/ Mais outra…/ Enfim dezenas…

Quando menino, costumava declamar esse soneto de Raimundo Correia na escola. Éramos endiabrados e fazíamos piadas de duplo sentido quando a ingênua professora dizia para as meninas que liam os versos: mostrem a pomba.

Essa lembrança me veio à cabeça com a publicação do Anuário de Segurança Pública, revelando o fracasso da política de Bolsonaro para conter a violência no país. Vai-se a segunda pomba, pensei.

A primeira já se foi há algum tempo. Era a luta contra a corrupção. Bolsonaro demitiu Moro, Queiroz foi preso, surgiram inúmeros dados sobre rachadinhas e funcionários fantasmas na família do presidente. Rolou muito dinheiro vivo, compra de lojas, apartamentos , os Bolsonaros não confiam em banco. O dinheiro tanto rolou que terminou aparecendo na cueca do senador amigo, Chico Rodrigues.

Pobre lobo-guará. As notas com sua estampa estrearam nas nádegas de Chico. Conheço uma família de lobo-guará que come todas as noites no pátio do Colégio do Caraça. Os padres que alimentam os lobos precisam rezar por nós.

Apesar da pandemia, o número de mortes aumentou em 7% em 2020. Havia caído em 2019. Era resultado do governo Temer, que criou o Ministério da Segurança, o sistema integrado e fez a intervenção militar no Rio. Bolsonaro e Moro celebraram, faz parte do jogo. Mas o mérito estava lá atrás.

Um país que tem um estupro a cada oito minutos, com uma cidade como o Rio, que perdeu mais de 50% do território para as milícias, homenageadas no passado pelos Bolsonaros, é, no mínimo, inseguro, para não dizer falido.

Bolsonaro apenas aumentou o número de armas. Seu objetivo único é ganhar votos com policiais. Seu projeto: uma licença para matar que leva o pomposo nome de “excludente de ilicitude”.

No momento em que era preciso um olhar atento de um especialista em segurança, Bolsonaro não conseguiu ver as limitações do artigo que libertou André do Rap. Simplesmente, sancionou.

Não é apenas a segunda pomba que vai. Vai-se outra, mais outra. Ao ser acusado de estupro na Itália, o jogador Robinho disse que era como Bolsonaro, perseguido pelo demônio . Ele acha que basta citar Bolsonaro e um trecho de Bíblia para justificar crimes cruéis. Em breve, essa máscara de profunda religiosidade vai cair para mostrar a verdadeira face do oportunismo político. Eduardo Cunha era supercristão, elegia-se usando rádios religiosas. A deputada Flordelis, acusada de matar o marido, é pastora, e o pastor Everaldo, que batizou Bolsonaro, está na cadeia.

Numa dimensão mais profana, em breve voará a pomba dos devotos da Santa Margaret Thatcher. Ela sempre aparecia com a bolsa no pulso, sem mexer um músculo do braço. Seus discípulos tropicais rodam a bolsinha incessantemente em busca de recursos para garantir a reeleição de Bolsonaro.

Muitos eleitores não veem quais sonhos de campanha não voltam, como voltam as pombas ao entardecer. Ficam bravos, lembram que fui um perigoso terrorista ou que usava uma tanga de crochê, não importa. É importante, no entanto, continuar mostrando o voo das pombas e de suas ilusões.

Mesmo com parte do país em chamas, com o crescimento da fome, o aumento da violência e do jugo das milícias, é preciso argumentar com eles. Alguns seguirão fiéis ao líder, mas, no fim do caminho, o Brasil pode reencontrar sua chance de ser grande país.

Existe uma vacina contra a raiva, mas não existe uma vacina combinada contra raiva e estupidez. Bolsonaro não consegue ver um vírus tal como é, mas sempre como um vírus que tem partido: é chinês ou vota em Doria.

Ao cancelar a compra de vacinas formuladas na China, mas produzidas pelo Butantan, Bolsonaro não apenas desautorizou um general que deixou tudo para ajudá-lo, adotando uma política que ameaça inclusive a presunção de sensatez das Forças Armadas.

Da negação do coronavírus à apologia da cloroquina, Bolsonaro percorreu todas as etapas de uma política insana.

Foram-se todas as pombas, e só os bolsonaristas não viram.


O Estado de S. Paulo: Saab quer ajuda do governo Bolsonaro para vender Gripen a outros países

O suporte do Brasil, da FAB e da Comissão do Programa da Aeronave de Combate será 'extremamente importante' para chegar a outros mercados, como a Colômbia, afirma o presidente da Saab

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O presidente e CEO da empresa sueca SaabMicael Johansson, aposta na parceria com o governo Jair Bolsonaro para abrir mercados aos jatos F-39, o Gripen, principal projeto estratégico da Força Aérea Brasileira (FAB). Em entrevista ao Estadão, o executivo afirma que o Brasil pode ajudar a convencer governos como a Colômbia a comprar o “jato muito fácil de pilotar”, como ele define. Johansson diz que a expansão favorecerá a indústria de Defesa nacional. 

Micael Johansson
Micael Johansson, presidente e CEO da Saab Foto: Dida Sampaio/Estadão

A aeronave de origem sueca está sendo desenvolvida e melhorada em parceria com a Aeronáutica e empresas nacionais. Dos 36 comprados pelo governo, o primeiro foi apresentado na sexta-feira, 23, em cerimônia em Brasília. Bolsonaro entrou no cockpit. Johansson evita criticar a política ambiental brasileira, um tema caro à sociedade sueca. Ele diz ser favorável à “globalização e ao mercado aberto”. O CEO da Saab ressalta que o Brasil, mesmo diante de dificuldades econômicas, deve manter investimentos no projeto para não perder o conhecimento tecnológico adquirido na parceria iniciada em 2014: “É muito difícil de recuperar”.

Depois de tantos anos, atrasos, qual o sentimento de entregar o primeiro caça Gripen?

Esse tem sido um grande projeto. Não é somente nós desenvolvendo e entregando a primeira aeronave, o que é um algo grande. Esse é um relacionamento entre as forças aéreas e a indústria brasileira. Tivemos muito sucesso na transferência de tecnologia, que é uma grande porção deste programa. Vamos continuar a entregar aeronaves, quatro no ano que vem, mas tem toda a relação, as indústrias beneficiadas aqui, isso é um grande conquista. É um projeto sofisticado e complexo.

Como foi trabalhar com parceiros brasileiros na transferência de tecnologia?

Nós já tínhamos feito transferências antes, mas limitadas, mas nada como esta. Não teria sido possível se o Brasil não tivesse uma indústria muito boa, uma indústria aeronáutica com que podemos trabalhar. A Embraer é o exemplo óbvio, mas há outras que puderam receber essa tecnologia. De outra forma, não funcionaria, teríamos que construir algo do zero, o que é extremamente difícil. O Brasil tem uma indústria sofisticada e competitiva, que pode receber essa tecnologia, e esse foi um fator-chave para o sucesso.

Qual o principal ganho para a indústria aeronáutica brasileira no projeto Gripen?  

Foi um atalho para serem os fabricantes, montadores, prestarem suporte e desenvolvimento de sistemas. O sistema desses caças vai se desenvolvendo ao longo de anos e anos. Esse trabalho dura décadas. Ter um centro no Brasil para fazer esse desenvolvimento de software é um enorme benefício para a indústria local e para a Força Aérea Brasileira, em termos de segurança de fornecedores e capacidade de soberania. Isso leva a negócios, porque algumas empresas-chave são parte do sistema do Gripen, independentemente. Quando vendermos a aeronave no mercado mundial, elas serão parte da cadeia de fornecedores global, e isso é muito importante para elas.

Qual a principal contribuição brasileira ao projeto Gripen?

O Brasil foi um cliente que fez requisitos adicionais ao produto final. A indústria no Brasil criou coisas. O Brasil adicionou muito valor ao sistema, como as telas (tela panorâmica, monitor no capacete, visor frontal) que estarão em todos os caças Gripen ao redor do mundo. A indústria brasileira é parte da cadeia de suprimentos.

Como o senhor enxerga o poder da FAB como força aérea, que agora terá o cargueiro KC-390 e o Gripen?

São plataformas completamente diferentes. O KC-390 é fantástico, é uma aeronave de transporte, pode ser tanque, tem ótima tecnologia. Mas não é um caça. Um caça é diferente. A FAB será muito competente e forte, terá uma grande capacidade quando tiver o KC-390 e o Gripen, com certeza. 

Um de seus objetivos como presidente e CEO da Saab é aumentar os negócios com outros países. Como esse projeto no Brasil participa do plano, as aeronaves brasileiras serão parte do cardápio da Saab?

Eu vejo dessa forma. Somos uma companhia de um país distante no Norte, não temos uma população tão grande. Para crescer e depois desenvolver nossa companhia, temos que nos tornar multidomésticos. O Brasil é definitivamente um dos países em que concentro energias com parcerias locais, para crescer nossa presença no País, o que é ganha-ganha, para nós e para a indústria brasileira. E para o hub de Defesa brasileiro no mercado internacional, criando exportações do Brasil para países estrangeiros. Isso encaixa muito bem na nossa estratégia como empresa.

O Gripen brasileiro poderia servir à Força Aérea de outros países?

Eu li que a Colômbia poderia comprá-los. E a Índia também estaria interessada. Definitivamente. O sistema básico é muito sofisticado e nossos clientes pedem algumas adaptações, bem fáceis de fazer no Gripen. Nós fizemos uma oferta à Colômbia e somos competitivos. O suporte do Brasil, da FAB e da Copac (Comissão do Programa da Aeronave de Combate) será extremamente importante.

Como o governo brasileiro pode ajudar?

Contando aos políticos colombianos e usuários sobre esse projeto que fazemos no Brasil, sobre o que é e como vem dando certo. O Brasil entraria no mercado latino-americano e poderia oferecer suporte à Colômbia. O que é muito melhor do que nós darmos apoio da Suécia, que é muito mais distante. Obviamente, a ajuda do Brasil teria um papel decisivo para vencer na Colômbia.

E quais outros países?

Temos outras campanhas em andamento. Na América Latina, com tempo, talvez haja interesse no Chile e no Peru. Mas o país que está conversando, com processo acontecendo agora, e espero que decidam ainda neste ano, é a Colômbia. E temos que trabalhar do Brasil. Temos outras frentes, como Índia, Canadá e Finlândia. Temos ainda um bom mercado lá fora.

Os brasilienses foram surpreendidos nesta semana com o caça Gripen sobrevoando suas casas, em área residencial. No que mais esses caças vão surpreender os brasileiros?

Sei que vocês têm uma Força Aérea muito competente, mas é um ganho de capacidade. Ele pode fazer muitas coisas e surpreender o povo brasileiro. Acreditamos muito que cada país tem que defender sua população, dar segurança à sociedade e proteger suas fronteiras. O Gripen integrado à FAB terá um grande papel nisso. Quando tivermos mais e mais Gripens no Brasil as pessoas ficarão mais surpresas quando eles voarem. Você escuta o caça, e depois o vê. Mas é muito mais que isso.

O senhor já negocia a compra de outros lotes da aeronave? Parece que a FAB deseja ter mais de 100 caças.

Nós escutamos isso, que a necessidade é maior do que de apenas 36 caças, o que já foi bom. Mas não sei quando será a hora de começar essa discussão. Nós vamos ajudar quando quiserem abrir a conversa. Nós mostramos que podemos entregar e que a aeronave está funcionando como previmos. Mantivemos nossos compromissos. Eu penso que, como em qualquer outro país, isso é importante para um próximo passo. Depende da Força Aérea Brasileira, de o governo decidir quantas aeronaves e quando. Mas estamos prontos para ajudar quando esse dia chegar.

O Brasil enfrenta uma recessão, alta de desemprego. O senhor enxerga problemas orçamentários ao projeto Gripen no futuro?

Eu não sei. Estamos tendo conversas muito positivas com a FAB e a Copac. Eu respeito esses efeitos na economia. O Brasil é uma economia grande, com uma população grande e muitas iniciativas. Eu entendo que a economia é importante. Mas só podemos explicar que, quando entregamos um sistema como esse, trabalhamos com a indústria, com a Força Aérea, treinamos pilotos, mais de 350 engenheiros vão a treinamento na Suécia e voltam para trabalhar nesse sistema… Sempre tentamos alertar que é importante tentar manter essa competência indo. Se perdermos essas habilidades, e tivemos essa experiência em alguns momentos na Suécia, é muito difícil de recuperar. Criamos uma capacidade fantástica com a indústria no Brasil e desejo que todos entendam o que isso significa, para não perder a capacidade de os engenheiros trabalharem com o sistema. Eu não sei quando mais jatos poderão ser encomendados. Nós teremos que acompanhar a economia brasileira e explicar o que podemos oferecer com o melhor preço. Alguns aspectos-chave do nosso Gripen são: um custo razoável, boa tecnologia, transferência de tecnologia e uma capacidade fantástica. É um bom mix.

O que faz dos Gripen E e F tão únicos?

O sistema integrado. Sei que essa é uma palavra complicada, mas ele pode se comunicar com outros sistemas e plataformas. Os navios e outras aeronaves podem se comunicar. E quantidade de sensores, a interface homem-máquina, que usa inteligência artificial para dar a melhor consciência da situação ao piloto, para que ele possa ter controle e tomar as decisões certas. É um jato muito fácil de pilotar. Não diria que é fácil ser um piloto, mas voar essa aeronave não é a coisa mais complicada. Outra coisa é que criamos uma arquitetura dividida. O cliente pode aprimorar a aeronave com novas funcionalidades táticas, sem afetar a segurança de voo. Isso é chave. Um país pode viver com essa aeronave por décadas.

A guerra eletrônica ou cibernética é uma das principais discussões no mundo hoje. Qual o preparo do Gripen para isso?

Primeiro, ele tem um sistema de guerra eletrônica fantástico. Se você voa nesse caça, você escuta passivamente tudo o que vem dos sinais. Ter um sistema sofisticado de guerra eletrônica é um aspecto fundamental. O sistema é resiliente a ciberataques, com certeza. E ele pode causar interferências. Se alguém tentar descobrir quem você é ou tentar atrapalhar o voo, o piloto pode provocar interferências contra fonte. O jato tem muito conteúdo relacionado com ciber-seguro, e também trabalhar num ambiente eletrônico complexo. Porque vai ser assim no futuro. Teremos ambientes extremamente difíceis de atuar com qualquer sistema, com muitas iniciativas de tentar afetar sistema com sinais eletrônicos. O sistema do caça tem que poder trabalhar nesse tipo de ambiente.

E o que fez dele o mais indicado para o Brasil?

A relação entre um custo justo para o País obter sua capacidade de soberania, em termos de transferência de tecnologia, habilidades, desempenho e um ciclo de vida com custo competitivo. Na realidade, não é um avião tão caro para voar ao longo do tempo. Tudo isso junto, acho que muitos países pensam ser bom.

Quero lhe fazer uma pergunta sobre política.

Mas sou um homem de negócios.

Por isso mesmo quero ouvir sua opinião.

Eu entendo.

O acordo entre a União Europeia e o Mercosul tem sido barrado por alguns países por preocupações com os problemas ambientais do Brasil. Como isso é tratado pela Saab? Isso pode afetar esta parceria e outras futuras?

Não tenho uma opinião a respeito. Claro que acompanhamos, porque é bom ter comércio aberto e boas relações com países, mas nossa companhia é humilde e respeita a política interna dos países. Os povos e seus governos devem decidir suas políticas. Não tenho uma opinião sobre os países que falam sobre a política ambiental do Brasil. Espero que sempre haja boas relações, como deveria haver, entre muitos países e o Brasil. O que seria benéfico para nós, é claro.

O que o senhor explica aos políticos suecos e como eles reagem à cooperação com Bolsonaro?

Nós trabalhamos com esse programa a longo prazo. Estaremos no Brasil por décadas. Em muitos países, haverá novas eleições. É uma decisão do povo eleger o presidente. Nós garantimos que, se um país quer se proteger e temos boa relação entre as forças aéreas, nós trabalhamos com ele. Não nos envolvemos. Da perspectiva sueca, não se trata dessas coisas, mas de o Brasil ter boas relações em muitos aspectos. Não tem nenhum tipo de controle ou restrições de exportações com o Brasil, não é o caso, então não vira um tema.

O conselheiro de segurança do presidente, ministro Augusto Heleno, do GSI, disse durante uma entrevista que o Brasil poderia retaliar por causa de boicotes a produtos brasileiros provocados pelas questões ambientais. Ele disse: “Você já comprou algo sueco alguma vez? Eu não me lembro de ter nenhum produto em casa”. Isso afeta os negócios?

Eu acredito na globalização, no livre comércio. Acho que não se deve usar isso quando se entra em discussões políticas. Não tenho uma visão sobre isso. Não cabe a mim, eu não discuto essas questões com políticos suecos. Espero que a Suécia e todos os países entendam que a melhor maneira de compreender um ao outro e como as pessoas agem é manter o mercado aberto e fazer negócios entre eles, em vez de fechar fronteiras, ser protecionista. Acredito fortemente nisso. Porque, claro, eu venho de um país cuja economia é completamente dependente de exportações.


Luiz Carlos Trabuco Cappi: Superar a acomodação

Há muito tempo o País cresce de forma letárgica, 1% ou 2%, isso quando não temos recessão

Um dos pensadores mais influentes do século 20, Jean Piaget definiu o termo acomodação como uma etapa natural do processo evolutivo. Podemos dizer que é nessa fase em que nos encontramos, com a economia paralisada diante das atuais circunstâncias.

Passada a fase mais crítica da covid-19, chegou a hora de pensar no futuro que queremos para o Brasil, a economia e a nossa cidadania. Vamos deixar de lado, por enquanto, a hipótese de uma segunda onda da pandemia. O País sairá dessa crise sanitária com problemas econômicos sérios, mas que podem ser resolvidos, e com o desafio de voltar a crescer num ritmo robusto e duradouro. Temos os alicerces para isso: instituições sólidas, democracia, sociedade civil ativa e influente, boas universidades, boas empresas, bons profissionais.

O Brasil não é um país pobre, pequeno ou irrelevante no plano mundial. Já é tempo de reorganizar todos esses ativos com a finalidade de reingressar num ciclo de desenvolvimento econômico e de progresso social compatível com a nossa história e com as nossas possibilidades.

Devemos nos levantar e seguir em frente.

Entre os problemas a resolver está a grave questão fiscal. Os gastos essenciais feitos pelo governo em saúde e no auxílio emergencial provocaram um déficit que deve elevar a dívida pública a algo próximo de 100% do PIB. A parada repentina da economia em 2020 fez subir o número de desempregados para 14 milhões e provocou o fechamento de empresas. É preciso um programa de assistência a vulneráveis, responsabilidade da qual não podemos fugir.

Os manuais de economia têm soluções para crises fiscais, insolvência, desemprego, mas a resposta definitiva é o crescimento econômico consistente. Essa é a pauta que devemos colocar no topo das prioridades do País e fazê-la avançar com foco e energia.

A primeira barreira a ultrapassar, como já vimos, é a da acomodação, um fenômeno natural depois de décadas de programas de estabilização e ajustes, seja por causa da hiperinflação e das crises cambiais, seja, como agora, o descontrole fiscal.

Há muito tempo o País cresce de forma letárgica, 1% ou 2%, isso quando não temos recessão. Com essa situação, damos as costas às nossas desigualdades sociais. Sem crescimento, é impossível combater a miséria e acirram-se os conflitos de interesses.

A primeira coisa a resgatar, portanto, é a ambição de assumir o crescimento como meta central. Na virada das décadas de 1930 e 1940, o País optou pela industrialização e urbanizou-se. A renda per capita dobrou nas primeiras quatro décadas do século 20 e quintuplicou nos 40 anos seguintes.

No referido ciclo, surgiram a moderna indústria brasileira, as grandes obras de infraestrutura e a expansão das fronteiras agrícolas. O sistema financeiro ganhou escala, capilaridade e capacidade de fomentar a economia. Foram anos de crescimento contínuo e a taxas muito mais altas do que as que vemos hoje.

Entre 1946 e 1957, o PIB brasileiro cresceu, em média, 6,33% ao ano. No ciclo seguinte, entre 1958 e 1978, a taxa média anual atingiu patamares chineses: 7,39%.

A partir desse ponto, lidando com fatores como hiperinflação e crise da dívida externa, perdemos a perspectiva do crescimento. A estabilização econômica passou a ser a tônica. Entre 1979 e 2003, a taxa média anual retrocedeu para 2,26% e chegou a 3,80% no período entre 2004 e 2012. Os piores resultados se deram em 2015 e 2016, quando o PIB ficou negativo respectivamente em 3,55% e 3,31%. Desde 2017 não crescemos além de 1,1% ao ano.

Assim como a hiperinflação foi resolvida com o Plano Real, agora precisamos superar a estagnação com um programa abrangente de desenvolvimento e modernização que priorize a educação, a inovação, a tecnologia e a infraestrutura, sem as quais nossas iniciativas serão efêmeras, parciais e isoladas.

Dificuldades fazem parte da evolução humana – não podemos nos vitimizar em razão das ilusões perdidas. É hora de afirmar nossa vocação para o desenvolvimento.

PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS