Day: outubro 16, 2020

Bruno Boghossian: Senador da cueca simboliza relação de Bolsonaro com baixo clero

Presidente levou representantes da planície da política para o Palácio do Planalto

O presidente não gostou da repercussão da batida policial que encontrou dinheiro na cueca do senador Chico Rodrigues (DEM). “Não tenho nada a ver com isso”, reclamou. O que se sabe do caso até agora não sugere uma conexão entre os desvios e o Palácio do Planalto, mas o protagonista do escândalo simboliza bem as relações políticas de Jair Bolsonaro.

Agora notório, Rodrigues foi um deputado típico do baixo clero por cinco mandatos. Nunca liderou a bancada de um partido e só presidiu uma única vez uma comissão da Câmara. Foi na planície que ele conheceu Bolsonaro, um político que habitou esse território por três décadas.

Num vídeo que voltou a circular depois da operação, o hoje presidente chama Rodrigues de “velho colega de Câmara” e brinca que a relação de 20 anos entre os dois era “quase uma união estável”. Não foi surpresa, portanto, quando o parlamentar inexpressivo se tornou vice-líder do governo no Senado, nos primeiros meses de mandato de Bolsonaro.

A função é quase alegórica. Quem apita, na maioria dos casos, é o líder de fato. Ainda assim, ela carrega algum peso –tanto é que, no meio do ano, o presidente usou os cargos de vice-líder na Câmara para mudar o perfil do governo: afastou deputados da chamada ala ideológica e instalou ali parlamentares do centrão.

Além da longevidade conjunta no baixo clero, o que uniu a dupla foram conexões políticas igualmente desimportantes. Na antiga gravação, Rodrigues enalteceu Bolsonaro por seu patriotismo e pela “defesa dos princípios da família”. Depois, já no Planalto, o presidente elogiou a postura do aliado contra a obrigatoriedade da troca de taxímetros.

Bolsonaro carregou para o gabinete presidencial as companhias e a lógica política de seus anos no Congresso. Estão com ele a mesma retórica vazia, as mesmas plataformas frívolas e as mesmas bandeiras moralistas. Rodrigues expõe ainda o hábito de certos personagens que costumam cultivar outros valores. Estes são guardados em dinheiro vivo.


Alon Feuerwerker: Um adversário de cada vez

O centro erra ao combater ao mesmo tempo a esquerda e a direita

O movimento do presidente Jair Bolsonaro no sentido de uma composição com o chamado Centrão parlamentar tem algo, sim, de moderação. Mas já foi bem diagnosticado como uma guinada para a preservação do poder. Ele soube detectar de onde vêm as maiores ameaças: daqueles que o ajudaram na eleição, mas a contragosto.

A flexão tática bolsonarista ao dito centro trouxe um efeito colateral interessante, um fenômeno ainda por medir e observar. Um “novo centro” que, paradoxalmente, radicaliza pela direita. Uma reação de parte do bolsonarismo puro e deixado para trás, agora já um quase ex-­bolsonarismo, e que tem tudo para se agrupar em torno do ex-ministro Sergio Moro.

Aliás, como era previsível, e foi previsto, ele desponta firme para se viabilizar no arco-íris do autodeclarado centrismo.

Aconteceu algo semelhante com Luiz Inácio Lula da Silva quando precisou se dobrar à realidade da política. Mas com uma diferença. O que espirrou para fora do barco (o PSOL) não tinha então musculatura nem lideranças capazes de fazer o PT sofrer de verdade a curto prazo.

Se juntar Luciano Huck, Sergio Moro e João Doria, algum jogo pode dar. Há a natural dificuldade de fazer dois dos três abrir mão. Até porque o prêmio parece apetitoso: assumir a Presidência da República com o apoio maciço do establishment e do que Roberto Campos chamava de “a opinião publicada”. Algum membro do trio aceitará ser vice? Vai saber…

“Se juntar Huck, Moro e Doria, algum jogo pode dar, mas será difícil fazer dois deles abrir mão”

Um desafio? O Brasil não chegará a 2022 em situação econômica brilhante. Haverá provavelmente, e inclusive em decorrência da Covid-19, mais pobres e quase tantos desempregados quanto havia quando Dilma Rousseff foi removida do Planalto. Se não mais.

Por que a referência é o ocaso de Dilma? Porque ao fim de 2022 já terão se passado longos mais de seis anos desde que foi apeada. E de lá para cá as políticas econômicas vêm seguindo uma linha de continuidade. E sempre com o apoio do antibolsonarismo dito de centro. É razoável, portanto, que o debate em 2022 volte a girar em torno da economia. O resultado das escolhas feitas. Isso se a oposição for esperta.

Um debate político centrado na economia não será muito confortável para o chamado centro, em seus diversos matizes, pois terá de explicar por que depois de mais de seis anos as coisas continuam, na essência, do jeito que estavam antes. E como encarnar o anseio de mudança propondo mais do mesmo? Não será trivial.

E tem ainda aquele outro problema, já detectado em 2018. A insistência em querer combater simultaneamente a esquerda e a direita que se assume como tal. É a história do gato que persegue dois ratos ao mesmo tempo. O mais provável, quase certo, é não capturar nenhum. Aliás, a experiência de 2018 já deveria ter servido para alguma coisa.

Poderiam aprender também com Joe Biden. Não dá para antever que o democrata vai ganhar, mas, por enquanto, ele mostrou ter absorvido uma lição fundamental na política. Procure sempre acertar na definição do adversário principal, que a cada momento é apenas um. O custo de errar nisso costuma ser muito alto.

*Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709


Eliane Cantanhêde: Dói na alma

A nova obsessão do Bolsonaro 4.ª versão é a ‘sua’ vacina contra a ‘dele’, Doria

Em seu quarto personagem desde a eleição e a posse, há menos de dois anos, o presidente Jair Bolsonaro vai se metamorfoseando de acordo com as circunstâncias e conveniências políticas, mas de uma coisa ele não abre mão: dobrar a aposta a toda semana, a toda hora, na sua versão da “gripezinha”. São 152 mil mortos, mais de 5,1 milhões de contaminados e o discurso do presidente do Brasil é o mesmo, inacreditavelmente, irritantemente, negacionista.

Eu estava no velório do jornalista Alberto Coura, na quarta-feira, quando Bolsonaro insistiu que a pandemia é “superestimada”. Como assim? O que mais é preciso, no Brasil e no mundo, para o presidente admitir para sua gente que o coronavírus é grave, gravíssimo, uma tragédia na história da humanidade? Ele sabe exatamente o que se passa, mas não admite por estratégia, por cálculo político. Aliás, como fez e faz seu ídolo e mentor Donald Trump nos EUA.

Beto Coura, que foi da EBC e assessorou o ministro Celso de Mello na presidência do Supremo, era muito querido em Brasília e casado com a também jornalista Vanda Célia. Tinha 63 anos, passou 84 tenebrosos dias numa UTI e morreu em função do vírus. Como falar que a pandemia foi “superestimada”? Como ouvir isso sem sentir indignação, pelo Beto, pela Vanda, pelos 152 mil mortos e suas famílias? Dói na alma.

Desde o início – quando o mundo inteiro já estava em alerta, mas ele e Trump davam de ombros – Bolsonaro não está preocupado com vírus, contaminação, mortes. Só teme o efeito na sua popularidade, no seu governo e na sua reeleição. A frase dele, ainda em março, diz tudo: “Se afundar a economia, acaba meu governo, acaba qualquer governo. É uma luta pelo poder”. Não, presidente, não é uma luta pelo poder, é uma luta pela vida.

O atual grande risco é a politização da vacina, única boia salva-vidas contra esse maldito vírus, que chega numa segunda onda e apavora novamente a Europa. Não satisfeito em relevar a obrigatoriedade de tomar a vacina, Jair Bolsonaro não acha fundamental uma vacina para acabar a pandemia, mas que a “sua” vacina chegue antes da “dele” – a do governador João Doria. Seria só mesquinho, não fosse odioso.

Ao dar ouvidos aos terraplanistas do governo, prevendo 3,5 mil mortes, e a empresários oportunistas, que imaginavam “só” 6 mil, Bolsonaro agia pensando nele mesmo. Daí vieram: “gripezinha”, “histeria da mídia”, “não sou coveiro”, “todo mundo vai morrer”, “e daí?”. Desdenhou do isolamento, promoveu aglomerações (inclusive golpistas), descartou as máscaras, demitiu dois ministros da Saúde, deixou um general interino por meses, faz propaganda de um remédio sem comprovação contra o coronavírus e, por fim, ameaça a vacina.

Bolsonaro já foi anti “velha política” e Supremo, “Jairzinho Paz e Amor”, candidato de chapéu de vaqueiro e carregando criancinha. O quarto Bolsonaro é pragmático. De almoço em almoço, café em café, ele está de volta aos braços do Centrão e virou amigo desde criancinha de ministros do Supremo, enquanto deixa o Posto Ipiranga para lá e promove o desmanche de saúde, educação, cultura, política externa e meio ambiente.

Esse “novo” Bolsonaro faz política, a velhíssima política. E não é que dá certo? Vai aprovar no Senado um sujeito com currículo todo esburacado para 27 anos no Supremo, não esquenta a cabeça com queimadas e com as angústias de Paulo Guedes com privatizações e teto de gastos e vai se consolidando nas pesquisas e construindo a reeleição. Apesar de tudo…

Inimigos 1, 2 e 3. Eis os maiores inimigos de Luiz Fux na presidência do STF: Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Lewandowski, os decanos n.º 1, 2 e 3. Nenhum deles é de brincadeira.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Bernardo Mello Franco: A poupança do senador

Na quarta-feira, o presidente Jair Bolsonaro disse que daria uma “voadora no pescoço” de quem praticasse corrupção. No mesmo dia, a Polícia Federal flagrou um dos vice-líderes de seu governo com dinheiro escondido entre as nádegas.

A PF apreendeu R$ 33 mil na cueca do senador Chico Rodrigues. Segundo os agentes, parte do butim estava ocultada “em regiões íntimas”. A filmagem da operação registrou cenas escatológicas. Para nos poupar delas, o ministro Luís Roberto Barroso mandou trancar o vídeo num cofre.

O senador do DEM é suspeito de desviar verbas federais enviadas a Roraima combater a pandemia. Os investigadores afirmam que ele ajudou a fraudar a compra de testes da Covid. O Estado tem 15 municípios, mas só a capital conta com leitos de UTI.

Rodrigues e Bolsonaro são amigos há mais de 20 anos. “É quase uma união estável”, definiu o capitão. Como acontece nas relações duradouras, os dois já trocaram muitos favores. O senador empregou um sobrinho do presidente como aspone, com salário de R$ 23 mil.

Ontem Bolsonaro tentou se desvincular do flagrante. Disse que a operação demonstrou não haver corrupção em seu governo. O capitão opera com uma lógica peculiar. Tenta vender a descoberta do roubo como prova de que não existiria roubalheira.

O roraimense se juntou a uma lista crescente de bolsonaristas na mira da polícia. No mês passado, o líder do governo na Câmara foi alvo de uma operação no Paraná. Em 2019, a PF fez buscas no gabinete do líder no Senado. Os dois continuam em seus cargos.

A poupança de Rodrigues também impõe constrangimentos ao Congresso. Ele participava de uma comissão criada para fiscalizar a aplicação de verbas na pandemia. Só não foi preso preventivamente porque tem imunidade parlamentar.

Agora o Senado terá que decidir se mantém ou revoga seu afastamento, decretado pelo ministro Barroso. Ainda que venha a ser cassado, ele continuará a mandar no gabinete. O primeiro suplente, Pedro Arthur Rodrigues, é seu filho.


Míriam Leitão: A corrupção sempre presente

O escândalo enojante, em todos os sentidos da palavra, do ex-vice-líder do governo, senador Chico Rodrigues, é a mais recente prova de como Jair Bolsonaro usou abusivamente a bandeira do combate à corrupção, vendendo-se diferente do que sempre foi. Não precisava mais nada no governo, mesmo assim houve essa última excrescência. Bastava a abundância de dinheiro sem origem ou sem explicação clara que circula nas mãos ou nas contas de Bolsonaro, seus filhos, sua mulher e suas ex-mulheres. No fim do dia, o ministro Luís Roberto Barroso determinou o afastamento do senador do mandato por 90 dias, decisão ainda sujeita à aprovação pelo Senado.

O senador foi removido da vice-liderança pelo governo, mas isso não apaga o fato de que foi líder, tinha com o presidente da República uma relação definida por Bolsonaro como “quase uma união estável”, emprega no seu gabinete Leo Índio, o notório primo dos filhos do presidente. O distanciamento que Bolsonaro tenta agora ter em relação ao senador foi o mesmo movimento que ele executou contra o advogado Frederick Wassef, o mesmo que tenta manter de Fabrício Queiroz, que, por sua vez, tinha ligação com Adriano da Nóbrega, chefe miliciano.

Bolsonaro terá que fazer cada vez mais esforço para manter o seu discurso que foi definido pelo senador Chico Rodrigues como de “patriotismo, defesa da família e retomada da moralidade”. Na verdade, ele é o antimodelo em cada um desses quesitos.

Os fatos verdadeiros estão no relatório da Transparência Internacional que denunciou um “desmanche institucional” no país, afirmando que o principal responsável é o presidente Bolsonaro. A Transparência fez dois relatórios. Num deles, relacionou os casos da exportação da corrupção por diversas empresas. Em outro, mostrou os retrocessos institucionais no Brasil que, por 15 anos, foi exemplo no exterior pelo Mensalão e pela Lava-Jato. O relatório é uma atualização e confirmação de outro documento de outubro do ano passado. Os textos foram para o Grupo Antisuborno, da OCDE, e o Grupo de Ação Financeira contra Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo (Gafi/FATF). O Brasil faz parte de acordos, integra esses grupos, portanto, o desmonte do combate à corrupção executado pelo governo Bolsonaro está desrespeitando compromissos internacionais. Será também levado em conta, assim como os crimes ambientais, na decisão sobre a entrada do país na OCDE.

O relatório sobre os retrocessos enumera os passos atrás que têm sido dados na luta do Brasil contra a corrupção. Foram muitos. O Coaf foi enfraquecido, o diretor da Polícia Federal, demitido para dar lugar a outro delegado submisso ao governo, o procurador-geral da República, em seu primeiro ano de mandato, colocou como alvos os procuradores da Lava-Jato, e a operação Greenfield “foi parcialmente desmantelada”, diz o texto. O Congresso instalou uma comissão de especialistas para elaborar uma lei de lavagem de dinheiro e excluiu do debate exatamente o Coaf, principal órgão de combate a esse crime. O ex-presidente do Supremo negociou novas regras para acordo de leniência sem passar pelo Ministério Público. O Congresso quer fazer uma nova lei de combate à improbidade administrativa e os sinais não são bons. O relatório relaciona inclusive a retirada de representantes da sociedade de órgãos de controle como o Conama.

“Foi reportado que no período de 24 anos, Flávio e Carlos Bolsonaro e as duas ex-mulheres do presidente Bolsonaro compraram várias propriedades e pagaram as despesas em cash, transações que totalizaram quase R$ 3 milhões em valores ajustados. Ainda que não seja ilegal, transações em dinheiro vivo são vulneráveis a práticas ilegais, como lavagem de dinheiro, que são difíceis de serem rastreadas.” Com fatos assim, circunstanciados, o relatório informa aos grupos internacionais de combate à corrupção que a cena brasileira é oposta à que o presidente descreveu quando disse que acabou com a Lava-Jato porque a corrupção acabou.

Por uma dessas coincidências da vida brasileira, o relatório foi divulgado no mesmo dia da descoberta de dinheiro nas cuecas do então vice-líder do governo. A diferença da primeira cueca monetária é que aquela foi de um assessor de parlamentar do PT, essa é do próprio senador governista e os maços foram acomodados atrás.


Merval Pereira: Dinheiro sujo

O Supremo Tribunal Federal (STF) esteve envolvido nos últimos dias em situações extremas, desde a soltura de um traficante condenado a 25 anos por tráfico internacional de drogas, até a suspensão de um senador da República que escondia dinheiro não apenas na cueca, mas também nas nádegas.

O presidente Bolsonaro, que alardeava que em seu governo não havia corrupção, teve que abrir mão de seu vice-lider Chico Rodrigues, com quem dizia ter “quase uma relação estável”.

O presidente do STF, ministro Luis Fux, teve ontem ratificada sua decisão de suspender o habeas corpus que seu colega Marco Aurélio Mello dera ao traficante André do Rap, em prisão preventiva. O que para Marco Aurélio desmoralizou o Supremo, para Fux a cassação salvou o tribunal da desmoralização.

Mesmo os que se incomodaram com a possibilidade de o presidente do Supremo cassar decisão de um colega, admitiram que a medida foi acertada devido à urgência do caso e à periculosidade do condenado.

Nos dois casos o Legislativo está envolvido. No habeas corpus, o ministro Marco Aurélio obedeceu à letra fria da lei, sem levar em conta outros critérios para apenas constatar que a prisão não fora reafirmada após 90 dias, como manda o artigo 316 introduzido no Código de Processo Penal (CPP) pelo Congresso através do pacote anticrime.

Ao final do julgamento, ficou definido que a soltura dos presos depois de 90 dias sem revisão da prisão preventiva não é automática, como interpretou Marco Aurélio. O juiz de primeira instância que decretou a prisão terá que ser consultado sobre se as razões da prisão continuam válidas. Com isso, mantém-se a sentido benéfico da lei, que é o de impedir que presos sem acusação formal ou sem julgamento apodreçam nas prisões. Mas impede-se que criminosos do colarinho branco e grandes traficantes se beneficiem do artigo para fugir, como aconteceu com André do Rap.

O próximo passo será definir se presos condenados em segunda instância não necessitam de uma revisão, como era o caso do traficante. Essa alteração, proposta pelos ministros Alexandre de Moraes e Luis Roberto Barroso, teve o apoio do presidente Fux, mas o ministro Ricardo Lewandowski se opôs, argumentando que cada caso tem que ser analisado individualmente, e lembrando que o Supremo já mudou a jurisprudência sobre a prisão em segunda instância, permitindo que os condenados recorram até o trânsito em julgado.

O caso do senador Chico Rodrigues, do DEM, tem sabor de farsa ao repetir tragédia já ocorrida durante o mensalão com um assessor do deputado federal petista José Guimarães, preso com dólares na cueca. Desta vez o esconderijo foi mais além da cueca, uma situação tão escatológica que obrigou o ministro Barroso a pedir à Polícia Federal que guardasse num cofre “em absoluto sigilo”, pois, “Consoante informado pela autoridade policial, o registro exibe demasiadamente a intimidade do investigado. (…) Se comprovada a culpabilidade, estará justificada a sua punição, mas não sua desnecessária humilhação pública”.

O ministro do STF não aceitou o pedido de prisão feito pela Polícia Federal, mas determinou o afastamento do senador por 90 dias, prorrogáveis por mais 90. Agora caberá ao Senado decidir se acata a decisão do ministro. Ficam então Câmara e Senado com questões éticas em suspenso.

A deputada federal Flordelis, acusada de um crime hediondo juntamente com vários filhos seus, anda com tornozeleira eletrônica, mas não vai presa porque tem imunidade parlamentar. A Câmara não consegue reunir seu Conselho de Ética para cassar seu mandato, num movimento corporativista vergonhoso.

Agora o Senado terá que encarar mais esse problema ético. Não há prova mais definitiva de quebra do decoro como a que o senador Chico Rodrigues deu. A maior prova de que o dinheiro que tentou esconder no seu íntimo é ilegal é que ele declarou à Justiça Eleitoral em 2018 que tinha em casa cerca de R$ 500 mil em dinheiro vivo.

Esse caso tem o agravante de ser conseqüência de verbas extras para combate à Covid-19 que o presidente Davi Alcolumbre conseguiu com o Palácio do Planalto para pavimentar o apoio à sua reeleição, até o momento ilegal.

A que ponto chegamos. Onde acabaremos?


Fernando Gabeira: O Brasil não é uma ilha

Exceto se reduzirmos o País aos limites mentais de Bolsonaro e seus mais retrógrados apoiadores

Política externa não é um tema popular. Mas nas circunstâncias do mundo de hoje erros ou acertos nesse campo vão repercutir no cotidiano das pessoas comuns. É preciso acionar os sinais de alerta para uma configuração negativa no horizonte. Nela nos poderemos isolar, simultaneamente, da Europa e dos Estados Unidos.

No front europeu, são inúmeras as advertências de que o acordo comercial com o Mercosul subiu no telhado por causa da política ambiental do governo Bolsonaro. A recusa começa por Parlamentos nacionais, estende-se ao Parlamento Europeu e já aparece no discurso oficial da França. Angela Merkel tem sofrido forte pressão, embora reconheça, como estadista, a importância do acordo e a necessidade de salvá-lo dos desatinos bolsonaristas.

Nos EUA, além da China, o Brasil foi o único país a ocupar a agenda do debate na campanha presidencial: Joe Biden anunciou a possibilidade de reunir investimentos de US$ 20 bilhões para preservar a Amazônia e ameaçou com sérias consequências econômicas caso não se altere a política do governo brasileiro na região.

Além das divergências no campo ambiental, Biden discorda claramente da visão de Bolsonaro sobre a tortura no regime militar. Ele veio pessoalmente entregar a Dilma Rousseff documentos do governo americano que confirmam e até mesmo ampliam o conhecimento sobre a repressão no período. São textos de diplomatas americanos, baseados também na ampla equipe de informantes nacionais, militares incluídos.

Sou adversário da política destrutiva de Bolsonaro e lamento a visão das Forças Armadas sobre a Amazônia, que me parece uma estratégia de defesa ultrapassada e míope. No entanto, duvido que restrições econômicas sejam a melhor fórmula para resolver esse problema crucial para a humanidade. Baseio-me nas experiências históricas de bloqueio, que de modo geral fortaleceram governos despóticos e penalizaram seus povos. Barack Obama compreendeu isso ao inaugurar uma nova política sobre Cuba. Antes de o próprio Obama buscar acordo com o Irã, a habilidade do diplomata brasileiro Celso Amorim conseguiu desatar o nó, pela ONU, que estrangulava o povo iraniano e, em contrapartida, pouco incomodava os aiatolás.

Por isso acho que um amplo e cuidadoso diálogo com o Brasil seria muito mais adequado para tratar desse problema, que preocupa o mundo. Bolsonaro é irredutível e dificilmente deixará entrar um raio de luz nas trevas que o dominam.

O mesmo não se pode afirmar de dois outros atores decisivos: o agrobusiness e as Forças Armadas. Os produtores brasileiros até que compreendem as restrições no mercado externo. Mas é preciso convencê-los também de suas perdas com o aquecimento global e a destruição da Amazônia.

Pesquisas recentes já quantificam os prejuízos que as plantações brasileiras tiveram com a onda de calor: R$ 20 bilhões. A tendência é aumentar e não atingir apenas o que se planta, mas também os animais. Houve há poucos dias uma grande perda de aves no interior de São Paulo. Da mesma forma, é preciso convencê-los da importância da floresta em pé para o regime de chuvas, falar dos rios voadores, tão importantes para irrigar as plantações, apagar incêndios.

Quanto às Forças Armadas, é preciso discutir com elas, perguntando quem é o inimigo na Amazônia. A ideia de que as grandes potências querem levar o nosso minério não é defensável. Nenhum país suportaria a rejeição internacional por um punhado de ouro. A própria França não conseguiu levar adiante seus planos de abrir minas na Guiana.

A ocupação territorial da selva não é inteligente nem exequível. Resta um problema internacional que sempre tentamos equacionar: a biopirataria. Mas isso se resolve com leis que protejam o conhecimento nativo e uma fiscalização eficaz. Inúmeros projetos já foram elaborados, mas esse é um tema dinâmico e merece sempre atualizações.

Não pode ficar de fora no debate com os militares a questão indígena. A Constituição prevê o respeito a suas cultura e tradições. Dissolvê-los na sociedade abrangente não é o caminho escolhido. É possível pensar um projeto de defesa que implique simultaneamente proteção da diversidade biológica e da cultural, pois elas se entrelaçam.

Nesse longo processo de debate necessariamente surgirão acordos, mediações, ninguém é dono da verdade. Se houver um entendimento entre os brasileiros, estaremos em excelente posição para assumir nosso papel de potência ambiental e trazer o mundo para cooperar conosco.

Não somos uma ilha, exceto se quisermos reduzir o Brasil aos limites mentais de Bolsonaro e seus apoiadores mais retrógrados. As dimensões do Brasil encolheram. Éramos um interlocutor importante nos encontros internacionais. Antes mandávamos ideias, hoje enviamos agentes de inteligência para os grandes debates. Isso mostra não a estreiteza das novas posições, mas a paranoia que domina o governo.

O mundo contra o Brasil, isso não existe. Há apenas uma grande rejeição à política de Bolsonaro. O que o mundo tem são saudades do Brasil, um país orgulhoso de seus recursos naturais, aberto à cooperação planetária, atento à busca da paz. Sem a raiva que, de repente, o dominou.

*Jornalista