Day: julho 1, 2020

Cristovam Buarque: Um vírus duradouro

Mais modernidade e diálogo em diplomatas do talibã do que no Itamaraty

Ao longo de nossa história, o Itamaraty é um exemplo de sucesso ininterrupto, até mesmo durante regimes autoritários. Na ditadura Vargas, em plena II Guerra, o Itamaraty desempenhou suas funções com seriedade e competência. Alguns de nossos diplomatas são considerados heróis por terem salvado vidas de judeus. Com Oswaldo Aranha, nossa política externa foi determinante na criação da ONU. Apesar da pressão contrária dos Estados Unidos, fomos o primeiro país a reconhecer o governo independente e marxista de Angola; fizemos acordo nuclear com a Alemanha; reconhecemos o governo Comunista da China. Não devemos esquecer a ruptura com Cuba em 1964, mas com exceção da demissão arbitrária de alguns diplomatas, é preciso reconhecer que os 21 anos de ditadura não enfraqueceram nossas relações exteriores, nem desestruturaram o Itamaraty.

A democracia a partir de 1958 foi o grande momento de nossa política externa. O restabelecimento de relações com Cuba foi um dos primeiros atos do governo democrático de Sarney. Ele construiu a aliança com a Argentina e, junto com Raúl Alfonsín e Julio Sanguinetti, fez o Mercosul. Collor colocou o Brasil na liderança mundial da defesa do meio ambiente, quando isto ainda não era um tema palpitante. Fernando Henrique e Lula solidificaram nossa presença no mundo. O primeiro formou um time com Lampreia; o segundo formou quase uma instituição com Celso Amorim, a Lulamorim, no cenário mundial. Os dois presidentes e seus ministros colocaram a presença brasileira no ponto mais alto de nossa história. O primeiro foi tratado no nível dos presidentes de países ricos, o segundo conseguiu ser o líder dos presidentes dos países pobres, e com isto ganhar o respeito dos grandes do mundo. O primeiro criou a Bolsa Escola, reconhecida na autobiografia de Clinton, onde é citada em português em todos os idiomas em que foi traduzida; o segundo, com o nome de Bolsa Família, mostrou ao mundo uma política social inovadora. Nada disto seria possível sem a história de nossa política externa e sem o Instituto Rio Branco formando nossos diplomatas.

Fui professor e conferencista em diversas universidades, no Brasil e no exterior, em nenhuma tive um conjunto de alunos com o brilhantismo, a competência e o espírito público dos que encontrei e com os quais convivi naqueles dois anos no Instituto Rio Branco. Tenho orgulho de dizer que o atual ministro não foi meu aluno. Seu desempenho é uma tragédia que vai demorar mais do que a provocada pelo corona vírus. Está quebrando nossa fama e nosso prestígio de neutralidade, independência, solidariedade, eficiência e progressismo. O Itamaraty está contaminado por um vírus cuja consequência nefasta será mais duradoura porque ele infeccionou o Brasil, não apenas os brasileiros.

Ele está desarticulando a máquina do Ministério das Relações, fazendo o Brasil virar motivo de chacota no cenário internacional e na comunidade diplomática do mundo. Além de nos tirar das tradicionais posições de independência e conciliação, nos afasta das posições sintonizadas com os rumos da história, na ecologia, nos direitos humanos e na luta contra a tragédia da pobreza. Suas posições desastrosas pela oposição e preconceito em relação à China, Cuba, Argentina, estão levando ao isolamento e fazendo do Brasil um pária. Em relação à China, é além disto uma estupidez pro tudo que este país representa no cenário mundial e nas relações comerciais com o Brasil. Só um inimigo do Brasil seria capaz de provocar tantos problemas para o país.

Em fevereiro, ouvi de um diplomata estrangeiro que ele sentia mais modernidade e diálogo em diplomatas do talibã do que no Itamaraty de Bolsonaro. Depois de respirar, ele disse: “E vocês já foram os melhores do mundo”. E lembrou os nomes dos chanceleres nos últimos anos: Fernando Henrique Cardoso, Luiz Felipe Lampreia, Celso Amorim, Antônio Patriota, José Serra, Aloysio Nunes.

O trabalho mais difícil no mundo hoje, depois de profissional da saúde, é ser diplomata brasileiro servindo no exterior. E já foi um dos trabalhos mais respeitados e admirados.

O grave é que o estrago feito pela incompetência da diplomacia levará décadas para ser recuperado. Este é um vírus duradouro.

Um dia, os defensores de Bolsonaro poderão alegar que no dia 1º de janeiro de 2019, educação, saúde, economia, finanças não estavam bem, mas terão de reconhecer que o desastre nas relações exteriores foi um crime de Bolsonaro contra o Brasil, sob a incompetência do chanceler que ele escolheu e sob a impotência de líderes civis.

*Cristovam foi senador e governador


Raul Jungmann: O colapso do presidencialismo de coalizão e de colisão

Desde a retomada das eleições diretas pelo poder civil em 1985 que todos os presidentes eleitos optaram por construir uma ampla coalisão multipartidária no Congresso Nacional para governar. Os motivos eram, e continuam sendo, a fragmentação partidária, a necessidade de reformas constitucionais exigirem quorum qualificado de três quintos e o fato de o partido do Presidente jamais exceder a 20% dos deputados.

A esse método ou sistemática de governar deu-se o nome de “presidencialismo de coalizão”. Isto porque, sinteticamente, em troca dos votos necessários para fazer passar seu programa de governo, o chefe do Executivo deve abrir espaços na administração pública não só para representantes dos partidos que compõem a sua base, mas também ampliar apoios.

Esse modo de governar foi duramente atingido por uma série de escândalos, cujo ápice se deu na operação Lava Jato. Porém, dada a estrutura e dinâmica da política brasileira, permanece impossível governar sem lançar mão dele, à falta de uma ampla reforma política.

O Presidente Jair Bolsonaro decidiu abrir mão do sistema, dispensando a alternativa habitual de uma ampla coalisão multipartidária para governar. Eleito num momento de ampla rejeição da política, dos políticos e dos partidos, entendeu que não deveria alinhar-se com a “velha política” e seus métodos, incluído o “presidencialismo de coalizão”.

Ainda assim, há que governar e entregar o que prometeu, o seu programa de governo, o que só é possível com votos suficientes no parlamento. Como fazê-lo? Emerge então o “presidencialismo de colisão”, cujos alicerces básicos são os seguintes:

(I) proclamar ter o apoio da espada (militares) e do povo (seus seguidores) para constranger o Congresso e o Judiciário;

(II) manter em constante stress os adversários, reais ou imaginários, considerados “inimigos”;

(III) mobilizar continuamente os seus seguidores/apoiadores para pressionar as instituições e adversários;

(IV) e organizar e empregar uma estrutura digital, via redes sociais, para fins de mobilização e ataque a oposição, instituições, mídia e adversários, inclusive com ameaças, como alternativa ao apoio do Congresso, em uma espécie de democracia direta

Esse “presidencialismo de colisão” dá sinais que entrou em colapso, e estão à vista os determinantes do seu esgotamento em tempo mais curto do aquele que o precedeu.

As Forças Armadas se mantêm refratárias a qualquer uso político que se queira fazer delas, sendo impossível acreditar que apoiariam o Presidente em uma aventura autoritária, pois seu compromisso democrático tem se mantido impecável. O emprego das mídias digitais para manter mobilizados seus seguidores, ameaçar adversários, Congresso e Supremo Tribunal Federal foi desarticulado pelos inquéritos em curso na Corte e no Parlamento sobre as chamadas fake-news, e que alcançaram toda a estrutura de financiadores, propagadores e seus robôs, e o “gabinete do ódio”.

Mais além, o “presidencialismo de colisão” teve sua exaustão acelerada pela eclosão da pandemia, dado que os seguidos ataques aos governadores, prefeitos e academia geraram conflitos em série e quase nenhuma coordenação, com as consequências que aí estão em termos de mortes, carências de pessoal e equipamentos.

A exaustão também se verificou na economia, onde o projeto liberal do ministro Paulo Guedes foi paralisado pela crise do coronavírus, com o consequente adiamento da agenda das reformas e a reversão, ainda que provisória, da política de redução do Estado.

Por fim, os inquéritos e investigações em curso que alcançam o Presidente da República e família, tiveram o condão de enfraquecer seu apoio na sociedade, levando a necessidade irônica de organizar uma base parlamentar nos moldes do “presidencialismo de coalizão” – justo ele que o negara – para fins preventivos e defensivos, no caso de um processo de impeachment.

Viu-se assim o presidente da República virar o promotor da volta triunfal da “velha política”, num retorno pela porta dos fundos do loteamento em larga escala, sem seletividade curricular, de cargos na administração para parlamentares visando formar justamente uma ampla coalizão multi-partidária.

Essa guinada apresenta riscos, dentre os quais a perda de parte dos seus fies seguidores de raiz, e a sua nova e improvisada base, alicerçada no Centrão, pouco resistente às pressões decorrentes de uma queda de popularidade.

O colapso do “presidencialismo de colisão”, aponta para o resgate de uma política cujo contorno é menos conflitivo e mais negocial. Mas inexistem evidências de que veio para ficar ou mesmo que mantenha alguma consistência. Até porque, parte dos conflitos provocados pelo Presidente e os processos em curso que o ameaçam estão longe de um desfecho e, pelo potencial corrosivo que detêm, provocarão novas e sucessivas crises.

Estamos, portanto, no fim de um ciclo político caracterizado por um sistema presidencialista que nas suas diversas faces, esgotou-se. Em retrospecto, olhando para os últimos 30 anos, dois impeachments e crises recorrentes, talvez seja o caso de iniciar a discussão e o amadurecimento de uma alternativa real ao que aí está, como o parlamentarismo ou, mais adequado à nossa história e geografia política, o semipresidencialismo.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.