Day: junho 27, 2020

‘Não creio que Bolsonaro produzirá conflito que leve à ruptura’, diz Nelson Jobim

Ex-ministro da Defesa concedeu entrevista à revista Política Democrática Online e diz que horizonte de solução da crise política passa pelas eleições de 2022

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em entrevista exclusiva concedida à revista Política Democrática Online, o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim é enfático ao afirmar que o artigo 142 da Constituição de 1988 não dá o direito de as Forças Armadas intervirem contra um dos poderes da República. “É equivocada a tese, verbalizada por Ives Gandra, que teima em trazer o passado por cima da legislação nova, ou seja, ajustar a legislação nova com pressupostos anteriores”, afirma. “Sempre haverá discursos políticos, mas não creio que o presidente Bolsonaro terá condições de produzir algum conflito que possa levar a uma ruptura do processo”, diz, em outro trecho.

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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Até 1988, os militares tinham a faculdade, pela Constituição, de intervir para preservar a lei e a ordem, sem limitação alguma. “Trata-se de uma prática tão comum como nociva no sistema legal, essa de tentar, por via de exegese, fazer sobreviver o modelo anterior por dentro do modelo novo”, afirma.

Jobim foi ministro da Defesa durante o segundo mandato de Lula e no primeiro ano do governo Dilma. Ele também foi deputado federal por dois mandatos, ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1997) e presidente do STF (2004-2006), Nelson Jobim é defensor da teoria de que, na história do Brasil, os conflitos mais emblemáticos tiveram suas soluções encaminhadas pela conciliação e não pelo confronto.

O horizonte de solução da crise política que o país vive atualmente, segundo Jobim, passa pelo processo eleitoral de 2022. Em sua avaliação, nenhum processo como os decorrentes das declarações do ex-ministro Sérgio Moro, envolvendo a reunião ministerial de 22 de abril; a ação em curso no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que analisa o processo eleitoral que deu a vitória a Bolsonaro ou o afastamento do presidente da República por conta do acolhimento de alguma denúncia de crime impetrada pelo Ministério Público Federal tem possibilidades concretas de andamento.

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Pedro Doria: A verdadeira ameaça à democracia

É preciso entender o que separa movimentos populares espontâneos e sem liderança do populismo digital

Quando esta coluna fechou, o Senado ainda não havia passado pela votação do projeto de lei que visa combater notícias falsas. Não foi pequena a controvérsia no seu entorno. Sua última redação, do senador Ângelo Coronel (PSD-BA), atraiu notas de repúdio de organizações como Human Rights Watch, Boatos.org e E-farsas, as agências de checagem brasileiras e a IFCN – que reúne os checadores de notícias no mundo –, atraiu críticas até do Comitê Gestor da Internet brasileira. Não é um início promissor. Mas, de todo o debate, um ponto muito importante ficou de fora. Quem vê fake news, assim como quem vê robôs no Twitter ou consultores da Cambridge Analytica está vendo árvores. Não a floresta. O que facilitou a eleição do presidente Jair Bolsonaro – ou de Donald Trump, ou do Brexit – foi bem mais complicado do que isso. Hackearam a democracia.

É preciso entender, antes, o que separa movimentos populares espontâneos e sem liderança, que foram e são promovidos online desde a Onda Verde no Irã, do populismo digital. Entre os espontâneos há nosso junho de 2013, assim como a Primavera Árabe, os Indignados espanhóis, Occupy Wall Street e mesmo as passeatas chilenas de 2019. Em comum têm, principalmente, o caos. Pegam governos de surpresa, não costumam ter muitos resultados concretos, deixam um cenário de instabilidade. E embora tudo isto seja verdade, são populares. No sentido de que não são artificiais: nascem de fato da sociedade e gritam sua insatisfação em relação aos governantes.

O populismo digital não tem nada disso. Como no caso de todos os populismos anteriores, é o movimento de um grupo político que busca a tomada do poder, normalmente via eleições. O populista sempre constrói um discurso no qual ele é o único a representar os interesses do povo contra uma elite mal-intencionada. E é na construção deste discurso populismo digital usa a internet. Quem olha de fora, desatento, acredita que há uma mobilização popular instantânea. Não, não há. É tudo criado artificialmente.

Quem desenvolveu a técnica tem nome. É um milanês morto dum câncer cerebral em 2016 chamado Gianroberto Casaleggio. Era executivo da Olivetti, foi CEO de uma consultoria online chamada Webegg, e fazendo experimentos sociais em fóruns online percebeu que conseguia manipular a construção de consensos. O que Casaleggio percebeu é uma dinâmica típica do mundo virtual. Se, num debate, muitas pessoas caminham na direção de um consenso, o resto do grupo tende a acompanhar.

Ou seja: surge um debate na internet. Os manipuladores, em massa, começam a publicar opiniões num mesmo sentido. Estes manipuladores podem ser pessoas de verdade. Podem ser três ou quatro operando 50 contas falsas. Podem ser robôs. Não importa. A maioria do grupo, sem perceber que está sendo manipulado, tende àquele caminho.

A técnica de Casaleggio foi empregada para inventar um partido político do nada, o Movimento 5 Estrelas, e transformá-lo no maior da Itália. Foi o suficiente para chamar atenção do populista britânico Nigel Farage, que foi a Milão, tomou notas e mergulhou no processo, voltou para o Reino Unido e o empregou – conseguiu aprovar o Brexit. Saltou aos olhos de Steve Bannon, que adaptou as técnicas em território americano enquanto tocava a campanha de Donald Trump. E, claro, copiando Trump o time Bolsonaro fez o mesmo no Brasil.

Funciona.

As plataformas têm responsabilidade. Seus algoritmos ajudam a ampliar a voz de poucas pessoas, acelerando a estratégia para formar consensos artificialmente. Fake news, assim como bots, fazem parte da palheta de ferramentas da manipulação. Mas o que ameaça a democracia é seu sequestro pelo método de Casaleggio. É hora de botar foco nisto. A União Europeia já tem relatórios sobre o assunto. 


Renato Janine Ribeiro: Sem acreditar na democracia, instituições serão frágeis contra autoritarismo

É ilusão olhar só as instituições, como fez Yascha Mounk, porque elas não substituem o povo, fonte do poder na democracia

Depois que caiu a ditadura argentina, nos anos 1980, houve algumas tentativas de golpe militar, quando iam a julgamento os criminosos que haviam exercido o poder. A cada vez, multidões tomavam as ruas e repudiavam a ação subversiva e antidemocrática.

De lá para cá, a Argentina viveu graves crises econômicas —como nós—, mas nunca a democracia esteve em risco. Teve e tem apoio popular.

Digo isso a respeito do artigo de Yascha Mounk, “Brasil já é uma democracia sob supervisão militar”.

Concordo com o título e com a tese principal. Mas estranhei sua alusão a “especialistas brasileiros que consultei alguns anos atrás e que sentiam confiança na força das instituições brasileiras”, porque segundo eles “os militares haviam se afastado de vez da política”.

O problema é que instituições somente são fortes se tiverem apoio popular. Esse apoio pode se chamar cultura política, educação política. Não me deterei na diferença entre esses conceitos, mas insisto: se as pessoas não acreditarem na democracia, as instituições serão frágeis contra o autoritarismo.

Infelizmente, o que nos preservou da ditadura, desde 1985, foi a fraqueza dos antidemocratas, mais que a força dos democratas. A ditadura acabou em fiasco, inclusive econômico, mas não sofreu punições.

Uma comissão da verdade demorou décadas para ser criada. A anistia que o regime de exceção deu a si mesmo, embora condenada internacionalmente, foi mantida pelo STF.

A fraqueza de nossa democracia é a fraqueza da convicção democrática dos brasileiros. Não emplacamos a ideia de que a divergência política é legítima. Na verdade, aumentou a crença de que quem diverge de nós é corrupto. Ora, na política democrática sempre há ao menos duas vias legítimas e diferentes.

Mas nossas últimas campanhas eleitorais, bem como o antipetismo, fundaram-se na deslegitimação do adversário, convertido em inimigo porque seria ladrão.

Além disso, a democracia não resolveu nossos problemas sociais. De Itamar Franco a Dilma Rousseff, diferentes governos o tentaram. O IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano de Municípios) melhorou sensivelmente. Os governos petistas foram mais longe neste rumo, mas a trilha foi aberta por Itamar e FHC.

Porém, não se construiu a consciência de que os avanços se deviam a políticas públicas —ou à política.

Em vez disso, multidões atribuíram sua melhora de vida, nos anos prósperos do começo do século, a Deus ou ao esforço pessoal, esquecendo a dimensão coletiva, pública, que é a da política.

Esse é o problema. Foi e é uma ilusão olhar só as instituições. Podemos vibrar com uma ação do presidente da Câmara ou de alguns ministros do STF, mas eles não substituem a fonte do poder, que na democracia é o povo.

Sem uma convicção e práticas democráticas enraizadas, nossa democracia continuará, como diz a revista britânica The Economist, “flawed”, ferida, defeituosa.

O erro não é de Yascha Mounk, mas de seus informantes brasileiros, que não viram esse déficit inquietante de consciência política.

*Renato Janine Ribeiro, professor titular aposentado de ética e filosofia política da USP e professor visitante na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Foi ministro da Educação em 2015, durante o governo Dilma Rousseff (PT). Autor de 'A Pátria Educadora em Colapso' (ed. Três Estrelas).


Marco Aurélio Nogueira: O futuro que nos escapa

Hoje não temos governo e a boçalidade se instalou em diversos setores da vida nacional

Não é só pela pandemia, pela ameaça de uma segunda onda do vírus ou pelas indicações de que ninguém fica imunizado contra ele por muito tempo. Também não é só porque a OMS advertiu que a pandemia continua em expansão, com efeitos que serão sentidos por décadas. É por tudo isso, mas também porque estamos perdendo a ideia de futuro.

Ninguém sabe com certeza como será a retomada. Fala-se em “novo normal” como um esforço para afirmar que as coisas encontrarão um eixo, um padrão regular. É um reflexo automático daquela necessidade primal que temos de segurança, ordem, estabilidade, rotina.

A verdade é que o futuro está coberto por trevas obscurantistas e promessas de regressão. É como uma paisagem na neblina. Sabemos que há algo lá e que lá chegaremos, mas não conseguimos deslindar a imagem por inteiro. O futuro escapa-nos por entre os dedos. Não temos mais uma ideia de “progresso”, que moveu a modernidade e o capitalismo desde que se projetaram na História. Mas intuímos que não voltaremos a viver como nossos pais, mesmo que conservemos muito do seu legado de hábitos e valores. Estamos meio que a esmo, perplexos.

O arranjo socioeconômico, institucional, cultural é outro. A começar da família, que modelou até hoje a sociedade. Nossos filhos adotam novos formatos de vida familiar, de casamento, vivem juntos de maneira distinta, são felizes ou infelizes de um modo todo deles.

A mesma coisa na economia. Damos como óbvio que todos querem empregos estáveis, longas carreiras em empresas sólidas, rotinas estabelecidas, carteira assinada. Seria a receita contra a “precarização”, um remédio para valorizar o trabalho e os trabalhadores. Não sabemos se é isso mesmo que as pessoas querem. Talvez não seja a expressão do desejável para as novas gerações, mais chegadas ao improviso, à excitação do movimento, da velocidade. Também ignoramos se tal cenário é factível num mundo de tecnologias onipresentes e mudanças aceleradas. E as empresas, por sua vez, têm dificuldades para se reposicionar no mercado e reformular plantas e procedimentos.

Dá-se algo parecido na política. É quase impossível admitir que os partidos voltarão a ser o que foram no século 20, estruturas burocráticas, pesadas, focadas na conquista e no controle do poder, com dirigentes que se eternizam no cargo. A democracia está posta como valor, inquestionável para a maior parte dos humanos. Mas os sistemas democráticos estão em crise, são chantageados e corrompidos por líderes e movimentos fundamentalistas, que se querem “patrióticos”, mas minam sistematicamente as bases da Nação e do Estado.

A vida mudou, arrastando consigo as imagens que tínhamos do futuro. Diante de nós se abrem uma interrogação, muitas distopias e nenhuma utopia.

Foi-se o tempo em que o escritor suíço Stefan Zweig podia se encantar com o “país do futuro”, que ele via com uma generosa pitada de ufanismo, como uma comunidade que sabia harmonizar seus contrastes. Zweig viveu no Brasil entre 1940 e 1942, auge do Estado Novo e do hitlerismo, que avançava na Europa. Suicidou-se em Petrópolis.

De lá para cá, houve grandes transformações. Aprendemos muito, o País transfigurou-se de cima a baixo. Mas não temos motivos para nos ufanarmos. Continuamos a carregar o fardo da desigualdade. Nossa produtividade estagnou, junto com a educação. O Brasil está cheio de carências e buracos. Metade da população não dispõe de água encanada e saneamento básico. Hoje não temos governo e a boçalidade se instalou em diversos setores da vida nacional.

O futuro está oculto. Em parte porque pouco sabemos sobre ele e tememos o que imaginamos a seu respeito. E em parte porque o futuro, ele próprio, se oculta de nossos olhos, desarrumado pela realidade. Há um enorme volume de conhecimentos, mas não sabemos, com nossas ciências especializadas, como organizá-los de modo a capturar o fluxo, o processo. Precisamos de uma abordagem que ultrapasse as visões parceladas, “religue-as” (Morin) e apreenda o que está conectado, o todo.

O futuro, a rigor, já está aí, incorporado à vida cotidiana sem que percebamos. Não há por que fazer previsões proféticas. “A dificuldade de conhecer o futuro depende também do fato de que cada um projeta no futuro as próprias aspirações e inquietações”, escreveu certa vez Norberto Bobbio.

A ordem geral é sempre sobreviver. Não é por acaso que tanto se valoriza o aqui e agora, o que pode ser minimamente “apalpado”, é menos incerto e duvidoso.

Mas não há somente trevas à frente. Bem ou mal, o mundo se move, os protestos se acumulam, as perversões ficam mais transparentes, a ciência se afirma, a democracia permanece no horizonte. Buscamos o tempo todo ver além da neblina, para agarrar o futuro que nos escapa.

Para sobreviver com dignidade precisamos manter a lucidez e a serenidade, combinando-as com a indignação que nos faz recusar injustiças, nos mobiliza e nos ajuda a manter a esperança e a grandeza de espírito. Essas são nossas estrelas-guia.