Day: junho 27, 2020

Ascânio Seleme: Silêncio, medo e ameaças

Bolsonarinho Paz e Amor apareceu de repente, graças ao tranco que o Bolsonarão sofreu com a prisão do amigo Fabrício Queiroz

Mais uma vez sua excelência tenta dar um ar de sobriedade ao seu governo bizarro. Bolsonarinho Paz e Amor apareceu de repente, graças ao tranco que o Bolsonarão sofreu com a prisão do amigo Fabrício Queiroz. Reina uma paz no Palácio do Planalto somente vista nos primeiros 45 dias de governo. Naquela época, contudo, havia uma euforia decorrente da nova investidura que hoje não se vê. Todos os gabinetes agora estão calados, esperando para ver se a coisa se consolida de verdade. Melhor mesmo fazer pouco barulho para não assustar a fera. Vai que ela se irrita e desperta outra vez aquela ira insana.

Os generais acham que a paz pode ser duradoura. A nomeação de Carlos Alberto Decotelli para o Ministério da Educação mostra que há uma disposição do presidente de buscar um pouco de calmaria no meio da tempestade. A ameaça sobre o mais velho dos seus zeros parece ter refluído um pouco depois da decisão do Tribunal de Justiça do Rio de tirar o caso das rachadinhas da primeira instância e dar ao acusado foro especial. Até por estar contaminada politicamente, a decisão do TJ, mesmo contrariando determinação do Supremo Tribunal Federal, colabora para manter o farol baixo do capitão. Da mesma forma que ninguém se mexe no Planalto para não despertar o bicho por ora acorrentado, Bolsonaro talvez ache melhor ficar quietinho em favor da segurança do filho.

O problema, todos sabem, é que o instinto belicoso do presidente é maior do que ele mesmo. Basta o cenário se deteriorar um pouco para que ressurja em toda a sua pujança. Imaginem o que pode ocorrer quando (não se trata de se, mas quando) a mulher de Queiroz for encontrada e presa. Márcia não vai se calar. Queiroz vai espernear e ameaçar. O zerinho vai chorar e o papai dele com certeza vai estourar. Tomara que eu queime a língua, ou a ponta dos dedos, mas não consigo ver a menor chance deste estado de espírito prosperar e durar. Se não for hoje, a explosão vai acontecer amanhã ou depois de amanhã. Não pense que se trata de torcida, não é. Pelo Brasil, o ideal seria que este governo chegasse ao fim, sem maiores solavancos, e depois se dissipasse.

Ocorre que há outra bomba à espreita do presidente e de seus filhos. Trata-se de mais um velho amigo, o advogado fanfarrão Frederick Wassef. Ele já mandou avisar que não vai aceitar ser abandonado, que não gosta que lhe voltem as costas. Na entrevista que deu à revista “Veja”, Wassef disse que recolheu Queiroz em sua casa de Atibaia porque “o presidente simplesmente cortou contato ou relação com ele (…) da mesma forma Flávio se distanciou completamente”. Ele acrescentou que deu guarida ao operador das rachadinhas no gabinete do zero porque passou a ter “informação de que Fabrício Queiroz seria assassinado (…) ele seria executado no Rio (…) quem estivesse por trás desse homicídio iria colocar isso na conta da família Bolsonaro”.

Fala sério, alguém acredita nesta ajuda “humanitária”, como o próprio Wassef a definiu? Difícil de engolir. O que se viu na entrevista do advogado outrora falastrão foram recados claros para o presidente. Primeiro, se ele não aceita que se abandonem outros, como fizeram com o Queiroz, imaginem o que pode fazer se abandonarem a ele. Depois, essa história de queima de arquivo foi uma inequívoca lembrança da morte do miliciano Adriano da Nóbrega, amigo de Queiroz, Flávio e Jair Bolsonaro. Encurralado numa casa de fazenda na Bahia, era fácil mantê-lo sob vigilância até que se entregasse. Mas, não, a PM invadiu a casa e metralhou o miliciano.

E tem mais. O miliciano deveria ser usado por Wassef para dar fuga a Queiroz e família, caso fosse necessário. Márcia, a mulher do chefe das rachadinhas, foi à casa da mãe de Adriano no interior de Minas Gerais tratar dessa questão. A bagunça é grande. Envolve um advogado inescrupuloso, um assassino profissional, um funcionário ladrão e um primeiro filho corrupto. É um prato cheio capaz de desestabilizar qualquer um. Imaginem o efeito que produzirá sobre Jair Bolsonaro quando suas pontas mal aparadas começarem a ser reveladas no inquérito em curso.

Francamente, doutor
Um juiz deveria ser afastado compulsoriamente das suas funções sempre que fossem apresentadas denúncias contra ele. Um magistrado denunciado por associação com uma pessoa que superfaturou serviços prestados à saúde pública, por exemplo, deveria parar de julgar casos até ele próprio ser julgado e inocentado. Continuaria recebendo até o julgamento. Se condenado, seria demitido sumariamente. Se for fotografado empunhando uma arma de uso exclusivo das forças policiais, da mesma forma deveria ser retirado da sua vara até que se esclarecessem as circunstâncias em que a imagem foi obtida. Suspeitos não podem julgar.

Embaixada para quê?
Foi-se o tempo em que as embaixadas americanas tinham em seus quadros pessoal de inteligência que informava ao Departamento de Estado sempre que um fato apresentava algum risco para os Estados Unidos. Vejam o caso Weintraub. Menos de uma semana antes de viajar para Miami com passaporte diplomático fajuto ele esteve numa manifestação em Brasília, sem máscara, cercado por pelo menos uma dúzia de outras pessoas também sem máscaras. Todo o brasileiro que entra nos EUA tem que se recolher em quarentena, a menos que seja uma autoridade em viagem de trabalho, obviamente. O filhote de Olavo se enquadra no primeiro grupo mas age como se fosse do segundo. Comete um crime pelo qual poderia ser deportado. Mas já não se fazem mais embaixadas como antigamente.

Aos trancos
Maria Cristina Boner Leo, a ex-mulher de Frederick Wassef, vem se envolvendo em rolos com órgãos públicos pelo menos desde 1999. Em abril daquele ano, a empresa TBA, da qual era dona, foi acusada de vender equipamentos da Microsoft para órgãos federais sem concorrência pública. Maria Cristina alegava ser representante exclusiva da Microsoft e amiga de Bill Gates. O caso foi parar no Congresso e na Secretaria de Direito Econômico.

Não adiantou
O secretário de Educação do Paraná, “o jovem” Renato Feder, fez um enorme esforço para assumir o posto do sinistro Abraham Weintraub. Chegou ao ponto de chamar de estadista o pior presidente da História da República brasileira. De nada adiantou o puxa-saquismo explícito, além de colar para sempre em seu perfil a embevecida admiração que tem por Bolsonaro.

Quem manda mais?
Já tem gente dizendo que o deputado Arthur Lira (improbidade administrativa, obstrução de Justiça, enriquecimento ilícito, desvio de recursos públicos, violência doméstica), líder do centrão, manda mais hoje na Câmara que o presidente da casa, Rodrigo Maia. Se ficar nessa leveza toda nos seis meses que restam de sua presidência, Rodrigo corre o risco de não conseguir fazer seu sucessor, imagina tentar uma reeleição.

Já Alcolumbre…
Legalmente, Rodrigo e Davi Alcolumbre não podem se reeleger para a mesa. O regimento impede dois mandatos na mesma legislatura. Rodrigo cumpre o segundo mandato seguido porque o primeiro foi na legislatura passada. Antes, teve um mandato tampão com a saída de Eduardo Cunha, e o STF julgou que aquele termo não deveria ser considerado. Mas há um precedente e nele se agarra Alcolumbre. O falecido Antônio Carlos Magalhães conseguiu, em 1999, se reeleger numa mesma legislatura graças a um parecer da advocacia do Senado que foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça. O poder de ACM então era imenso, tanto que se reelegeu com 70 votos a favor e apenas três contra. Resta saber se Alcolumbre reúne tanta força. Na Câmara, Rodrigo parece já ter jogado a toalha.

O cálculo do centrão
Ao bater o pé na manutenção das datas do primeiro e segundo turnos das eleições municipais deste ano, o centrão trabalha com cálculos eleitorais bem específicos. Diabolicamente, torce para que a epidemia perdure até outubro, o que afugentaria muitos quarentenistas das urnas, mas não impediria a presença em massa de embandeirados negacionistas. Por quê? Porque estes votam a favor e aqueles votam contra.

Entreouvido por aí
“Dois anos depois de sair do governo, Temer segue aprovando mais reformas do que Bolsonaro”. A frase é do jornalista Felippe Hermes, do Spotniks, e foi pronunciada depois da aprovação do marco regulatório do saneamento, que tramita no Congresso desde 2018. Rs.

Se fosse no Brasil
O presidente de Portugal deu uma aula on-line para crianças portuguesas. Tratou da pandemia de coronavírus, deu um show. Se fosse no Brasil, nosso presidente talvez preferisse outro tema, já que sabe nada de Covid-19. Poderia ser uma corriqueira aula de tiro ao alvo. Ou lições de interrogatórios, modeladas pelos exemplos deixados pelo coronel Brilhante Ustra, seu herói. Poderia ser também uma aula de homofobia ou de machismo, com foco na humilhação de terceiros e na agressão aos mais frágeis.


Merval Pereira: O pós-Bolsonaro

Diante da polêmica sobre o papel das Forças Armadas num regime democrático, o que deve um presidente de origem civil fazer com a questão militar? Esse é o tema sobre o qual se debruça o cientista político da Fundação Getulio Vargas do Rio Octavio Amorim Neto, num artigo para o boletim do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre). Ele leva em conta o pós-Bolsonaro, seja com a impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão pelo TSE, ou com a derrota de Bolsonaro, ou Mourão ( em caso de impeachment) em 2022.

Como até hoje não houve força política para retirar da definição do papel das Forças Armadas a responsabilidade pelas “garantias dos poderes constitucionais”, como sugere o historiador José Murilo de Carvalho, da Academia Brasileira de Letras, Octavio Amorim Neto vislumbra outras possibilidades "de mais rápida e fácil implementação, todas tendo como norte a retirada dos militares da arena política e o reforço da orientação das Forças Armadas para atividades relacionadas à defesa nacional”.

O cientista político lembra que na Estratégia Nacional de Defesa havia a promessa de realizar “estudos sobre a criação de quadro de especialistas civis em Defesa, em complementação às carreiras existentes na administração civil e militar, de forma a constituir-se numa força de trabalho capaz de atuar na gestão de políticas públicas de defesa, em programas e projetos da área de defesa, bem como na interação com órgãos governamentais e a sociedade, integrando os pontos de vista político e técnico”.

Passados doze anos, o país dos concursos públicos ainda não conseguiu realizar o concurso para o quadro de especialistas civis em Defesa, critica Octavio Amorim Neto, que no longo prazo, “permitiriam democratizar as relações civis- militares em seu ponto nevrálgico, o Ministério da Defesa”.

Haverá certamente, admite Octavio Amorim Neto, muita resistência ao quadro de especialistas civis por parte das Forças Armadas, “uma vez que o Ministério da Defesa deixará de ser quase que completamente mobiliado por oficiais da Marinha, Exército e Força Aérea, tal qual se verifica hoje". Para aplacar essa resistência, o cientista político da FGV-Rio diz que um novo presidente de origem civil não deverá contingenciar o orçamento de investimento da Defesa, “de modo que as Forças Armadas possam ter a garantia de que conseguirão concluir seus principais projetos dentro dos prazos planejados”: aquisição de caças pela FAB – Projeto FX-2; programas de desenvolvimento de submarinos e o programa nuclear da Marinha – Pro-sub e PNM; despesas com a aquisição de cargueiros táticos de 10 a 20 toneladas e o programa de desenvolvimento de cargueiro tático de 10 a 20 toneladas – Projetos KC e KC-X; despesas com o programa de implantação do sistema de defesa estratégico – Astros 2020; despesa com a aquisição de blindados Guarani pelo Exército; e as referentes à implantação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – Sisfron.

“Será uma conta salgada, sobretudo para um país que estará em profunda crise econômica e social, mas pagá-la é condição necessária para que a Forças Armadas possam se concentrar em suas funções precípuas”, ressalta Amorim Neto, que recorda uma afirmação recente de Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa, segundo quem cabe ao poder político definir a Política Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa, os objetivos, estrutura e meios das nossas Forças Armadas.

Mas, ressaltou Jungmann, “o poder político, não o faz, se aliena. A Política e Estratégia vigentes, elaboradas em 2016 quando era Ministro da Defesa, foram votadas na Câmara e no Senado sem audiências públicas, sem emendas, debates e por órgãos governamentais e a sociedade, integrando os pontos de vista político e voto simbólico”.

Octavio Amorim Neto afirma em seu trabalho que os líderes do Congresso deverão imprimir plena chancela parlamentar ao emprego das Forças Armadas em atividades intimamente relacionadas à defesa nacional. Para ele, “é absolutamente vital” que as lideranças democráticas do país comecem a pensar seriamente sobre a questão militar no pós-Bolsonaro, sob pena de termos que conviver com os fantasmas do pretorianismo por um longo tempo. “É ingenuidade ou desconhecimento da história achar que o encerramento dos mandatos de Bolsonaro e Mourão resolverá o problema”.


BBC Brasil: Por que grandes empresas decidiram boicotar o Facebook

A marca de sorvetes Ben & Jerry's se juntou a uma lista crescente de empresas que, durante o mês de julho, decidiram retirar sua publicidade das plataformas comandadas pelo Facebook.

Além do próprio Facebook, a empresa que Mark Zuckerberg administra é dona do Instagram e do WhatsApp — o conglomerado também soma 80 outras empresas menos conhecidas.

Esse boicote faz parte da campanha Stop Hate For Profit (Pare de lucrar com o ódio, em tradução livre), que exige que o Facebook tome medidas mais rígidas contra a disseminação do ódio e de conteúdos racistas.

O Facebook tem uma receita anual de US$ 70 bilhões (cerca de R$ 371 bilhões) apenas em publicidade.

A campanha acusa a rede social de "amplificar as mensagens dos supremacistas brancos" e de "permitir mensagens que incitam violência".

A Ben & Jerry's, de propriedade da gigante britânica Unilever, tuitou que "vai parar de anunciar no Facebook e no Instagram nos Estados Unidos".

Outras marcas

No início desta semana, as marcas de equipamentos para atividades ao ar livre The North Face, Patagonia e REI se juntaram à campanha.

"Das eleições seguras à pandemia global e à justiça racial, os riscos são altos demais para que a empresa (Facebook) continue sendo cúmplice na disseminação da desinformação e no fomento ao medo e ao ódio", escreveu a empresa Patagonia no Twitter.

A Ben & Jerry's disse que concorda com a campanha. "Todo mundo pediu ao Facebook para tomar medidas mais rigorosas para impedir que suas plataformas de mídia social sejam usadas para dividir nossa nação, anular os eleitores, incentivar e alimentar o racismo e a violência e minar nossa democracia", escreveu a marca.

Após a morte de George Floyd por policiais brancos, em maio, o CEO da Ben & Jerry, Matthew McCarthy, disse que "as empresas precisam ser responsáveis" e implementou planos para aumentar a diversidade na companhia.

No início desta semana, a plataforma de trabalho independente Upwork e o desenvolvedor de software de código aberto Mozilla também se juntaram à campanha.

Por outro lado, o Facebook prometeu "promover a equidade e a justiça racial".

Manifestantes
Image captionApós a morte de George Floyd, centenas de manifestantes foram às ruas de Minneapolis para protestar contra o racismo

"Estamos tomando medidas para revisar nossas políticas, garantir diversidade e transparência ao tomar decisões sobre como aplicamos nossas políticas, além de promover a justiça racial e a participação dos eleitores em nossa plataforma", afirmou a rede social neste domingo.

A declaração também descreveu os padrões comunitários da empresa, que incluem o reconhecimento da importância da plataforma como um "lugar onde as pessoas podem se comunicar".

"Levamos nosso papel a sério para evitar abusos de nosso serviço."

'Não ao ódio'

A campanha Stop Hate for Profit foi lançada na semana passada por grupos de defesa dos direitos civis dos Estados Unidos, como a Liga AntiDifamação, a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor e a organização Color Of Change.

O movimento afirma que a campanha é "uma resposta à longa história do Facebook de permitir que conteúdos racistas, violentos e falsos sejam disseminados em sua plataforma".

O Stop Hate for Profit pediu aos anunciantes que pressionem a empresa a tomar medidas mais rígidas contra o conteúdos de ódio e de racismo em suas plataformas, retirando o investimento em publicidade durante o mês de julho.

Mark Zuckerberg
Image captionMark Zuckerberg administra um conglomerado de negócios que inclui Facebook, Instagram e WhatsApp

Segundo a empresa de consultoria eMarketer, o Facebook é a segunda maior plataforma de anúncios digitais nos Estados Unidos, atrás apenas do Google.

O Facebook e seu CEO, Mark Zuckerberg, são frequentemente criticados ao lidar com questões controversas.

Neste mês, os funcionários da empresa se manifestaram contra a decisão da gigante da tecnologia de não remover ou marcar uma publicação do presidente Donald Trump.

No Twitter, a mesma mensagem de Trump foi classificada com uma etiqueta que alertava que o post "incentivava a violência".

A Unilever, empresa controladora da Ben & Jerry's, não respondeu aos questionamentos da BBC.


Míriam Leitão: A grande chance do saneamento

Novo marco abre espaço para corrigir o atraso no saneamento, mas investimentos também dependem de estabilidade política e respeito ao meio ambiente

Imagine, apenas imagine, que o Brasil tivesse água tratada chegando na casa de todos os brasileiros. Hoje uma população do tamanho da do Canadá não tem serviço de água no Brasil e, portanto, não pode seguir o primeiro protocolo para o combate à pandemia. Outros milhões têm um fornecimento intermitente. Imagine que o Brasil tivesse coleta e tratamento de esgoto. O país teria poupado milhares de vida nessa pandemia.

Nesse momento em que notícias boas são raras, é preciso comemorar o passo dado no saneamento. Ele não garante nada, esqueça os números sempre bilionários que aparecem na economia. Mas o fato é que o novo marco do saneamento estabeleceu datas. Daqui a 13 anos, ou 20, as empresas que prestam serviço terão que entregar a universalização. No meio do caminho haverá metas intermediárias. E a ANA, a agência das águas, será a reguladora-mor.

— Não tem país com esse potencial, acho que só a Índia, mas ela está muito atrasada. As grandes companhias, Suez, Eólia, Águas de Barcelona, não têm para onde ir. Todo mundo está de olho no Brasil. Hoje eu recebi um japonês no escritório. A primeira pergunta que fazem é: e se o novo prefeito não quiser ou o governador tirar o contrato. No novo marco fica mais difícil essa instabilidade. O Brasil é uma jabuticaba, tem 52 agências reguladoras, mas agora haverá uma coordenação federal. A ANA vai criar normas para as agências — diz Edison Carlos, presidente do Trata Brasil.

Hoje só 6% das empresas são privadas, o resto é estatal e 75% são estaduais. O Brasil já viu o suficiente para saber que não é porque a companhia é privada que é boa. Nem para achar que a empresa estatal é justa. Conhece a Cedae e a sua geosmina. Viu que a Odebrecht Ambiental teve que ser vendida, depois de escândalos. A subsidiária da Galvão também caiu na Lava-Jato. O que é importante é haver estímulo à competição, transparência, metas de desempenho, e data para que o Brasil saia da idade média em termos de saneamento.

O novo marco deve muito ao trabalho do senador Tasso Jereissatti, que vem há alguns anos tentando desfazer o cipoal de Medidas Provisórias que caducam ou projetos de lei que precisam ser negociados. O projeto final acabou tendo que fazer concessão para ser votado. Uma delas: as atuais empresas podem renovar os contratos por 30 anos. Só que terão que provar que conseguem chegar nas metas estabelecidas. Edison Carlos, que está nessa estrada há muito tempo, disse que nunca viu um ministro da Economia tão empenhado nesse assunto quanto Paulo Guedes. O primeiro movimento para sair da inércia em que estava o setor foi dado no governo Temer, mas agora é que se conseguiu aprovar.

— Nas regras atuais o prefeito já podia fazer licitação, mas é quase caso a caso. O prefeito precisa estar incomodado com a empresa operadora do município, chamar outra empresa para fazer uma análise, abrir processo de licitação. O setor privado nunca conseguiu ganhar escala. Niterói, Piracicaba, Limeira, Campos, Campo Grande, umas cidades em torno de Porto Alegre, estão com empresas privadas. Em geral, o prefeito não quer brigar com o governador, e a estatal vai ficando — diz Edison Carlos.

Agora haverá um incentivo maior para a competição, as regras estão mais claras, os municípios se reúnem em consórcios e a empresa concessionária terá que provar que tem meios de chegar aos seus objetivos. Se tudo der certo, será um estímulo econômico enorme.

— Movimenta as indústrias de plástico, aço, cimento, equipamentos, produto químico, engenharia, consultoria de arquitetura, tudo se movimenta na economia quando o país investe em saneamento — explica.

Quando se diz que o Brasil “tem potencial” nessa área é porque nosso atraso é tão grande que há muito a fazer. Isso pode ser uma das molas da retomada pós-pandemia. Mas o grande capital não financia país onde há incerteza regulatória, agora já há um marco. Não é só isso. É preciso ter estabilidade política. E pelas regras de conformidade muitos fundos só investem em países que respeitam o meio ambiente.

Imagina um país em que o presidente ameaça a suprema corte e dá avisos enigmáticos de que “está chegando a hora”. Imagina um país em que o ministro do Meio Ambiente propõe aproveitar a pandemia para driblar a lei ambiental. Foi esse recado que foi enviado essa semana às embaixadas pelos fundos de investimento. Um país só pode ser moderno por inteiro. Não existe progresso pela metade.


Hélio Schwartsman: Bandeiras esmigalhadas

É difícil vislumbrar um futuro tranquilo para o governo Jair Bolsonaro

O governo Bolsonaro é tão “sui generis” que deu férias para a oposição. Ele mesmo se encarrega de sabotar a si próprio. Mas, se tivéssemos uma oposição atuante, ela estaria agora empenhada em explorar ao máximo a notícia, divulgada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, de que Flávio Bolsonaro usou dinheiro vivo supostamente recolhido por Fabrício Queiroz em gastos pessoais.

É uma situação de puro simbolismo. Verbas públicas desviadas para o pagamento de despesas indisfarçavelmente pessoais como a escola das filhas e o plano de saúde da família são, no imaginário popular, a definição mesma de corrupção.

A confirmar-se uma denúncia sólida de envolvimento do filho número um num caso de desvio de dinheiro público, vai-se uma das últimas racionalizações ainda usadas pelo eleitor não arrependido de Bolsonaro: “pelo menos é honesto”. A honestidade, afinal, exigiria do primeiro mandatário, senão que denunciasse o próprio rebento, ao menos que não violasse princípios republicanos para protegê-lo.

Uma a uma, estão caindo todas as bandeiras defendidas por Bolsonaro durante a campanha eleitoral. A retórica antissistema se foi com a aliança com o centrão. O discurso liberal é cada vez mais escanteado, em parte porque a epidemia exige mesmo maior atuação do Estado, em parte porque a conversão de Jair nunca foi autêntica. A promessa de combater a corrupção, que já sofrera abalo com a demissão de Sergio Moro, vira agora migalhas.

É difícil vislumbrar um futuro tranquilo para o governo. Hoje, só temos duas certezas: a economia ainda vai piorar bastante e a epidemia vai fazer muito mais vítimas antes de refluir. Nenhuma delas sugere dias fáceis para Jair Bolsonaro.Hélio Schwartsman

*Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".


Fernando Reinach: Navegar ao sabor do vírus

Abrimos mão de controlar a pandemia e o vírus está nos levando para onde deseja

Navegar ao sabor do vento significa içar vela e deixar que o vento nos leve para onde soprar. É abrir mão de comandar o futuro. O Brasil está navegando ao sabor do vírus. Abrimos mão de controlar a pandemia e o vírus está nos levando para onde deseja. Talvez mais lentamente do que poderia, pois não levantamos completamente a vela: lavamos as mãos, usamos máscaras e fazemos um mínimo de isolamento. Sem dúvida estamos caminhando em direção à tragédia, mas em câmara lenta, e não temos planos para retomar o controle. É a consumação da estratégia que chamei em 9 de maio de imunidade de rebanho por incompetência.

Ao sabor do vírus a pandemia no Brasil só terminará quando atingirmos a imunidade de rebanho, o único mecanismo biológico conhecido que inibe a propagação do vírus sem intervenção humana. Navegar ao sabor do vírus pode custar a vida de até 1% dos contaminados. A imunidade de rebanho geralmente ocorre quando 70% a 80% da população suscetível tiver sido infectada. Talvez ocorra antes, mas chegaremos lá antes de a vacina estar disponível. Isso é quase uma certeza. Quais são as evidências de que navegamos ao sabor do vírus? O gráfico abaixo, cortesia do meu amigo Cal, mostra nossa rota desde a chegada do vírus no Brasil.

No eixo vertical estão os números de novos casos por dia, por milhão de habitantes, em cada um de quatro países. Os dados diários foram plotados como uma média móvel de sete dias. O Brasil registra hoje por volta de 150 novos casos, a cada dia, por milhão de habitantes (sem contar as subnotificações), um número maior que os 90 registrados nos Estados Unidos. No eixo horizontal estão os dias que se passaram desde que cada país registrou um caso por milhão de habitantes. Isso ocorreu quando o Brasil registrou 220 novos casos por dia, os EUA, 330, o Reino Unido, 66, e a Itália, 60.

É fácil observar como a Itália, após um crescimento rápido do número de casos por dia, impôs um lockdown rigoroso após o dia 30 e tomou controle do barco. Passados 90 dias, estava com a pandemia sob controle. O Reino Unido demorou para responder e o lockdown veio mais tarde. Mas desde o dia 60 conseguiu reduzir o número de novos casos por dia. Os EUA também se assustaram com o crescimento rápido dos novos casos, implementaram um lockdown nas principais cidades, conseguiram estabilizar o número de novos casos, mas quando começaram a tomar pé da situação relaxaram o distanciamento social. Os resultados da abertura são gritantes, o crescimento rápido do número de novos casos por dia já está ocorrendo.

O mais impressionante é o barco brasileiro. Medidas brandas de distanciamento social retardaram o crescimento da pandemia, que cresceu lenta e livremente por 80 dias. Quando as medidas estavam começando a fazer efeito, veio o relaxamento do distanciamento social e a pandemia voltou a crescer mais rapidamente do que antes, totalmente fora de controle.

O pior no Brasil é que simplesmente não temos um plano para controlar esse crescimento. O exemplo mais claro dessa atitude é o anúncio da abertura das escolas no Estado de São Paulo. Ele deve ocorrer no início de setembro caso todas as áreas do Estado estejam com níveis de propagação classificadas como verde já no início de agosto. O problema é que não foi anunciado simultaneamente um plano capaz de garantir que o Estado de São Paulo atinja essa a condição no início de agosto. Sem executar algum plano seguramente não chegaremos lá, pois São Paulo está batendo todos os dias os recordes de novos casos por dia e número de mortes por dia. Ou seja, as escolas não abrirão em setembro se o governo cumprir o que decretou.

Até agora as medidas anunciadas são inócuas para controlar a pandemia. Oferecer mais leitos de UTI ajuda os pacientes graves, o que é importante, mas não diminui o número de casos. E esse aumento tem limite, que eram respiradores, mas de agora em diante serão profissionais da saúde capazes de atender um número crescente de leitos. Liberar gradativamente as atividades ao menor sinal de desocupação de leitos vai seguramente na direção oposta do controle, pois cada liberação significa levantar um pouco mais a vela desse barco que navega ao sabor do vírus.

E a testagem em massa? Ela tem sido um fracasso em nosso Estado e em todo o País. Os governos sequer detalham o que significa esse termo e como ele pode levar ao controle da pandemia. O número de testes de RT-PCT, que detectam pessoas durante a fase em que estão transmitindo o vírus, e podem ser usados para isolar pessoas que estão transmitindo a doença, são executados em número ínfimo. Pululam iniciativas governamentais baseadas em testes sorológicos, que, sabemos muito bem, somente identificam pessoas que já passaram pela fase crítica da doença e já contaminaram quem deveriam contaminar. São inúteis para controlar a doença e uma bênção para o vírus.

Em suma, não existe nenhuma medida em andamento que tenha alguma chance de reverter o andamento da pandemia nos próximos meses. Nenhuma.

A impressão é que nossos governantes esperam por algum milagre, alguma intervenção divina que provoque a diminuição do espalhamento da doença de maneira mágica, sem que eles tenham de executar algum plano que tenha embasamento científico. Como a fração da população já infectada ainda é baixa, não existe nada no horizonte que vai conter o crescimento diário do número de novos casos em 2020. Estamos navegando ao sabor do vírus com a vela a meio mastro. 

*É BIÓLOGO


Adriana Fernandes: Diálogo da Renda Básica

O tema amadureceu diante do aumento da pobreza e dos milhões de ‘invisíveis’ do País

Ninguém segura mais o debate sobre o fortalecimento dos programas sociais na direção de uma renda básica no Brasil após o fim do auxílio emergencial de R$ 600, criado na pandemia do coronavírus para socorrer a população de baixa renda.

Ele está em pleno voo, como tem mostrado uma série de reportagens do Estadão. O tema amadureceu com velocidade inimaginável há seis meses, diante do aumento da pobreza durante a pandemia, que clareou a fotografia dos milhões de “invisíveis” no País.

Congresso e governo se movimentam para não perder esse bonde que se movimenta em alta velocidade por sobrevivência política. Cada um a seu modo. A questão no momento é como financiar o aumento das transferências sociais num cenário de piora das contas públicas, com a dívida pública no caminho de 100% do Produto Interno Bruto (PIB) e a restrição do teto de gastos.

Se quiser mesmo avançar num programa de fortalecimento dos programas sociais e não ser atropelado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, terá de chamar para o diálogo (melhor que seja o mais rápido possível) os parlamentares e os principais especialistas do tema no Brasil envolvidos na elaboração de uma proposta de renda básica.

Eles são muitos e com grande experiência acumulada em quase 30 anos, desde a apresentação do primeiro projeto de lei de garantia de renda mínima, pelo ex-senador Eduardo Suplicy em abril de 1991.

O grupo tem apoio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que quer ver aprovado o novo programa ainda durante sua gestão no comando da Casa, para deixar sua marca reformista.

Nessa negociação, o governo, que desenha o Renda Brasil (programa que pretende colocar no lugar do Bolsa Família), não poderá fazer o que fez durante a implementação do auxílio emergencial de R$ 600. Não ouviu quem muito sabe do assunto e não deu transparência total aos dados do programa, sobretudo às informações dos pedidos negados e em análise. O auxílio completa 80 dias neste sábado e tem gente que ainda está em análise.

Muitos erros que ocorreram na implementação do benefício foram apontados antes por esse grupo e ignorados pelo Ministério da Cidadania. Agora, a pressão da sociedade civil aumentou para estender o auxílio até o final do ano (ou seja, mais seis parcelas), e o governo tenta organizar e oferecer a prorrogação por mais três parcelas de R$ 500, R$ 400 e R$ 300, resultando num valor total de R$ 1.200.

O governo tenta ganhar tempo para fechar sua proposta. Uma espécie de transição para impedir, na prática, que não só o Congresso amplie muito as parcelas do auxílio (elevando o endividamento público) mas também que o fim do auxílio fique com o carimbo do presidente Jair Bolsonaro.

Há poucos dias, Bolsonaro disse que não tinha dinheiro para manter o valor do auxílio. Depois voltou atrás, durante a live da última quinta-feira, com a oferta dos R$ 1.200 em três parcelas. O anúncio ocorreu no mesmo dia em que um grupo de 45 parlamentares apresentou projeto de lei para conceder mais seis parcelas e alterar as regras.

A negociação está só começando, e o mais provável é um entendimento no meio do caminho, provavelmente três parcelas de R$ 600. Cada uma delas ao custo de R$ 51,5 bilhões.

A oposição a Bolsonaro já viu que a digital do presidente no programa pode lhe favorecer nas próximas eleições, principalmente em redutos onde não tinha penetração. Com esse perigo, não dá sinais para o diálogo. Pelo contrário, afirmam que Guedes, com sua cartilha liberal, blefa ao falar de aumento dos programas sociais.

Sem o diálogo, as mudanças legais para arrumar o dinheiro que vai irrigar as transferências não serão aprovadas, mesmo com a aliança entre Bolsonaro e as lideranças do Centrão.

A equipe econômica não blefa quando acena com o fortalecimento dos programas por uma simples razão. Não quer perder o teto de gastos e tenta de alguma forma “organizar” as prioridades para conseguir abrir espaço nas despesas para a política social. Para isso, gastos terão de ser revistos e enfrentados pelo Congresso.

Como mostrou o Estadão, cálculos da equipe econômica já apontam a intenção de dobrar o orçamento do Bolsa Família, de R$ 32 bilhões, com remanejamento de despesas de programas ineficientes.

O tempo dirá se é blefe ou necessidade de tomar a dianteira para não ser atropelado pela mudança do teto ainda esse ano, que está na berlinda. A flexibilização do teto parece cada vez mais inevitável, mesmo com a avaliação da equipe econômica de que dá para aumentar os recursos para o programa social sem mexer nele.

O tempo dirá. Maia surpreendeu ao não descartar a mudança no teto em live promovida pela Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado.

Por ora, o que se pode esperar é uma renda mínima que contemple mais pessoas. Não será uma renda básica universal e sem condicionantes. Mas ficará mais próxima dela. Não será pouco garantir essa mudança, diz à coluna o presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, Leandro Ferreira, que reúne 163 organizações da sociedade civil. O diálogo passa por elas.


Mario Sérgio Conti: Zumbidos da revolução e do nacionalismo de Cuba em 'Wasp Network'

O filme se passa durante a implosão da União Soviética, que deixou de subvencionar Cuba

Ao comentar “Wasp Network: Rede de Espiões”, transmitido pela Netflix, Anthony Lane faz na New Yorker uma pergunta que chamou de “suprema”: “Em qual universo uma criatura sensível abandonaria voluntariamente Penélope Cruz?”. Capciosa, a pergunta procede.

A atriz interpreta a engenheira Olga, filha de operários e militante do Partido Comunista de Cuba. Era casada e tinha uma filha com René, outro comunista de carteirinha: comandara uma coluna de tanques na guerra civil angolana e recebera a medalha de combatente internacionalista.

Num dia de sol outonal de 1990, sem dizer palavra a Olga, René entra num avião cubano e o pilota até a Flórida. Lá, vitupera Cuba e diz que lutará com outros exilados contra Fidel Castro. Olga fica malvista por ter casado com um “gusano”, um verme que traiu a pátria.

René é interpretado por Edgar Ramírez, astro de “Carlos”, o melhor filme do diretor Olivier Assayas. Com outros dissidentes, come o pão que Tio Sam amassou. É jardineiro, vive mal, morre de saudades de Olga-Penélope Cruz.

René se ligou aos anticastristas e passou a pilotar aviões que ajudavam quem fugia de barco da ilha. Logo foi chamado para missões lucrativas: trazer cocaína da América Central. Contou o que se passava a um agente do FBI —que agradeceu e o convidou a ser informante do órgão.

Filmado em Havana e na Flórida, “Wasp Network” tem um visual de alvoradas cálidas e floridas. Os entretons áureos contrastam com a fauna acinzentada da diáspora cubana em Miami, que rasteja
num brejo de traficantes de drogas e armas, políticos e policiais, terroristas e espiões.

Há até heróis nesse charco. O filme se passa durante a implosão da União Soviética, que deixou de subvencionar Cuba. Faltou tudo na ilha, de luz a gasolina, remédios e empregos. Para atrair moedas fortes, o Partido Comunista investiu no turismo internacional.

Como a iniciativa deu certo, grupos anticastristas organizaram da Flórida a explosão de bombas em hotéis e restaurantes de Havana. Invadiam o espaço aéreo cubano para jogar sobre a cidade panfletos e até medalhinhas de Nossa Senhora do Cobre, a padroeira do país.

Cuba enviou à Casa Branca vários dossiês sobre os atentados terroristas. Um deles foi levado pelo escritor Gabriel García Márquez, amigo comum de Bill Clinton e Fidel Castro. Em vão: as bombas continuaram. A conivência americana era evidente.

A resposta dos comunistas está no título de “Wasp Network”, a Rede Vespa. Passando-se por desertores, espiões cubanos foram enviados à Flórida para se infiltrar nas fileiras anticastristas e desbaratar atentados. René é uma vespa, um dos heróis do filme.

Assayas conta essa história de maneira conturbada, realçando a aventura em detrimento da psicologia dos personagens e da política cubano-americana. Numa entrevista, o diretor justificou a confusão do filme dizendo que o livro no qual se baseou tem toneladas de informações.

Trata-se de “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”, de Fernando Morais. O autor de “Chatô” entrevistou durante três anos os espiões e suas famílias, agentes do FBI, líderes anticastristas e gente do governo de Cuba e dos Estados Unidos. Seu livro é uma reportagem de primeira linha.

A peste ilhou Morais em Ilhabela. Ele gostou do filme, embora ache que poderia melhorar se fosse mais longo e político. E respondeu na lata à pergunta que não quer calar: por que alguém troca Penélope Cruz para viver entre inimigos, se arriscando a morrer ou mofar na prisão?

“Por patriotismo”, disse. Patriotismo não é só uma palavra fora de moda; é uma história. René e as vespas eram veteranos da guerra que levou 400 mil cubanos a Angola —4% da população da ilha. Enfrentaram por 15 anos tropas armadas pelos Estados Unidos.

Olga justifica com três palavras, perdidas na torrente de atos e palavras de “Wasp Network”, a presença dos cubanos em Luanda e Miami: estiveram ali “por nossa revolução”.

O zumbido das conquistas da revolução, sobretudo o igualitarismo na saúde, na moradia e na educação, explicaria o patriotismo das vespas. Implicitamente, se admite que a ausência de liberdade e democracia contaria menos.

Onde haveria patriotismo semelhante? Fernando Morais pensou um pouco e respondeu: Israel. Produto de uma mobilização social e bélica, de uma nação minúscula no meio de inimigos, o nacionalismo israelense teria algo do cubano.

Com a diferença que os Estados Unidos sustentam Israel até hoje, e a União Soviética já era faz tempo.

*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".


Julianna Sofia: Porta da rua

Haverá poucos direitos e encargos trabalhistas reduzidos

Nas palavras do ministro Paulo Guedes (Economia) foi uma ideia “espetacular” do presidente Jair Bolsonaro a proposta de estender o auxílio emergencial por três meses em parcelas de R$ 500, R$ 400 e R$ 300. De tão estupenda, Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) não se conteve. Num —improvável— lapso, antecipou nas redes sociais medida que horas mais tarde coube ao chefe anunciar, sem oficializar.

Decerto, Ramos não é um tolo a atropelar por descuido a hierarquia do Palácio do Planalto. Assim como Guedes não acha a proposta lá essas coisas —há algumas semanas defendia apenas R$ 200 por um, dois meses. E Bolsonaro está longe de ser uma mente privilegiada, segundo avaliam 54% dos eleitores no Datafolha. Recentemente chegou a dizer que vetaria qualquer valor aprovado pelo Congresso que superasse duas parcelas de R$ 300.

Diante do abismo da desigualdade social, que se acentua com os efeitos da pandemia, o governo revela inabilidade em lidar com o tema. Pressionado a prorrogar o auxílio emergencial e vendo avançar o debate na sociedade e no Legislativo pela criação de um programa de renda mínima permanente, passa a agitar canhestramente bandeira que nunca empunhou.

Em ritmo acelerado, prepara o Renda Brasil a reboque da visibilidade conquistada com o auxílio de R$ 600. O programa se propõe ambicioso na sucessão do Bolsa Família, via extinção de iniciativas sociais, como o seguro-defeso e o abono salarial.

Por descrer em políticas de transferência de renda como solução, receberá de braços abertos os beneficiários do Renda Brasil, mas já com o dedo a lhes indicar a porta da rua. Num eufemismo guediano, a saída do novo programa ganha nome de “rampa de acesso”. Quem por ela passar, estará habilitado a um plano de empregos para pessoas de baixa renda e sem qualificação. Será possível ao empregado manter o benefício assistencial, com valor menor.

Haverá poucos direitos e encargos trabalhistas reduzidos.


Marcus Pestana: Investimentos e expectativas

Afirmar que a maior prioridade pós-pandemia é a geração de empregos e a retomada do crescimento econômico é “chover no molhado”. Afinal, as novas projeções do FMI apontam para uma retração da economia brasileira de 9,1% em 2020.

Os motores que podem impulsionar são o investimento e o consumo, privado e público, e o comércio exterior. Mas quem comanda o crescimento são os investimentos. Nas ultimas décadas a taxa de investimento do país foi reconhecidamente baixa, chegando a 15,4% do PIB em 2019.

Dada a grave restrição fiscal que se impõe ao setor público as respostas não virão a partir de seus investimentos. A situação fiscal é dramática. E as receitas estão caindo em função da crise e as despesas continuam crescendo em sua rigidez inercial. A resposta obrigatoriamente virá dos investimentos privados e do crescimento das exportações.

Mas não bastam, para atrair investimentos privados, bons fundamentos macroeconômicos. Já foi dito que no plano fiscal não estamos bem. Mas no segmento da política monetária temos a menor taxa básica de juros da história (2,25%) e inflação bem abaixo da meta. E do ponto de vista cambial temos reservas cambiais abundantes, saldo comercial positivo, apesar da queda do investimento direto estrangeiro e da relativa fuga de capitais do Brasil.

Mas há, além dos dados objetivos, fatores subjetivos que se refletem na formação das expectativas dos investidores. Precisamos gerar um ambiente de confiança. Garantir segurança jurídica, estabilidade legal e regulatória, diminuir o Custo Brasil, garantir infraestrutura adequada ao desenvolvimento, enraizar a cultura de respeito aos contratos, passar a ideia de que o Brasil tem rumo e estancar a instabilidade política.

O atual ambiente institucional confuso não nos ajudará a sair da profunda recessão que se avizinha. O investidor gosta de tranquilidade e de regras claras e confiáveis.

O jornal Valor Econômico mostrou que das dez maiores PPPs do país, cinco ou fracassaram ou têm futuro incerto. Mas há bons exemplos de parcerias que deram resultados nas áreas da infraestrutura, saúde, educação e sistema penitenciário. Várias concessões públicas estão problematizadas, mas há muitas que foram bem. O programa de privatizações foi estancado devido à crise, mas será retomado em algum momento futuro.

Entretanto, precisamos melhorar muito a imagem do Brasil e prosseguir nas reformas estruturais macro e microeconômicas. Temos que tratar melhor a questão ambiental e dos direitos humanos que pesam na opinião pública internacional. Gestores de fundos que administram 3,7 trilhões de dólares encaminharam documento às embaixadas brasileiras em oito países questionando a postura brasileira. Precisamos retomar as tradições da política externa brasileira e evitar polarizações danosas e alinhamentos automáticos.

E avançar em medidas como o Novo Marco do Saneamento aprovado, que poderá atrair 700 bilhões de reais em investimentos e tem metas arrojadas de assegurar água tratada a 99% da população e coleta de esgoto a 90% dos brasileiros até 2033.

Na mesma direção, aprovar as reformas tributária e administrativa, licitar o 5G nas telecomunicações e manter o compromisso permanente com a responsabilidade fiscal e a estabilidade da economia.

É isto que todos esperam como horizonte para um novo Brasil pós-COVID-19.


Demétrio Magnoli: Derrubada de estátuas é a imposição do esquecimento

Uma estátua erguida no passado não representa uma celebração presente

A Oxford Union, representação dos estudantes da Universidade de Oxford, votou a favor da campanha “Rhodes deve cair”, iniciada numa universidade sul-africana com o objetivo de remover a estátua de Cecil Rhodes da fachada de um dos edifícios da universidade britânica.

No fim, a estátua fica, graças à pressão exercida por grandes doadores de Oxford. O dinheiro dobrou os intelectuais, impedindo-os de agir como vândalos, coisa que gostariam de fazer.

Rhodes é o maior ícone do imperialismo britânico na África. A sua figura personifica a ideia racista da “missão civilizatória do homem branco” que impulsionou o empreendimento colonial do outono do século 19. As sementes do apartheid na África do Sul e na Rodésia do Sul (atual Zimbábue) foram plantadas no solo que ele arou.

Os vândalos do bem escolheram o alvo certo. Assim como os intelectuais de ontem, que ergueram estátuas para celebrar as ideias hegemônicas da época, os de hoje estão dispostos a derrubá-las em nome do mesmo princípio covarde.

Uma estátua é uma cicatriz da história, uma marca inscrita pelo passado no corpo paisagístico da sociedade. Nas praças, nos parques ou nas ruas, as estátuas alertam-nos sobre o passado —ou melhor, sobre incontáveis camadas de passados. A derrubada desses símbolos revela o desejo tirânico de exterminar a memória social.

Uma estátua erguida no passado não representa uma celebração presente de um personagem ou de uma ideologia, mas apenas a prova material de que, um dia, em outra época, isso foi celebrado.

Sua derrubada não é um chamado à reflexão sobre os erros, os crimes, a tragédia e a dor, mas a imposição do esquecimento.

A transferência das estátuas malditas para museus ou parques temáticos, retirando-as de seus contextos, tem efeito similar. Num caso, como no outro, trata-se de higienizar os lugares de circulação cotidiana, reservando o exercício da memória a uma elite de especialistas da memória.

Rhodes, o pecador, não está só. De Pedro, o Grande, a Thomas Jefferson, de Marx a Churchill, de Machado de Assis a Monteiro Lobato, ninguém passa no teste contemporâneo dos valores.

A lógica férrea do vandalismo do bem conduz a um programa de terra arrasada. O rastilho de fogueiras purificadoras nada poupará, a não ser as novas estátuas esculpidas pelos próprios vândalos do bem, que virão a ser derrubadas por seus futuros seguidores. O presente perpétuo —eis a perigosa ambição dessa seita de iconoclastas.

Lenin caiu, às centenas, por toda a antiga Alemanha Oriental, nos meses loucos que se seguiram à queda do Muro de Berlim. Aquilo foi uma revolução popular. As estátuas derrubadas eram a representação pública de um poder real, opressivo e totalitário.

“Borba Gato, matador de índios e proprietário de escravos, deve cair.” Os alemães que limpavam as ruas do Lenin onipresente estavam mudando o presente. Os vândalos do bem investem contra sombras do passado. Mascarados de radicais, eles ajudam a desviar os olhares das iniquidades do presente.

Quem tem o direito moral de suprimir os lugares da memória? Se concedermos esse direito aos vândalos do bem, como negá-lo a governos eleitos democraticamente? E, se é assim, como criticar a remoção da estátua de Imre Nagy, líder da revolução democrática húngara de 1956, pelo primeiro-ministro Viktor Orbán, um nacionalista de direita aliado de Vladimir Putin? Ou como impedir que Jair Bolsonaro ou algum assecla eleito derrube a escultura “Vlado Vitorioso”, homenagem a Vladimir Herzog implantada numa rua do centro de São Paulo?

A Universidade de Oxford tem quase mil anos. Há pouco mais de um século ela cantou as glórias do imperialismo britânico. O registro esculpido na sua fachada será preservado e cercado por texto de contextualização histórica. Os vândalos do bem perderam essa —mas não desistirão de acender fogueiras.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Folha de S. Paulo: Facebook colocará advertências em conteúdo após boicote de anunciantes

Pressionada, rede social endureceu políticas de regulação; Unilever e outras empresas retiraram anúncios

Pressionado por grupos da sociedade civil e anunciantes, o Facebook anunciou nesta sexta-feira (26) que vai endurecer suas políticas de moderação de conteúdo, colocando advertências em posts que violem as políticas da empresa e proibindo mais tipos de mensagens de ódio em anúncios publicitários.

A plataforma agora suprimirá os anúncios que afirmem que as pessoas de determinados origens, etnias, nacionalidades, gênero, orientação sexual ou status migratório representam uma ameaça para a segurança ou a saúde dos demais, disse seu presidente, Mark Zuckerberg, em uma live.

A maior rede social do mundo tem sido criticada por grupos antirracistas e pressionada a ser mais intransigente com conteúdos de ódio postados em suas plataformas, com boicote por parte de anunciantes importantes.

A campanha "Stop Hate for Profit", iniciada por grupos de direitos civis dos EUA após a morte de George Floyd, pede que o Facebook, dono do Instagram, faça mais para impedir o discurso de ódio.

Mais de 90 empresas decidiram suspender os anúncios na plataforma, entre elas a multinacional de alimentos e cosméticos Unilever, a empresa americana de telecomunicações Verizon, a fabricante de sorvetes Ben & Jerry's e as marcas esportivas Patagonia, North Face e REI.

Zuckerberg falou também da preparação da plataforma para as eleições de novembro nos EUA, prometendo que sua equipe barraria tentativas de manobra para suprimir o voto, particularmente de minorias.

No fim de maio, o Facebook foi criticado por, diferentemente do Twitter, negar-se a moderar mensagens polêmicas do presidente Donald Trump, uma sobre o voto por correio (que ele tratou como fraude eleitoral) e outra sobre as manifestações que vieram após a morte de George Floyd.

O Twitter ocultou os comentários do presidente e reduziu sua circulação potencial, apesar de deixá-los disponíveis para consulta.

O Facebook optou por uma medida no meio do caminho entre eliminar conteúdos e não intervir de nenhuma maneira, que era sua política até agora.

"Os usuários poderão compartilhar este conteúdo para condená-lo (...), mas agregaremos uma advertência para dizer às pessoas que o conteúdo que compartilham pode violar nossas regras”, disse Zuckerberg.

Uma porta-voz do Facebook confirmou que a nova política implicaria em incluir um link com informações eleitorais no post de Trump sobre votos pelo correio.

A Unilever anunciou nesta sexta que interromperá a veiculação de anúncios no Facebook, Instagram e Twitter nos Estados Unidos até o fim do ano, citando o discurso de ódio durante a campanha eleitoral polarizada dos EUA.

As ações de Facebook e Twitter caíam mais de 7% nesta tarde.