Day: abril 30, 2020

‘Vamos viver de forma dramática com Covid-19 até final do ano’, diz Helio Bacha

Médico infectologista, que foi contaminado pelo coronavírus, diz que mundo vive ‘pior epidemia’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O médico infectologista do Hospital Albert Einstein (SP), Helio Bacha, diz ser impensável encerrar no momento o isolamento social no Brasil, como quer o presidente Jair Bolsonaro. “Vamos viver de forma dramática com a Covid-19 até o final do ano”, alerta, em entrevista especial concedida à nova edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília. Ele próprio já foi contaminado pelo coronavírus, mas se recuperou.

» Acesse aqui a 18ª edição da revista Política Democrática Online!

Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados gratuitamente no site da FAP. De acordo com o infectologista, a única arma contra a doença é o isolamento. Bacha conta que foi contaminado após umas três semanas de atendimento a pacientes com a doença. Recuperado, ele conclui que a sua experiência pessoal tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória.

“Minha experiência pessoal tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória”, afirma, para continuar: “Ela absolutamente não tem nada a ver com H1N1. É como me perguntam sempre: ‘o que é pior, a epidemia do H1N1 ou essa?’, eu digo: ‘essa, porque a pior é sempre a atual’. E essa tem características muito especiais”.

Bacha avalia que a Covid-19 é uma doença que pode ser atenuada em números de casos, mas ela veio para ficar. Na entrevista que concedeu ä revista Política Democrática Online, o médico infectologista também trata do papel do SUS (Sistema Único de Saúde) e de Bolsonaro, que, para ele, "aparentemente está fazendo uma aposta política, pondo suas fichas na área da saúde, da crise sanitária, dessa pandemia que corre o mundo e o Brasil."

Ao final da entrevista publicada na nova edição da revista Política Democrática Online, o médico deixa uma mensagem de esperança: “Que a experiência trágica dessa epidemia, no mundo, nos conduza à construção de um mundo mais solidário, mais fraterno, onde o sofrimento das pessoas não seja a distância. Que nós tenhamos um compromisso social e político de atender a todos. Espero que façamos disso um mundo melhor”.

Leia mais:

 

» ‘Bolsonarismo ultrapassa clã presidencial’, analisa Marco Aurélio Nogueira

» ‘É urgente enfrentar escalada autoritária de Bolsonaro’, diz editorial da Política Democrática

» Política Democrática: Tragédias do coronavírus e do governo Bolsonaro são destaques

» Acesse aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


El País: STF confronta Bolsonaro e assume protagonismo na crise política

Congresso espera o avanço de apurações que envolvem o presidente e seu entorno para dar andamento a impeachment ou CPIs. Nos bastidores, cúpulas dos dois poderes avaliam conjuntamente cenários

Afonso Benites, do El País

Supremo Tribunal Federal entrou mais uma vez de cabeça em uma crise política que envolve o Palácio do Planalto. Enquanto, de momento, Rodrigo Maia, presidente da Câmara, não dá sinais de que se moverá para dar andamento aos quase 30 pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro e tampouco ele ou o comando do Senado se mostram dispostos a instaurar comissões parlamentares de inquérito (CPIs) contra o Governo, coube ao Judiciário confrontar mais uma vez o mandatário, que tem participado de atos contra a democracia e desrespeitado orientações de autoridades sanitárias enquanto o país assiste à escalada da pandemia do coronavírus. O ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, decidiu conceder um mandado de segurança impedindo o presidente de nomear o delegado Alexandre Ramagem, amigo dos Bolsonato, como diretor-geral da Polícia Federal. A Advocacia-Geral da União decidiu não recorrer, mas o presidente não está convencido: “É dever dela recorrer”.

Ainda não está claro como Bolsonaro realizará o “sonho”, como ele descreveu, de colocar Ramagem no comando da PF. À espera dos próximos lances no imbróglio, há intensa movimentação nos bastidores entre lideranças do Legislativo e do Judiciário em Brasília. Desde que Bolsonaro participou de uma manifestação a favor de um golpe militar, no dia 19 de abril, ao menos duas reuniões entre ministros do STF e representantes da cúpula do Congresso ocorreram fora das agendas oficiais. Nos encontros, debateram o cenário político e os próximos passos que cada poder poderia dar. A orientação para o momento é de cautela. Deputados e senadores devem esperar para ver o quanto avançam três apurações no Supremo que podem envolver o presidente, seus familiares e deputados que o apoiam para decidir como agir.

Uma das apurações em andamento na Corte é baseada nas acusações do agora ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que acusou o presidente de tentar interferir politicamente na Polícia Federal ao trocar seu diretor-geral. A outra é a que investiga quem são os parlamentares e empresários bolsonaristas que deram suporte aos atos de 19 de abril, considerado um crime contra a lei de segurança nacional. E a última tem como um dos principais alvos o vereador Carlos Bolsonaro, um dos filhos do presidente que é suspeito de liderar uma milícia virtual responsável por espalhar notícias falsas contra as instituições e que acabam beneficiando o presidente.

Esse último inquérito é considerado inconstitucional por dezenas de juristas, porque ele foi aberto pelo próprio STF “de ofício”, ou seja, sem ser instado a fazê-lo, no ano passado. Mas, como um interlocutor do STF e outro do Congresso disseram à reportagem, a conveniência política vai se refletir na sobrevivência do Governo Bolsonaro. “Se for conveniente usar esse inquérito para derrubar o presidente, ele será usado”, afirmou um parlamentar, antes de ressaltar que ainda não há clima pra destituir o chefe do Executivo.

Essas movimentações têm incomodado o mandatário. Nesta quarta-feira ele mandou recados e, pela terceira vez em menos de uma semana, precisou dizer que era ele quem mandava em seu Governo. Quando questionado sobre o anúncio da Advocacia-Geral da União de que não recorreria do veto de Alexandre de Moraes a Ramagem, disse a repórteres: “Quem manda sou eu e eu quero o Ramagem lá”.

Antes, ao dar posse a dois novos ministros, André Mendonça (Justiça), e José Levi Mello do Amaral Júnior (Advocacia-Geral), o presidente ainda disse que a Constituição prevê que os três poderes são independentes e harmônicos. “Não posso admitir que ninguém ouse desrespeitar ou tentar desbordar a nossa Constituição”, afirmou Bolsonaro na cerimônia em que dois ministros do STF estavam presentes, o presidente Antonio Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Elogiou ambos, assim como o presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otavio de Noronha, com quem diz estar “aprendendo muito” sobre o mundo jurídico. Na mesma cerimônia, afirmou mais uma vez que não desistiu de nomear Ramagem para o cargo. “Gostaria de honrá-lo no dia de hoje, dando-lhe posse. Esse sonho meu, e mais dele, brevemente se concretizará”, disse.

STF na linha de frente

Independentemente do desdobramento, há a percepção de que, com o veto a Ramagem, o mal-estar entre Supremo e Planalto mudou de nível. A julgar pelos últimos dias, em Brasília, a avaliação entre parte da classe política é o confronto com o STF voltará a ser o normal daqui para frente. Antevendo a escalada da crise, influenciadores bolsonaristas nas redes sociais têm mais uma vez incentivado a publicação da hashtag “STF Vergonha Nacional” e disseram que as decisões da Corte eram políticas. É um discurso semelhante ao adotado por petistas quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi impedido por Gilmar Mendes de assumir a chefia da Casa Civil na gestão Dilma Rousseff (PT), em 2016, porque o magistrado entendeu que ele estaria usando o cargo para se blindar de investigações policiais das quais era alvo.

O caso de Lula mostra que não é primeira vez que o Supremo entra em cheio em uma crise política —ainda que a ação da Corte para barrar nomeações estejam longe de ser um consenso no meio jurídico. Se o STF barrou o petista e agora Ramagem na direção da PF, Michel Temer (MDB) teve o aval para nomear seu correligionário Wellington Moreira Franco, então investigado pela Operação Lava Jato, para a Secretaria-Geral de Governo em 2017.

Sob Bolsonaro, o Supremo já deu várias mostras de que atuará para conter o que considerar “excessos”. A Corte já impediu o presidente de subordinar a Funai (Fundação Nacional do Índio) ao Ministério da Agricultura, por exemplo. O próprio ministro Alexandre de Moraes também já decidiu que Bolsonaro não pode decidir sobre reabertura de comércios e, antes mesmo do veto desta quarta, já havia blindado os delegados que cuidam do inquérito das fake news no Supremo: o comando interino da PF não pode mudá-los.

Seja como for, o presidente sabe que não precisa, necessariamente, se movimentar tanto para garantir Ramagem na função, porque já o tem na Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e porque o ministro da Justiça, a quem a PF é subordinada, declarou lealdade a ele. Em seu discurso de posse, Mendonça chamou Bolsonaro de “profeta no combate à criminalidade”, disse que pretende, no ministério, ser um “líder servo”.

Os movimentos de Bolsonaro na PF têm incomodado policiais experientes, que cobram mudança no processo de escolha do diretor-geral e entendem que ele poderia ter um mandato para não ficar dependente do interesse político da ocasião. Nos últimos três anos, já foram quatro trocas de dirigentes. “Ramagem é tido como uma pessoa capaz. Ele não é um alienígena na PF, mas a situação em que é feita a troca precisa mudar urgentemente”, disse o presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal, Edvandir Paiva. Na avaliação dele, Bolsonaro precisa parar de buscar confrontos institucionais. “Se o presidente não compreender o papel do estadista e da instituição do Estado, vai haver atrito o tempo inteiro”


Eliane Cantanhêde: Decisão não é de um ministro, mas sim de um Poder

Em relação a Bolsonaro, a disposição no Supremo é de 11 x 0 quando se trata de temas relacionados a democracia e equilíbrio entre Poderes

A suspensão da posse do delegado Alexandre Ramagem na Polícia Federal, determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, surpreendeu o mundo político, mas não é um fato isolado. Faz parte de um pacote de resistência do Supremo Tribunal Federal a um governo que acha que pode tudo, mesmo ultrapassando a linha do razoável. Em relação ao presidente Jair Bolsonaro, a disposição é de 11 x 0 quando se trata de temas relacionados a democracia e equilíbrio entre Poderes.

A nomeação de ministros e do próprio diretor-geral da PF é atribuição exclusiva de presidentes da República, mas Alexandre de Moraes - que foi secretário de Segurança Pública em São Paulo e conhece bem as polícias - recorreu a um princípio constitucional que vem se popularizando: o da impessoalidade e da moralidade pública.

Como delegado de carreira, não há reparo a Ramagem nem dentro nem fora da PF, muito menos no STF. O problema está nas circunstâncias: todas as credenciais dele se resumem à grande proximidade com Bolsonaro e seus filhos desde a campanha eleitoral de 2018, quando chefiou o esquema de segurança do então candidato do PSL. Ou seja: a suspeita é que Ramagem tenha sido escolhido não para trabalhar pela PF, mas para a família Bolsonaro.

Para reforçar a percepção, a nomeação veio no rastro da acusação do então ministro Sérgio Moro de que o presidente queria acesso direto ao diretor-geral, a superintendentes e a relatórios de inteligência da PF. Para, em tese, como muitos temem, poder manipular as informações a favor de aliados e filhos e contra adversários.

Nada contra o próprio Ramagem, mas, como Ernesto Araujo era “embaixador júnior” ao assumir o Ministério das Relações Exteriores sem jamais ter ocupado uma embaixada, ele foi nomeado para a direção geral da PF sem ter sido superintendente do órgão em nenhum Estado. A comparação de seu currículo com o do antecessor Mauricio Valeixo, demitido por Bolsonaro, é constrangedora.

O fundamental, porém, é que a decisão de Alexandre de Moraes tem respaldo dos seus pares de toga, atentos desde a inesquecível fase do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) - “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo” - e perplexos com o apoio explícito do já presidente Jair Bolsonaro a atos que pedem intervenção militar, com fechamento do Congresso e do STF.

Há na alta corte do País dois movimentos na mesma direção: a autopreservação e a garantia da democracia.

As sucessivas demonstrações do Judiciário têm a adesão da cúpula do Legislativo. A diferença é que o Supremo tem torpedos, mas o botão da bomba atômica - autorizar ou não um pedido de impeachment - está com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A ele, sobra uma nova alternativa: jogar parado. E, de preferência, calado. Afinal, batalhas têm sido inevitáveis, mas a ninguém interessa uma guerra. Resta esperar, agora, o contra-ataque de Bolsonaro.


Ribamar Oliveira: Sacrifício desigual

Trabalhador “comum” será mais penalizado na crise que servidor público

A contrapartida que o ministro da Economia, Paulo Guedes, quer de Estados e municípios para que recebam ajuda financeira do governo federal chega a ser surrealista. No momento em as receitas estaduais e municipais estão em queda livre e as empresas privadas demitem, reduzem salários e suspendem contratos de seus trabalhadores, Guedes propõe que os servidores públicos fiquem apenas sem reajuste salarial durante 18 meses. Ou seja, até o fim de 2021. Em 2022, que será um ano de eleições gerais, eles poderão ter aumento salarial.

Se este é o sacrifício possível a ser exigido dos servidores, em meio a uma situação de calamidade pública, em que milhares de pessoas estão morrendo e outros milhares perdendo seus empregos, então as propostas de emenda constitucional 186 e 188, encaminhadas no ano passado por Guedes ao Congresso, não irão prosperar. As duas preveem medidas muito mais duras para o funcionalismo, como forma de ajustar as contas públicas. Elas autorizam, por exemplo, a redução da carga de trabalho e a consequente diminuição dos salários.

As medidas das PECs não teriam validade por apenas 18 meses, mas, no caso da União, até que o governo voltasse a cumprir a chamada “regra de ouro” das finanças públicas e, no caso dos Estados e municípios, até que as despesas correntes ficassem abaixo de 95% das receitas correntes. O prazo de vigência das medidas, portanto, seria o do ajuste das contas públicas. A “regra de ouro” é aquela que proíbe o aumento do endividamento público para o pagamento de despesas correntes.

Ainda em março deste ano, quando a Câmara dos Deputados começou a discutir a chamada “PEC do Orçamento de Guerra”, uma das ideias apresentadas foi a redução da remuneração dos servidores, como medida indispensável para fazer frente às despesas que a União, os Estados e os municípios teriam com o combate à pandemia. Era também considerada importante para igualar a situação dos funcionários públicos com a dos trabalhadores da iniciativa privada, que sofrerão perda de renda durante a crise.

A discussão foi liderada pelo próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia, mas contou sempre com a concordância e o estímulo da área econômica do governo. Maia tinha interlocutor constante na equipe e o texto estava sendo redigido em comum acordo. Uma versão da PEC, divulgada com exclusividade pelo Valor, dizia que as remunerações seriam reduzidas em 30% e esse dispositivo teria validade até 2023.

As corporações de servidores reagiram imediatamente à proposta, antes mesmo dela ser oficialmente formalizada. Representantes de entidades dos magistrados foram ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli. Dele, ouviram que as propostas de redução da remuneração dos servidores estavam “paralisadas” e só voltariam à pauta caso houvesse consenso entre os Poderes, como informou o Valor. Os juízes não aceitavam redução de salários.

A equipe de Guedes descobriu também que o próprio presidente Jair Bolsonaro era contrário à proposta. Uma redução de remunerações teria de incluir também os militares. Em entrevista à TV CNN Brasil, no mesmo dia da demissão do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, Bolsonaro acusou o presidente da Câmara de querer fazer “um confisco” de 25% nos salários dos servidores, o que ele considerou inadmissível. Com a reação de Bolsonaro, Guedes foi obrigado a recuar e terminou fazendo a proposta de congelar, por dois anos, os salários dos servidores. Com isso, o assunto saiu da “PEC do Orçamento de Guerra”.

O fato é que, no pós-crise, os desafios serão imensos na área fiscal. Com as medidas que estão sendo adotadas, os principais analistas de mercado estimam que o déficit primário da União deverá ficar em torno de R$ 600 bilhões neste ano. Desde 2014, o setor público apresenta déficit primário em suas contas e elas continuarão no vermelho ainda por vários anos.

A dívida pública bruta poderá sair de 76,8% do Produto Interno Bruto (PIB), no ano passado, para perto de 90% do PIB, este ano, de acordo com projeções de analistas do mercado. A Instituição Fiscal Independente (IFI) projeta que ela chegará a 100% do PIB em 2030.
Como fazer um ajuste fiscal que coloque a dívida pública em uma trajetória sustentável e produza superávit primário, sem atingir os servidores? Antes da pandemia, a solução apontada pela equipe econômica era a aprovação das PECs 186 e 188. As duas estão sendo discutidas no Senado. Mas, se mesmo durante a pandemia não está sendo possível exigir um sacrifício dos servidores maior do que não conceder reajuste salarial por um período de tempo, como esperar que o Congresso Nacional aprove um cardápio de medidas mais duras?

O governo terá que promover também uma nova e ampla renegociação das dívidas estaduais e municipais, pois os Estados e municípios, por decisão do STF, não estão pagando seus débitos com a União nem com os bancos públicos, neste momento de calamidade pública. Tudo isso terá que ser objeto de uma difícil negociação, que envolverá, certamente, contrapartidas por parte de Estados e municípios.

O ingrediente que torna ainda mais nebuloso o pós-crise é a autorização dada pelo ministro Celso de Melo, do STF, para a abertura de investigação, por parte do Ministério Público, das acusações feitas pelo ex-ministro Sergio Moro ao presidente da República. O ministro do Supremo Gilmar Mendes estimou que o inquérito poderá durar 90 dias. Até lá, o país viverá a expectativa de saber se o procurador-geral da República, Augusto Aras, terá elementos suficientes para apresentar denúncia contra Bolsonaro.

Para alguns, as acusações de Moro poderão ter o mesmo efeito sobre as reformas econômicas que as acusações de Joesley Batista contra o ex-presidente Michel Temer, em maio de 2017. Naquela época, a reforma da Previdência ficou paralisada. Se o procurador-geral apresentar denúncia contra Bolsonaro, a Câmara dos Deputados terá que decidir se autoriza a abertura do processo. Neste cenário, que coincidirá com o fim do ano, a crise será jogada para 2021, com consequências imprevisíveis para a agenda de reformas.


Maria Cristina Fernandes: O decano encara cabo, soldado e capitão

Celso de Mello não deixará outra alternativa ao procurador senão denunciar o presidente

O veto à nomeação de Alexandre Ramagem para diretor-geral da PF pelo ministro Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal, mostra que, se o presidente Jair Bolsonaro pretendia ter pontes com a Corte, com suas recentes indicações para a Advocacia- Geral da União e o Ministério da Justiça, a pinguela despencou antes de estabelecida.

Procurador-geral da Fazenda Nacional, Levi Mello do Amaral foi secretário-executivo do MJ na gestão Alexandre de Moraes, hoje relator de dois inquéritos que cercam o mandato presidencial, o das “fake news” e da manifestação do dia do Exército.

Além de segundo de Moraes no MJ, o novo AGU também é próximo de Gilmar Mendes. Compõe com novo ministro da Justiça, André Mendonça, ex-colega do ministro Dias Toffoli na AGU e seu candidato para a próxima vaga no Supremo, uma dupla que prometia azeitar a interlocução com a Corte.

A pinguela começou a ser dinamitada em sua própria base. A deputada Carla Zambelli, da tropa de choque bolsonarista, acusou Moraes, que foi secretário de Segurança em São Paulo, de vínculos com o PCC. Apresentou como única evidência o fato de o ministro “estar envolvido na causa de investigar pessoas que fazem o bem pelo Brasil”.

Na primeira vez em que o STF interferiu numa nomeação do Executivo, a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a Casa Civil de Dilma Rousseff, com base num grampo ilegal do ministro Sergio Moro, deu início à queda da ex-presidente. Não foi a última.

Durante o governo Michel Temer, a ministra Carmen Lúcia suspenderia a nomeação da deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ) e o ministro Celso de Mello manteria a de Moreira Franco. Nenhuma delas abalou o mandato presidencial.

Por controverso, Moraes achou por bem fiar sua liminar na abertura de investigação sobre a interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, autorizada por Celso de Mello com base nas denúncias de Moro. Deixa claro que é a autoridade do decano que vai avançar os limites da Corte em relação aos atos do presidente da República.

Assim tem sido antes mesmo da posse de Bolsonaro. No dia seguinte à circulação de vídeo em que o deputado federal Eduardo Bolsonaro disse que bastaria cabo e soldado para fechar o Supremo, o então candidato pelo PSL à Presidência enviou uma carta a Mello. Nela, dizia que as manifestações “emocionais” da campanha se deviam à “angústia e às pressões sofridas”.

Mello não era presidente da Corte e se insurgira contra o vídeo da mesma maneira que outros colegas, mas Bolsonaro justificava a escolha do destinatário pela “conduta impecável” e pela “ponderação”.

O constitucionalista Diego Arguelhes (Insper) diz que a atuação do ministro em defesa das minorias parlamentares pode ter despertado empatia no então candidato. Mas ele também tinha ao seu lado Gustavo Bebianno, que trabalhara no escritório de Sérgio Bermudes, e estava em condições de instruí-lo sobre o destinatário que melhor representaria a reserva moral da Corte.

O remetente logo descobriria que não tinha a menor chance de dobrá-lo. O decano hoje simboliza um Supremo mais unido do que se viu nas décadas marcadas por mensalão e Lava-Jato, pelo restabelecimento da ordem constitucional. Dias depois, um coronel bolsonarista aposentado ofendeu a ministra Rosa Weber e o ponderado ministro chamou-o de “imundo, sórdido e repugnante”.

Com a posse do presidente, o tom subiria ainda mais. Na reedição da medida provisória transferindo a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, que sucedeu a decisão parlamentar mantendo-a na Funai, o ministro não pediu vênia: “É preciso repelir qualquer ensaio de controle hegemônico do aparelho de Estado por um dos poderes da República”.

Na escalada do confronto, passou a se dirigir diretamente ao chefe da nação. Na nota em que reagiu a um vídeo compartilhado por Bolsonaro comparando os ministros da Corte a hienas, identificou “atrevimento presidencial [que] parece não encontrar limites na compostura que um chefe de Estado deve demonstrar”.

Àquela altura, nenhum outro ministro ousara tanto. O outrora desbocado Gilmar Mendes se tornara frequentador da corte bolsonarista na companhia de Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Celso de Mello, que nunca foi de frequentar palácios, continuou vigilante em relação à escalada autoritária.

Em março, quando Bolsonaro engajou-se na divulgação de passeata golpista, Mello pulou duas casas: “É uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce”. O ministro submeteu-se a uma cirurgia e, ao voltar da convalescença, já em plenário virtual, resolveu transpor sua indignação para os autos.

Pediu que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, se manifeste sobre denúncia por crime de responsabilidade de dois advogados, determinou que a União devolvesse ao Maranhão ventiladores adquiridos pelo Estado, abriu inquérito para apurar crime de racismo do ministro da Educação, Abraham Weintraub, contra chineses e, finalmente, o mais importante, deles, deu início à investigação sobre as denúncias de Moro contra o presidente. Tudo isso em uma semana.

Conservador nos ritos e na interpretação da norma constitucional e pouco afeito a abordagens emocionais, Celso de Mello parece determinado a deixar sua marca sobre o futuro do estado de direito nos seis meses que lhe restam de mandato. Um parlamentar viu na ênfase dada por Mello à responsabilidade do presidente da República, a minuta de um pedido de impeachment.

O PGR, alerta a constitucionalista Eloísa Machado (FGV), é o condutor da investigação, podendo, inclusive, procrastiná-la. O titubeante pedido de abertura de inquérito é sinal disso. Na opinião de um experiente procurador, porém, Mello pode se valer de medidas cautelares, como aquela incluída no inquérito para que Aras se pronuncie sobre a apreensão do celular da deputada Carla Zambelli, com o intuito de destravar a investigação.

Um ex-ministro do Supremo, que convive com Celso de Mello há décadas, antevê decisões que não deixarão alternativa ao procurador-geral da República, senão denunciar o presidente. Daí pra frente, é outra história. Até lá, a expectativa é de Celso de Mello, na comissão de frente, seja capaz de manter recuados cabos, soldados e, sobretudo, o capitão.


Mariliz Pereira Jorge: O que eu quero, Bolsonaro?

Obrigada por ter perguntado, presidente

Jair Bolsonaro insiste na narrativa de que não tem nada a ver com as mortes causadas pela Covid-19. Vai que cola. "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?", ele pergunta. Obrigada por ter perguntado, presidente. Aqui vão algumas sugestões do que fazer, visto que o senhor parece meio sem ideia.

Uma medida urgente é que você pare de brincar de roleta russa com a vida do brasileiro. O Imperial College diz que o Brasil tem a maior taxa de contágio do coranavírus do mundo e prevê mais de 5.000 mortes, na próxima semana. Diferentemente do que você disse, se insistir em abrir o comércio, quem corre risco é o povo. O único risco a que você se expõe é ser tachado de genocida. Mas e daí?

O que eu quero, Bolsonaro? Que você peça desculpas por ter dito que é gripezinha, histeria, fantasia. Que o vírus está indo embora, que está superdimensionado, que brasileiro pula em esgoto e não pega nada, que todo mundo vai morrer um dia.

O que mais eu quero? Que você pare de tentar interferir nas investigações da Polícia Federal para proteger seus filhos, que mostre os resultados de todos os seus exames para Covid-19, que trate jornalistas sem parecer um cavalo, que não cumprimente as pessoas com a mão cheia de perdigotos, que desista de estimular e de participar de atos golpistas. Entenda, você até "manda", mas não é dono do país.

Por fim, deixe que os governadores façam o que você não tem feito, tentar preservar vidas. Já dizia qualquer avó: se não for para ajudar, não atrapalhe. Aproveite e demita o incompetente do Weintraub e também o Ricardo Salles, antes que não sobre uma árvore em pé na Amazônia. Antes que eu me esqueça, conta pra gente, cadê o Queiroz?

Se nada disso for possível, tenho uma sugestão muito mais simples. Renuncie. E, por favor, leve junto para o inferno os zeros à esquerda dos seus filhos. Se Deus realmente existe, é para lá que vocês vão.


Bruno Boghossian: Bolsonaro busca brinquedos antigos para distrair suas bases

Bolsonaro busca brinquedos antigos para distrair suas bases

Jair Bolsonaro deve ter se cansado de cometer erros na crise do coronavírus. Depois de prever só 800 mortes no país, de insistir no poder milagroso de um remédio e de atazanar governantes que tomaram medidas de isolamento, o presidente decidiu fingir que não tem mais nada a ver com isso.

A curva de mortes está em disparada, mas Bolsonaro afirma que o problema é de governadores e prefeitos. Já o ministro da Saúde admitiu que está "navegando às cegas" e que ninguém sabe quando vai ser o pico da contaminação, embora seu chefe tenha dito há pouco mais de duas semanas que estava "começando a ir embora a questão da pandemia".

Bolsonaro comprovou sua incompetência para lidar com a crise e, agora, resolveu abrir um baú de brinquedos antigos para distrair suas bases.

Como se não existisse uma doença devastadora, ele voltou a acenar a redutos conservadores com uma pauta voltada à segurança pública e sua conhecida cartilha ideológica.

Na semana passada, depois de acertar a demissão do diretor da Polícia Federal, Bolsonaro pegou carona numa manifestação de grupos evangélicos e publicou um vídeo em que crianças diziam ser contra o aborto. O tuíte teve mais de 85 mil interações entre seus seguidores.

O presidente ainda tentou reviver a ameaça fantasma da esquerda na educação. Em dois eventos sem relação com a área, Bolsonaro elogiou o ministro Abraham Weintraub e reclamou da "doutrinação de décadas" nas escolas brasileiras.

A ideia é mudar de assunto e reforçar seu vínculo com grupos que poderiam ficar perturbados com a escalada de mortes ou a saída de Sergio Moro do governo. Para isso, vale buscar também seu adormecido discurso linha-dura na segurança.

Nesta quarta (29), o novo ministro da Justiça exagerou na propaganda e disse que o presidente é "um profeta no combate à criminalidade". O deputado Bolsonaro jamais aprovou um projeto de lei sobre o tema. No Planalto, não desenvolveu nenhuma política pública relevante na área.


Ascânio Seleme: Os homens do presidente

Suas ligações com criminosos profissionais sempre foram conhecidas

Um gabinete do ódio foi instalado no governo para dar vazão ao maior de todos os sentimentos de um presidente movido pelo desejo permanente de retaliação. Ele se disse perseguido e sempre odiou todos aqueles que identificava como inimigos ou que imaginava um dia poderem se transformar em inimigos. Por isso, destilou sua ira contra políticos de oposição, aliados que não mostravam firmeza, ex-aliados, juízes, desembargadores, ministros da Suprema Corte, jornalistas ou qualquer outro tipo de gente que não pensasse como ele ou que se interpusesse entre ele e seu projeto político.

O gabinete usou todos os instrumentos que conseguiu dispor para construir constrangimentos aos inimigos do chefe. Espionou, divulgou notícias falsas, impediu acesso a documentos oficiais, criou barreiras entre o presidente e a imprensa, proibiu veículos de informação de entrar na sede do governo, mentiu para o Congresso, privilegiou amigos. Suas ligações com criminosos profissionais, milicianos que trabalhavam por dinheiro, sempre foram conhecidas. Recursos do fundo partidário eram usados para pagar por serviços prestados por esses indivíduos, de resto tão inescrupulosos quanto os membros do gabinete do ódio e o próprio presidente da República.

Acossado pelo Congresso que ameaçava instalar um processo de impeachment, o presidente demitiu sumariamente o chefe das investigações sobre crimes cometidos por pessoas do seu círculo mais próximo, inclusive os assessores que dentro do governo davam substância à ira presidencial. A demissão foi o último passo de sua corrida vertiginosa em direção ao abismo. Sabe-se que ele também cometeu crimes de responsabilidade e que não conseguiria escapar do julgamento do Congresso. O presidente deveria renunciar, ou então seria impedido pela vontade da maioria absoluta de deputados e senadores.

Embora se pareça muito com a história em curso de Jair Bolsonaro, esta conta a saga do presidente Richard Nixon no escândalo da invasão da sede do Partido Democrata no edifício Watergate, em 1972. Nixon, que foi um trambiqueiro mas não era bobo, resolveu renunciar ao cargo dois anos depois para não sofrer o impeachment. Foram condenadas e presas 49 pessoas, inclusive membros do gabinete do ódio, como H. R. Haldeman, secretário-geral da Casa Branca, John Mitchell, ministro da Justiça, e os assessores John Ehrlichman e John Dean III. Os cinco bandidos que arrombaram o escritório do partido adversário também foram presos. Dois eram ex-agentes da CIA e do FBI e os outros três eram anticastristas de Miami.

Os assessores do presidente foram presos por instrumentalizar o bando que invadiu o escritório no Watergate, por mentir sobre o episódio, e por sonegar informações. O dinheiro do fundo partidário para a eleição usado na operação agravou o caso.

Nixon, que tentou obstruir a Justiça e também mentiu, só não foi condenado e preso porque, antes de se afastar, negociou com o vice-presidente Gerald Ford um perdão pelos crimes que cometeu. Ford cumpriu a promessa, e o trambiqueiro nunca foi chamado para prestar contas.

Em Watergate, Nixon mandou demitir Archibald Cox, promotor especial designado para investigar o escândalo. No Brasil, Bolsonaro mandou demitir Maurício Valeixo da PF. Nixon só obteve sucesso quando o terceiro da hierarquia da Procuradoria-Geral aceitou encaminhar a encomenda, depois que se demitiram o titular do cargo e seu substituto imediato. No Brasil, o presidente teve que fazer ele mesmo o serviço sujo, uma vez que o ministro Sergio Moro se negou a afastar Valeixo e se demitiu.

Bolsonaro também tem um gabinete do ódio no Palácio, da mesma forma ataca parlamentares, juízes e jornalistas. Mantém laços sólidos com milicianos, chegando a empregar alguns e a homenagear outros. Na campanha, recursos do fundo eleitoral foram usados para financiar a máquina de propaganda de Bolsonaro baseada na distribuição de fake news. São muitas as semelhanças, mas, apesar delas, é claro que Nixon e Bolsonaro não são iguais em tudo. Como Bolsonaro, Nixon também desprezava a democracia, mas pelo menos fingia o contrário.


Bernardo Mello Franco: Navegando às cegas

O novo ministro da Saúde parece perdido diante da pandemia. Em videoconferência, ele enrolou os senadores e só foi assertivo ao dizer o que não sabe

O Ministério da Saúde adverte: em caso de dúvidas, evite consultar o ministro da Saúde. Há duas semanas no cargo, Nelson Teich parece não saber onde estamos e aonde vamos na pandemia do coronavírus. Ele reforçou essa impressão nesta quarta, no primeiro encontro público com parlamentares.

Em videoconferência, Teich falou muito e disse pouco. Ele driblou as perguntas dos senadores, desconversou sobre a importância das medidas de isolamento e abusou das evasivas para não contrariar o chefe. Só foi assertivo ao reconhecer que não tem ideia de quantos brasileiros estão contaminados.

“Os testes que a gente faz não permitem saber exatamente essa realidade. Sem esse conhecimento, literalmente se está navegando às cegas. Essa é a grande verdade”, admitiu. Teich também saiu pela tangente ao ser questionado sobre a evolução da epidemia. “Quando é que vai ser o pico? Não sei e ninguém sabe”, disse.

Pressionado a esclarecer se a população deve ou não permanecer em casa, o ministro andou em círculos para não responder. “Você simplesmente perguntar se fica em casa ou se não fica em casa é simples demais. É uma resposta simplista para um problema que é extremamente heterogêneo”, embromou.

A conversa mole irritou senadores de diversos partidos. “Estou tremendamente frustrado em relação às respostas”, protestou Tasso Jereissati (PSDB-CE). “O distanciamento social caiu dramaticamente no país. Não há momento para indecisão”, emendou. “Eu estou impressionado, mas é negativamente impressionado”, criticou Alessandro Vieira (Cidadania-SE). “Ele não tem resposta para nada”, resumiu mais tarde o ex-ministro Humberto Costa (PT-PE).

A senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) perdeu a paciência e acusou Teich de ser “muito leniente”. “O senhor tem que mostrar pulso firme. O senhor vai acabar com sua biografia”, advertiu. Atônito, ele disse que o ministério “nunca se posicionou para a saída do distanciamento”. Mesmo assim, não pediu à população que evite se expor à pandemia.

Ao ser instado a comentar as falas ofensivas do pandemônio, o ministro voltou a enrolar. “Não vou discutir aqui o comportamento, mas posso dizer que ele está preocupado com as pessoas”, afirmou.

***
Ao assumir o Ministério da Justiça, André Mendonça se apresentou como um “servo”, chamou Jair Bolsonaro de “profeta” e prestou continência diante das câmeras.

É assim que o capitão gosta.


Míriam Leitão: Bolsonaro renunciou

Não exerce mais a Presidência quem demonstra tal desprezo pela dor do país, e já não cabe mais a esperança de que ele entenda

O presidente Jair Bolsonaro renunciou à Presidência quando, diante de cinco mil brasileiros mortos, perguntou “e daí?” Não exerce a Presidência quem demonstra tal desprezo pelo seu próprio povo. Já não cabe mais esperança de que ele entenda como é desempenhar as “magnas funções”, para as quais foi eleito. Há suficientes palavras e atos ofensivos ao longo desta pandemia demonstrando que Bolsonaro jamais assumirá o papel que tantos líderes na história do mundo exerceram quando seus povos viveram tragédias. A nossa se desdobra em vários campos, na saúde, na economia, na vida social e pessoal. Mas Bolsonaro vive em seu mundinho como se a realidade não fosse essa fratura exposta.

Ontem foi um dia de derrota para o presidente Jair Bolsonaro, mas grande mesmo é a dor do país. No Brasil real contou-se de novo mais de 400 mortos num dia, e ainda ouvia-se o eco da voz de Bolsonaro escarnecendo —“lamento, mas e daí?” — quando se atravessou, na véspera, a marca de 5 mil mortos. No seu mundo, Bolsonaro ficou irritado porque não conseguiu nomear o amigo Alexandre Ramagem para a Polícia Federal. Na vida real, o país vive a aflição, o medo, a solidão, a falta de ar, a morte sem os rituais de despedidas, os enterros apressados, a longa espera nas filas por um direito, o risco cotidiano.

No seu mundo, Bolsonaro ficou bravo porque encontrou o limite do sistema de freios e contrapesos da democracia. O ministro Alexandre de Moraes mandou suspender a posse de Alexandre Ramagem numa peça em que deixou claro que não o fazia por qualquer idiossincrasia. Era um fato objetivo. Havia o risco de se ferir o princípio da impessoalidade e de haver desvio de função da Polícia Federal. Os indícios disso estavam na própria fala de Bolsonaro ao tentar desmentir seu ex-ministro da Justiça Sergio Moro. No final do dia, ele bateu na mesa e disse que recorrerá da decisão do ministro do STF. “Quem manda sou eu”, disse ele. E está à beira de criar um monstro jurídico. Não se pode recorrer da suspensão de um ato que ele mesmo revogou. Difícil a primeira tarefa do novo advogado-geral da União. Ele sabe que é impossível recorrer de uma causa sem objeto.

Mas pelo que se viu ontem nas posses, toda verdade pode ser distorcida para agradar o presidente. O novo ministro da Justiça, André Luiz Mendonça, foi muito elogiado porque teria sido uma escolha técnica. Elogios talvez prematuros. Seu discurso foi político e com o uso de símbolos religiosos. Chamou o presidente de “profeta”. Como teólogo, deve conhecer a advertência bíblica sobre os falsos profetas. Está logo no primeiro Evangelho. O de Mateus. Os frutos desse profeta do ministro André Mendonça já são bem conhecidos.

Até que ponto é possível suportar o ultraje? Foram tantos nesses 16 meses, foram tantos antes das eleições, que o maior risco é o país aceitar uma Presidência exercida dessa forma deletéria como se fosse natural. Bolsonaro sempre ofendeu grupos sociais, fez disso a sua marca particular, um marketing da agressão. Ele gosta de ofender os sentimentos e ferir valores.

Dos povos originários do Brasil veio uma lição ontem. Os Waimiri-Atroari querem a publicação imediata do seu direito de resposta nos sites da Presidência pelas inúmeras vezes em que foram atingidos por palavras discriminatórias. Após um pedido do Ministério Público Federal, a Justiça Federal do Amazonas determinou à União e à Funai que assegurem ao povo publicação de uma carta nos sites do Planalto. Eles estão reagindo aos “constantes discursos desumanizantes” e de crítica ao seu modo de vida nas falas frequentes de Jair Bolsonaro. Certa vez, ele chegou a dizer que o “índio está evoluindo, cada vez mais é ser humano igual a nós”.

Durante a pandemia tudo tem ficado mais claro. Ele não quer exercer a Presidência. Ele quer gritar “quem manda aqui sou eu”, quando encontra os limites da lei. Ele gosta do mandonismo, não do exercício dos deveres da Presidência. Ele fala aos arrancos, porque não se dedica a entender as questões de Estado sobre as quais tem que decidir. Ele diz “e daí?” porque de fato não está nem aí. É isso que faz de Bolsonaro um presidente que renunciou às suas funções, apesar de formalmente continuar no posto.


Merval Pereira: Caminho pedregoso

Há políticos que chegaram ao poder pelo voto, como na Venezuela, e conseguiram controlar as instituições

Jair Bolsonaro está cumprindo uma espécie de via-Crucis a que é obrigado todo presidente que enfrenta um processo de impeachment sem que haja, no entanto, condições práticas de transformá-lo em realidade, embora todas as premissas estejam dadas.

A Covid-19, que o presidente tanto desdenhou, impede que o Congresso se reúna presencialmente para discutir o tema, e também faz com que as ruas vazias não reverberem o sentimento majoritário.

Bolsonaro deveria ser a favor do distanciamento social, que faz com que manifestações populares pedindo sua saída se transformem em panelaços quase diários. Simbólicos, porém ineficazes.

Se não houvesse esses obstáculos impostos por uma trágica pandemia, as ruas explodiriam diante do “E daí?” dito pelo presidente sobre as mais de cinco mil mortes de brasileiros, todos sem direito a velório, muitos enterrados em covas rasas.

A busca de apoio no Congresso, que todos os que sofreram impeachment fizeram e apenas Michel Temer concretizou, é uma dessas etapas, e nessa Bolsonaro tem desvantagem, pois sai de quase zero para conseguir uma maioria defensiva que evite o impeachment. Vai sair muito mais caro, e não há certeza de final feliz.

A cada bolsonarice que diz ou faz, abala a confiança que por acaso ainda exista em setores da classe média que o apoiou em 2018. Agora mesmo está fazendo mais uma de suas bravatas para agradar seu núcleo duríssimo de apoiadores quando diz que vai insistir no nome do delegado Alexandre Ramagem para chefiar a Polícia Federal.

De nada adiantaria recorrer, porque o recurso cairia para o mesmo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que suspendeu a nomeação por desvio de finalidade. Além disso, depois que a nomeação foi tornada sem efeito pelo próprio presidente, que devolveu Ramagem para a chefia da Abin, não haveria do que recorrer.

Se não encontrar um substituto ideal para Ramagem, Bolsonaro tem duas opções: ou deixa como interino o delegado Disney Rossetti, que Moro gostaria de ver substituindo Mauricio Valeixo, ou tenta encontrar alguém que aceite o cargo, o que está sendo difícil.

Há na corporação o temor de que qualquer delegado que seja nomeado terá pela frente um presidente ávido por informações sobre inquéritos em andamento, especialmente os que se referem a membros de sua família. Ou forçar uma nova investigação sobre o atentado que sofreu, como se uma grande conspiração estivesse protegendo os supostos mandantes do crime.

Provavelmente somente depois que o inquérito aberto a pedido do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, sobre interferência de Bolsonaro na Polícia Federal denunciada pelo ex-ministro Sérgio Moro terminar é que poderá novamente nomear Ramagem para o cargo, caso não exista nenhuma denúncia contra o presidente da República.

O presidente Bolsonaro manteve a nomeação de Ramagem para a Polícia Federal, mesmo sabendo que havia o risco de ela ser barrada, porque quer um delegado no cargo de diretor-geral da Polícia Federal que passe informações para ele. Mas a PF não é órgão da presidência da República, precisa ter autonomia para as investigações.

Mas enquanto as instituições estiverem funcionando e puderem barrá-lo, a democracia está preservada, apesar de todo o tumulto que ele provoca. É preciso ficar atento, porque há casos de políticos autoritários que chegaram ao poder pelo voto, como na Venezuela, e conseguiram controlar as instituições.

Boa parte do aumento das mortes pela Covid-19 deve-se ao comportamento do presidente, que vai para a rua desmoralizar o distanciamento social, entra em disputa com o ministério da Saúde e quer impor a adoção de remédios dos quais não se sabe o efeito. Bolsonaro vive num mundo próprio, paranóico, isolado da realidade.

O que obriga seus ministros a fazerem papeis ridículos como o atual da Saúde, Nelson Teich, que só faz repetir, como disse ontem, que “estamos navegando às cegas”. Não é culpa dele, é a verdade que se repete em todos os países. O problema é que Teich fica impossibilitado de terminar sua frase, dizendo aos brasileiros: “Porque não sabemos nada, a única coisa a fazer é ficar em casa”.


Luiz Carlos Azedo: Dos meios e dos fins

“No Estado de direito democrático, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) não se discute, cumpre-se. Quando isso não acontece, é um mau agouro”

O presidente Jair Bolsonaro vive num mundo só dele, que não é bem o país que governa. É difícil fechar um diagnóstico sobre as razões, mas é possível identificar os sintomas de que idealizou uma agenda, um governo e um Estado centralizador e agora se vê diante de uma realidade muito diferente daquela que imaginava. Primeiro, a agenda do país não é a sua, focada nos costumes e nos interesses imediatos de sua base eleitoral. Já lidava com dificuldades na economia quando a pandemia de coronavírus virou tudo de pernas para o ar.

Todas as suas prioridades foram alteradas. Ninguém sabe exatamente quando e como voltaremos à normalidade, mas sua insistência em antecipar esse processo de retomada da economia, num momento de aceleração da epidemia, vem se revelando um desastre do ponto de vista da saúde pública. É como aquele sujeito que erra de conceito: seus bons atributos, como iniciativa, coragem, combatividade, criatividade, força etc. só servem para aumentar o tamanho do desastre. A agenda do país é epidemia, epidemia e epidemia, pelo menos nas próximas duas semanas.

Também idealizou um governo no qual seu poder seria absoluto, como vértice do sistema. Está descobrindo que não é assim que funciona. Na democracia, há uma tensão permanente entre os que governam e a burocracia de carreira, responsável pela legitimidade dos meios empregados na ação político-administrativa. A ética das convicções, que motiva os políticos, não basta; ela é limitada pela máquina do governo, que foi organizada, treinada e instrumentalizada para observar as leis antes de agir, ou seja, zelar pela ética da responsabilidade. Bolsonaro não consegue lidar com isso. Em todas as frentes, tenta atropelar, substituir ou desmoralizar os que não aceitam decisões que são equivocadas tecnicamente e/ou contrariam a boa política e o interesse público.

Bolsonaro também tem dificuldade de lidar com os mecanismos de freios e contrapesos do Estado democrático de direito. Ontem, levou uma invertida do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que sustou a nomeação do novo-diretor da Polícia Federal, Alexandre Ramagem, por desvio de finalidade. Diante da decisão, revogou a nomeação para mantê-lo à frente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o que gerou uma situação de perda de objeto da ação do mandado de segurança acolhido por Moraes. Foi por essa razão que a Advocacia-geral da União desistiu de recorrer ao plenário do Supremo. Mesmo assim, Bolsonaro não caiu na real de que a Polícia Federal (PF) é técnica e judiciária, em cujas investigações não pode interferir.

Ontem, após a decisão do ministro do STF, mesmo assim, Bolsonaro disse que pretende recorrer da decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e voltar a nomear Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal. “Eu quero o Ramagem lá. É uma ingerência, né? Vamos fazer tudo para o Ramagem. Se não for, vai chegar a hora dele, e vamos colocar outra pessoa”, declarou. Questionado sobre o posicionamento da AGU, disse que recorrer é um “dever do órgão”. E disparou: “Quem manda sou eu”. Se isso ocorrer, é muito provável que haja uma decisão unânime do STF contra a nomeação.

Recado claro
O que houve, ontem, foi um recado do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o sistema de freios e contrapesos da Constituiçao de 1988 está funcionando e que o Supremo ainda exerce o papel de Poder Moderador, em decorrência do fato de que cabe àquela Corte dar a palavra final em matéria constitucional. Como o STF é um poder desarmado, Bolsonaro provavelmente não se conforma muito com isso. Afinal, historicamente, esse papel foi exercido pelos militares, tanto na República Velha quanto na Segunda República. E seu governo tem mais generais do que qualquer outro no primeiro e no segundo escalões, mesmo comparado aos do regime militar. Quando diz que ainda vai nomear o Ramagem para o cargo de diretor-geral, Bolsonaro desnuda sua inconformidade, nos dois sentidos.

No Estado de direito democrático, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) não se discute, cumpre-se. Quando isso não acontece, é um mau agouro. No governo Castello Branco, ou seja, após o golpe militar de 1964, o primeiro conflito sério com o Supremo ocorreu em 19 de abril de 1965. A Corte concedeu um pedido de habeas corpus impetrado pelo famoso jurista Sobral Pinto, católico e liberal, em favor do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, que estava preso na ilha de Fernando de Noronha, na costa daquele estado, desde a deposição do presidente João Goulart. Dias antes, o coronel Ferdinando de Carvalho, já prevendo a decisão, havia transferido o político pernambucano para a Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói (RJ).

O chefe do estado-maior do Exército, general Édson de Figueiredo, recusou-se a cumprir a decisão. O presidente do STF não teve outra alternativa a não ser mandar prendê-lo, o que provocou uma crise, somente debelada devido à intervenção pessoal de Castello, que chamou o magistrado e o general para uma conversa a três. Nesse meio tempo, um grupo de militares da chamada “linha-dura”, liderado pelo coronel Osneli Martinelli, sequestrou Arraes e levou-o para um quartel da Polícia do Exército. Foi preciso que Castello interviesse novamente, mandando soltá-lo. Arraes, que não era bobo, vendo que havia em marcha um golpe dentro do golpe, liderado pelo ministro da Guerra, o general Costa e Silva, tratou de pedir asilo na embaixada da Argélia. Era o começo de um processo que desaguou no Ato Institucional No. 5, em 13 de dezembro de 1968, mas isso isso já é outra história.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-dos-meios-e-dos-fins/