Day: fevereiro 8, 2020

Monica de Bolle: A rasgada

Escrevo este artigo influenciada pelo que tenho visto acontecer com mulheres que têm voz no Brasil

A foto já é icônica. Na frente, um Trump sisudo, tendo acabado de proferir no Congresso o último discurso sobre o estado da União do atual mandato — quiçá o último como presidente, caso não se reeleja. Atrás, o vice aprumado com ares de bom moço, sorridente e sem graça em igual medida. Ao lado dele, a líder da Câmara.

Trajando o branco das sufragistas, batom vermelho na expressão marota ou quase blasé, flagrada pela câmera em pleno ato de rasgar. Rasgar ao meio, rasgar cada papel e colocá-lo de lado numa pilha de farrapos. Nos farrapos, as palavras do presidente. Na rasgada, um ato repleto de símbolos. Na rasgada, a política em sua plenitude. Tão plena que suscitou, como todo ato político de envergadura e força, rechaços e elogios viscerais. O ódio se espalhou nas redes. A admiração, também.

A rasgada imortal de Nancy Pelosi é quebra de decoro. “Mas que absurdo!”, bradaram os defensores do decoro, e sobretudo os opositores de sua quebra por uma mulher. Mulher poderosa no sentido mais puro da palavra, mulher com voz no sentido mais literal — Pelosi é a “Speaker of the House”, aquela que fala por uma das instituições do Legislativo. No Twitter, subiram a hashtag #pettypelosi, mulher mesquinha essa Pelosi. Como ousa? Fiquei imaginando como seria chamada uma Pelosi no Brasil, com pegada de rasgada. Uma menina querendo agradar à mamãe na interpretação psicanalítica? Penso que não — Pelosi é avó. Uma idosa que mia e choraminga o tempo todo? Tampouco. Pelosi não abriu a boca.

Ela rasgou sem dó, sem dar importância ao que diriam homens e mulheres, mas principalmente os homens. Ela rasgou com a mais escancarada indiferença ao bom moço postado a seu lado e ao estridente astro de reality show, cabelo engomado, a sua frente. Tenham ou não gostado do filme, levou o Oscar. A noite se resumiu à rasgada e de tudo que foi dito o que sobrou foi tão simplesmente e tão completamente a rasgada.

De Petra Costa a Regina Duarte, de jornalistas a quem mais se atreva a entrar em terreno supostamente reservado a outras vozes.

Os ataques a essas mulheres, sejam de esquerda ou de direita, não são por causa de sua obra ou de seus atos — o filme, o cargo no governo, o ofício de todos os dias ou o luxo de ter uma coluna em jornal da qual não se depende para viver. Os ataques tantas vezes indizíveis pela carga de obscenidades são contra elas por serem elas, por ocuparem o lugar que ocupam, por atraírem a atenção cobiçada por outros, pelo mérito implícito em tudo isso que a elas não deveria pertencer por determinação. Determinação de quem? Do moço no Twitter que se sentiu diminuído? De gente famosa com megafone? E que com megafone é idolatrada pelos “machos” do planeta verde e amarelo talvez até sem querer?

Ficou difícil escrever “só” sobre economia. Ficou difícil porque a economia não é uma disciplina separada do resto como uma espécie de caixinha especial. A economia é influenciada e influencia muitas esferas da vida e, por ser na essência uma construção social, é afetada por costumes e normas culturais. A vontade cada vez mais explícita de querer determinar o papel da mulher na sociedade, o que ela pode e não pode falar, o que ela pode e não pode fazer, a tentativa de desqualificá-la, tudo isso tem um impacto econômico mensurável.

Não faltam estudos acadêmicos mostrando que atos discriminatórios prejudicam a economia de diversas maneiras. Também não faltam experiências revelando que a inclusão — no mercado de trabalho, na academia, na política — beneficia o desenvolvimento dos países. Falo sobre mulheres, mas os mesmos argumentos e estudos valem para questões de raça, orientação sexual ou religiosa, nacionalidade, e seja lá o que for que torne o indivíduo diferente da “maioria que determina”.

Não sei quais serão as consequências da rasgada de Pelosi, assim como não sei se o documentário de Petra Costa vencerá o Oscar. Também não sei se Regina Duarte será uma boa secretária da Cultura ou se os principais furos jornalísticos do ano serão dados por mulheres, como o das eleições de 2018. O que sei é que os ataques abjetos haverão de continuar, pois os freios se foram.

Cada um fala o que quer quando quer, cruza linhas antes impensáveis sem pensar, diz-se defensor da igualdade de gênero, mas não resiste a um ataque muito bem definido em latim como ad hominem. Não há non sequiturs aqui, pois causa e efeito já não importam. O que importa é que o comportamento bestial está relativizado e aprovado. Cabe a quem quiser enfrentar e chamar a atenção para o que não é aceitável. Dar sua própria rasgada. Eis a minha.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Ascânio Seleme: Coronavírus no Planalto

Cresce o número de pessoas que querem distância de Bolsonaro

Jair Bolsonaro pode até agradar e ser paparicado por aquela parcela de eleitores que o apoia até mesmo quando ele ataca homossexuais e enaltece torturadores. Mas cresce de modo contínuo uma outra parte que prefere dele não se aproximar. Primeiro foram os policiais que, irritados com a reforma da Previdência, o chamaram de traidor. Depois, a turma do agronegócio começou a se afastar para não ser contaminada pela pauta contra-ambiental do presidente. Inúmeros parlamentares e governadores, que foram eleitos na sua onda, hoje não querem aparecer ao seu lado em razão de seu estado de permanente beligerância.

Na semana passada, Bolsonaro recebeu no Planalto alguns músicos sertanejos, e sua assessoria divulgou uma lista acrescida de 22 nomes que não estiveram presentes. Foi uma gritaria. Justamente os mais importantes, como Bruno e Marrone e César Menotti e Fabiano, mandaram avisar que não foram ao beija-mão. Muitos não estão mais dispostos a associar suas imagens à errática política cultural do presidente. Pode parecer bobagem, mas não é. Os sertanejos se associaram a Bolsonaro desde cedo, ainda na campanha, em razão de sua raiz no interior do país e pela proximidade com o agronegócio.

Mesmo entre os músicos dos grandes centros sem viés ideológico há um contingente de profissionais cada vez incomodado com o governo que se lixa para a cadeia produtiva da música. São milhares de pessoas que vivem, alimentam suas famílias, colocam seus filhos nas escolas, pagam impostos, contribuem com a Previdência e que têm suas pautas ignoradas pelo governo. Um grupo do Rio fracassou quando tentou organizar uma comitiva para ir a Bolsonaro fazer lobby contra a Medida Provisória que isenta hotéis de recolher direitos autorais em seus quartos.

Ancestralmente próximos do capitão, os garimpeiros também ameaçam pular fora. Dizem que estão sendo perseguidos pelo governo que lhes prometeu apoio. Nem o projeto que autoriza mineração e geração de energia em terra indígena os anima. Segundo líderes garimpeiros, em algumas reservas a mineração se dá em acordo com líderes tribais há quase meio século. O projeto apresentado na terça-feira, segundo eles, vai ser bombardeado e pode atrapalhar os garimpos que hoje funcionam com o aval e a participação de comunidades indígenas.

Os garimpeiros dizem que os índios mundurucus, do Amazonas, convivem com eles há quatro décadas e participam da mineração com dragas próprias. As maiores reservas de diamante no Brasil ficam nas terras dos índios cinta largas, entre Rondônia e Mato Grosso, que as exploram. Os caiapós-xicrins, de Tocantins, estão no garimpo há 30 anos e têm aviões e maquinário próprio, além de gado e área de pastagem. Eles citam também garimpos tucanos, na fronteira com Colômbia e Venezuela, e macuxis, da reserva Raposa Serra do Sol. O que eles queriam era a regularização dessas reservas, mas a fiscalização do governo ignora os entendimentos e parte para cima deles “com virulência”, reclamam os garimpeiros.

A proposta de Bolsonaro incomoda os três lados da questão. Irrita ambientalistas, que enxergam no projeto carta branca para a degradação das reservas; aos índios, que perdem a autonomia sobre seu território; e aos garimpeiros, que temem que a chancela de Bolsonaro crie mais dificuldades do que resultados positivos. Na apresentação do projeto, Bolsonaro reconheceu que o texto vai ser objeto de ataques de ambientalistas. E disse: “Se puder, confino os ambientalistas na Amazônia”. Dá para entender por que tanta gente quer distância.

Expo de armas
A Tabacaria Africana, uma das mais tradicionais charutarias do Centro do Rio, permitiu que se realizasse nos seus salões uma reunião, aparentemente ilegal, de donos de armas. Um frequentador chegou ao local, num sábado à tarde, há cerca de um mês, e se deparou com um grupo de cerca de 20 homens que expunham suas armas sobre as mesas da tabacaria. Esses homens manipulavam as armas, comparavam umas com outras, parecia que negociavam entre eles. O charuteiro de fim de semana que viu a cena não pôde garantir se eles comercializavam ou apenas exibiam suas armas, porque, assustado, se mandou do lugar rapidinho.

Política Tributária
Já se viu de tudo na formulação do emaranhado de impostos que assombra o Brasil, mas fazer política tributária na porta do Palácio da Alvorada, empurrado por um grupo de adoradores que vai lá apenas para bater continência ao presidente, foi a primeira vez.

Privatizar a Cedae
São inúmeras as razões que pode-se listar em favor da privatização da Cedae, mas uma delas é imbatível e ficou cristalina (ao contrário da água que a empresa fornece) com a crise de abastecimento atual. Se associações de moradores do Rio se reunissem e movessem uma ação contra a Cedae, e a Justiça obrigasse a empresa a indenizar os usuários pela péssima qualidade do serviço prestado, quem iria pagar a conta? Pois é, seríamos você, eu e todos os nossos vizinhos. A conta seria paga pelo contribuinte fluminense. Pagaríamos para nós mesmos. Agora, se a Cedae pertencesse a um desses megaempresários chineses ou a uma grande empresa privada brasileira, a conta da indenização pelo desastre não seria de nossa responsabilidade. Embora os cidadãos do Rio nada tenham a ver com a má gestão da empresa, a responsabilidade pecuniária pelo desastre hoje é deles. É nossa.

Boa medida
Não era necessário esperar tanto, mas, enfim, parece estar saindo do papel projeto que acaba com a reserva de mercado para empreiteiras brasileiras sobre as obras públicas de infraestrutura. Em março, o megaescândalo que expôs a rede de corrupção das empreiteiras brasileiras completa seis anos, e a Odebrecht e companhia ainda hoje têm exclusividade sobre obras nacionais. As estrangeiras só podem operar no Brasil se tiverem filiais nacionais.

Prerrogativas
As prerrogativas de foro foram criadas ainda na Grécia antiga para proteger a função pública e garantir a punição em instância superior de crime praticado pela pessoa que a ocupe. Aos poucos o foro especial virou foro privilegiado e no Brasil é sinônimo de impunidade. Por aqui, onde já vimos quase tudo, surgiu um novo caso, o do deputado Wilson Santiago (PTB-PB). O parlamentar, que se apropriou de R$ 1,2 milhão dos cofres públicos, foi mantido na função pelos seus pares na Câmara, apesar de seu afastamento ter sido determinado pelo ministro Celso de Mello. PT, PCdoB, PSOL, MDB e DEM votaram a favor de Santiago. Pois é.

Hospital em Dez dias
Na China, o governo chinês ergueu um hospital em dez dias para atender as vítimas do coronavírus, que já matou mais de 500 pessoas. No Brasil, onde 754 pessoas morreram por dengue no ano passado, os hospitais estão sendo destruídos há dezenas de anos.

Vampiro, fora
Não foram necessários crucifixos, dentes de alho e estacas de madeira. Bastou um peteleco de um senador para que o deputado Luiz Vampiro (MDB-SC) desistisse da cadeira de líder do governo na Assembleia de Santa Catarina. O que está por trás disso é uma guerra entre o governador-bombeiro Carlos Moisés e os filhos do presidente Bolsonaro (eles outra vez). O fato é que Vampiro estava fechando com o governador desafeto dos meninos quando lhe cortaram as asinhas.


Merval Pereira: O guarda da esquina

As palavras do líder são levadas a sério pelos liderados mais afoitos ou com menos bom senso

O caso é conhecido e já entrou para a história política brasileira. Em 13 de dezembro de 1968, o governo Costa e Silva decretou o Ato Institucional 5, e na reunião ministerial, o único voto contrário foi do vice-presidente Pedro Aleixo, que alegou, premonitoriamente: “o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”.

A censura a livros em Rondônia é o típico caso de o guarda da esquina sentir-se autorizado a cometer abusos de autoridade, não mais pelo AI-5, revogado ainda na ditadura militar com Geisel, mas pelo exemplo do ministro da Educação e do próprio presidente Jair Bolsonaro.

Não se pode dizer que há uma ordem direta deles para que atitudes desse tipo sejam tomadas, mas palavras do líder são levadas a sério pelos liderados mais afoitos ou com menos bom senso.

A mesma coisa aconteceu com o meio-ambiente. O ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas (INPE) Ricardo Galvão, em pleno debate sobre o aumento do desmatamento na Amazônia, disse que não tinha dúvidas de que foi a leniência do governo Bolsonaro com o desmatamento que fez com que ele crescesse no primeiro ano de governo. As críticas de Bolsonaro às ONGs que defendem a Amazônia também teriam dado respaldo aos grileiros que atuam na região.

O “guarda” no momento na Prefeitura do Rio, bispo Crivella, já censurou histórias em quadrinhos com beijo gay, alegadamente para proteger nossas crianças. Quando ainda era próximo politicamente do governo Bolsonaro, o “guarda” governador de São Paulo João Dória mandou recolher uma cartilha com material escolar de ciências para alunos do 8º ano do Ensino Fundamental da rede estadual.

A cartilha tratava de conceitos de sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. Também trazia orientações sobre gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. As duas decisões foram revogadas pela Justiça.

O “guarda” no governo de Rondônia, Coronel Marcos Rocha (PSL), ex-chefe do Centro de Inteligência da PM do Estado e ex-secretário de Educação de Porto Velho, mandou recolher dezenas de livros das bibliotecas das escolas públicas, entre eles clássicos da literatura brasileira como “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, “Os Sertões” de Euclydes da Cunha, e “Macunaíma”, de Mario de Andrade.

Também estava querendo proteger nossas crianças e adolescentes de “conteúdos inadequados”. Alegadamente, a decisão foi tomada por um técnico sem a autorização do secretário de Educação, Suamy Lacerda de Abreu. O memorando incluía 43 livros de autores brasileiros e estrangeiros, que deveriam ser devolvidos pelas escolas ao Núcleo do Livro Didático da secretaria estadual da Educação.

A medida, como não poderia deixar de ser, provocou protestos de instituições regionais, como a OAB de Rondônia, e nacionais, como a Academia Brasileira de Letras (ABL), que tem como missão a defesa da cultura nacional. Eis a nota:

“A Academia Brasileira de Letras vem manifestar publicamente seu repúdio à censura que atinge, uma vez mais, a literatura e as artes. Trata-se de gesto deplorável, que desrespeita a Constituição de 1988, ignora a autonomia da obra de arte e a liberdade de expressão.

A ABL não admite o ódio à cultura, o preconceito, o autoritarismo e a autossuficiência que embasam a censura. É um despautério imaginar, em pleno século XXI, a retomada de um índice de livros proibidos. Esse descenso cultural traduz não apenas um anacronismo primário, mas um sintoma de não pequena gravidade, diante da qual não faltará a ação consciente da cidadania e das autoridades constituídas”.

São tantas as críticas do governo, e do próprio Bolsonaro, à cultura, são tantas as referências ao que denominam esquerdização na literatura, no cinema, no teatro, tantas denúncias de supostas imoralidades, que os guardas da esquina estão se sentindo empoderados pelos novos tempos.


Luciano Huck: Mais formaturas, menos funerais

Brasil precisa de ampla coalizão para enfrentar a desigualdade

“Rezo para que minha família um dia frequente menos funerais e mais formaturas.” As palavras ditas por Douglas, um morador de São Gonçalo (RJ), me chegaram aos ouvidos com o barulho e o impacto de um tiro. O pai de Douglas morreu baleado antes que Douglas tivesse nascido; a mãe dele foi assassinada quando ele tinha 11 anos. O primo, criado como irmão, teve o mesmo destino. Como tantas crianças, ele foi forçado a sair da escola para ajudar a avó que o criou para pagar as contas da casa.

Estávamos no alto da Favela do Quarenta, parte de um complexo de favelas batizado de Coruja, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Depois de passar algumas horas com Douglas, me pareceu óbvio que ele é uma das vítimas da “loteria do CEP”. Mora em uma das cidades de maior desigualdade social, em um dos países de maior desigualdade social do mundo. Estatisticamente, serão necessárias mais nove gerações antes que alguém da vizinhança de Douglas ascenda à média da classe média.

Douglas não está sozinho. Como apresentador de TV, passei as ultimas duas décadas vendo, ouvindo e compartilhando as histórias de pessoas que vivem em favelas, em regiões remotas e em outras áreas degradadas. Como cidadão ativo e empreendedor social, estive e continuo procurando maneiras de contribuir para dar oportunidades e destravar o potencial de dezenas de milhões de brasileiros em situações de pobreza.

Desde que me entendo por gente, ouço piadas de que o Brasil é o país eternamente à espera de o futuro chegar. O maior obstáculo para esse avanço é a desigualdade, herança direta do colonialismo, da escravidão e de instituições e políticas excludentes —e legado do desdém cínico de uma elite pelos mais pobres. Embora sucessivos governos desde o restabelecimento da democracia, em 1985, tenham conseguido controlar a inflação, implantar políticas sociais e até mesmo reduzir a pobreza, a desigualdade teimosamente permanece alta. Pior: dados recentes mostram que, mesmo com a melhora da economia, a desigualdade voltou a aumentar, colocando em risco os tímidos avanços das últimas três décadas.

O principal culpado é o regime regressivo de impostos e a concessão pouco criteriosa de subsídios que beneficiam, desproporcionalmente, justamente aqueles que mais têm. No Brasil, os milionários pagamos menos imposto sobre a renda e o patrimônio do que nos países democráticos mais desenvolvidos. Enquanto isso, o modelo impõe uma carga duríssima de impostos indiretos sobre os mais pobres.

Se o Brasil quer ter chances de baixar a desigualdade, precisa também de avanços drásticos na cobertura e na qualidade do sistema público de ensino básico. Os mais ricos têm o privilégio de pagar por escolas de ponta, enquanto crianças mais pobres, como o Douglas, têm acesso a um aprendizado de menor qualidade, e frequentemente têm de abortar sua vida escolar, reféns da violência e de pressões financeiras. É o que ajuda a explicar por que ainda temos 11 milhões de brasileiros com mais de 15 anos que mal sabem ler ou escrever.

O Brasil precisa desesperadamente melhorar as condições de ensino de suas 200 mil escolas públicas e torná-las mais eficientes. Em vez de construir e inaugurar prédios novos, o foco deveria ser investir com mais critério, priorizando o treinamento e a promoção dos professores, ensino da primeira infância, continuidade com qualidade nos ciclos seguintes, valorização do ensino técnico e currículos antenados com o século 21. Avanços recentes no ensino, como no Ceará, Piauí e Espírito Santo, comprovam que um progresso rápido é possível.

O enfrentamento da desigualdade requer, ainda, uma rede de proteção mais ampla. Temos aproximadamente 43 milhões de brasileiros em condições de pobreza, e 13 milhões deles em situação de extrema pobreza. É o índice mais alto em sete anos. Inteligência artificial e tecnologias da informação, além de empenho administrativo, podem aperfeiçoar os serviços sociais mais velozmente e eficazmente.

Mas, para tudo isso, o país necessita de novas lideranças. Hoje, a maioria dos brasileiros se vê frustrada. Em 2013, bem antes de manifestações massivas tomarem as ruas no Chile e no Equador, o Brasil assistiu a uma de suas maiores ondas populares de protesto. A eleição presidencial de 2018, que levou ao poder Jair Bolsonaro e seu governo, revelou a extensão e a gravidade da insatisfação dos brasileiros. Com um ambiente tão polarizado, é natural que as opiniões se dividam sobre se Bolsonaro vai conseguir cumprir suas promessas de tornar o Brasil um país melhor.

Para muitos da minha geração, a política ainda é vista como um negócio sujo, a ser evitado. Mas, olhando para trás, eu agora reconheço que erramos. Todos que não se envolveram também são responsáveis por esse ambiente divisionista e desesperançoso. A política não foi um ambiente atrativo para toda uma geração, participamos menos do que deveríamos.

Mas a minha geração e as novas não podem continuar alheias e aceitar as coisas como são. Este é o momento de o Brasil fazer um novo contrato social. O Brasil precisa de uma ampla coalizão política para enfrentar a desigualdade de oportunidades, replicando as boas experiências e as boas práticas, sejam elas da direita ou da esquerda. Principismo ideológico, irredutibilidade e aversão aos fatos não vão gerar políticas públicas eficazes para resolver os problemas mais graves e urgentes do país.

Precisamos de políticos e servidores públicos comprometidos, tecnicamente e eticamente capacitados para o trabalho. Mas a sociedade civil não pode lhes faltar. Em 2017, esses desafios me fizeram ingressar no Agora, um movimento cívico dedicado a mobilizar uma nova geração de líderes que prometeram dedicar pelo menos dois anos de sua vida ao serviço público. Logo depois ajudei a lançar o RenovaBR, uma escola apartidária para treinar potenciais líderes políticos.

Em nossa primeira convocação, atraímos 4.600 interessados que nunca tinham se envolvido com a política. Eles foram cativados pela nossa proposta de “ser o candidato em que gostariam de votar”, independentemente de matizes ideológicas. Dos mais de 120 aprovados para se candidatar, 17 foram eleitos para cargos federais e estaduais em 2018. Na abertura da segunda e mais recente turma, desta vez para as eleições municipais, recebemos mais de 31 mil inscrições.

Novas lideranças apoiadas por grupos como Agora, RenovaBR e tantos outros relevantes movimentos cívicos proporcionam uma visão positiva e inspiradora de um Brasil mais aberto e plural. Estão focados naquilo que de fato importa: gerar oportunidades, diminuir o abismo entre ricos e pobres, fazer da politica um ambiente ético e do Estado uma engrenagem mais eficiente.

Sigo torcendo e empolgado com o país. Se mirarmos a desigualdade com os instrumentos que já estão à nossa disposição, Douglas e milhões de crianças como um dia ele foi poderão frequentar mais graduações e menos funerais.

*Luciano Huck, apresentador de TV e empresário


Marcus Pestana: Para além dos fundamentos econômicos

A grande angústia nacional continua sendo a baixo ritmo do crescimento econômico e suas repercussões no nível de emprego e renda da população. Ainda são mais de 12 milhões de desempregados, é grande o número de postos de trabalho informal e um terço dos trabalhadores recebe apenas um salário mínimo. As projeções para o crescimento em 2020 situam-se na faixa de 2,0 a 2,5%. O Brasil precisaria e pode crescer de forma sustentada a taxas superiores a 4% ao ano.

Sempre associamos crescimento econômico aos fundamentos econômicos. A situação no câmbio é confortável. Temos volumosas reservas, o câmbio flutuante garante o equilíbrio, com intervenções pontuais do Banco Central, o Balanço de Pagamentos tem o déficit em transações correntes compensado pela entrada de capitais externos e pelo resultado da balança comercial.

No plano da estabilidade da moeda e da taxa de juros há bons sinais. O Plano Real se mostrou resiliente diante dos múltiplos desafios desde 1994 e a inflação continua sobre controle. As taxas básicas de juros são as menores da história da SELIC, embora na ponta precisássemos dinamizar a competição para azeitar o crédito a custos compatíveis. Mas o mercado de capitais e as operações de captação de empresas brasileiras sinalizam uma mudança estrutural no financiamento do desenvolvimento.

O “Calcanhar de Aquiles” continua sendo no plano fiscal. Embora os déficits primário e nominal tenham tendência cadente, o cenário ainda é preocupante. Os governos subnacionais estão em situação crítica em grande parte por conta dos desafios previdenciários. E isso não se resolverá no curto prazo. Daí o investimento público se encontrar em nível recorde de compressão e não vir daí uma mola propulsora para a retomada, onerando o Custo Brasil pela precariedade da infraestrutura.

Mas há duas questões, às vezes negligenciadas, que impactam profundamente o nosso tristemente conhecido “voo de galinha”: o cenário internacional e o ambiente de negócios e institucional.

Vivemos num mundo globalizado e somos um país emergente, com um déficit histórico na qualidade da educação, na qualificação profissional e no desenvolvimento científico e tecnológico. A ocorrência da epidemia do Coronavírus já começa a ameaçar a retomada mais vigorosa da economia brasileira e também a guerra comercial EUA-China e seus desdobramentos acenam com riscos imponderáveis. O Brexit inglês é também um novo vetor negativo. Diante disso, o Brasil tem que rever seu posicionamento evitando alinhamentos desnecessários, gestos retóricos e ideológicos inúteis e retomar o protagonismo brasileiro na questão ambiental.

Também o ambiente de negócios, a estabilidade legal e regulatória, a desburocratização dos processos, o ambiente político, o fortalecimento de valores caros no mundo contemporâneo, como a defesa da democracia e da sustentabilidade ambiental, são decisivos para atração de novos investimentos. Liquidez no mundo há em abundância. A atividade capitalista pressupõe risco, mas não aventura. O ambiente brasileiro para o empreendedor, com todos os avanços recentes, é ainda hostil. Quem vai investir na privatização da Eletrobrás, por exemplo, ou em qualquer outra concessão ou PPP se não tiver certeza que a “regra do jogo” é pra valer e permanente?

O Brasil tem pressa e já se cansou de jogar oportunidades fora.


Adriana Fernandes: É fake

Governo apresentou no primeiro ano do ministro da Economia, Paulo Guedes, um déficit de R$ 95 bilhões; em qual lugar do mundo um rombo desse tamanho do governo central pode ser apontado como um sinal de contas ajustadas?

A noção de contas equilibrada foi atualizada pelo governo Jair Bolsonaro. Na publicidade de 400 dias da atual gestão, divulgada nas redes sociais, a mensagem transmitida foi a seguinte: “contas equilibradas, inflação controlada e mais poder de compra para os trabalhadores impactam positivamente na economia”.

Nada mais fake news. O governo apresentou no primeiro ano do ministro da Economia, Paulo Guedes, um déficit de R$ 95 bilhões. São “bilhões” e não “milhões”.

Em qual lugar do mundo um rombo desse tamanho do governo central pode ser apontado como um sinal de contas ajustadas?

O ano de 2019 marcou o sexto ano de déficit consecutivo de contas do governo federal. Não são rombos pequenos. Ele caiu, é verdade. Mas é alto e tem impedido o governo de avançar em investimentos – que estão em patamares ridículos há anos.

Na melhor das hipóteses, somente no final de 2022, as contas voltam para o azul. As projeções mais fresquinhas da própria equipe econômica apontam que, no último ano do mandato do presidente, o déficit será de R$ 31,4 bilhões. O mais provável – até o momento – é que o cenário de superávit só venha em 2023.

Esse quadro só muda se a economia crescer muito e muito rápido. O que não é o caso, por enquanto. O Brasil patina no baixo crescimento há anos por razões diversas e estruturais.

Por ora, a redução do déficit – comemorada pela equipe de Guedes – se deve muito à receita extraordinária com leilões de petróleo e dividendos pagos por estatais e bancos públicos. Do lado das despesas, o arrocho foi grande nos gastos discricionários (não obrigatórios), que afetou os programas sociais.

A zeragem do déficit – prometida pelo ministro para 2019 – não ocorreu. E todos sabiam que não iria acontecer no ano passado. Guedes se justifica dizendo que quis subir o sarrafo (da meta) para alcançar o melhor resultado.

Mas o corte nos incentivos setoriais, nos “privilégios” do sistema S, benefícios tributários de todos os tipos... esse ficou a ver navios. A força das criaturas do pântano, citada no discurso de posse como uma frente a ser destruída, continua solta por aí.

O governo não atacou esses privilégios. Pelo contrário, enviou ao Congresso um anexo secreto (sem publicidades) com medidas que “podem ser acionadas”. Cumpriu tabela e escondeu o caminho.

O déficit não começou nesse governo. É verdade. Acabar com ele é obrigação.

Com a mensagem dos 400 dias, a sensação que o governo passa à sociedade e ao Parlamento é que está tudo ok. Os sinais de pressão aumentam nesse ambiente. Um presidente fiscalmente responsável jamais faria um desafio aos governadores de zerar impostos sobre combustíveis.

Impossível não comemorar um déficit menor, conta de juros mais baixa e redução da dívida pública. Avanços ocorreram, sem dúvida. Mas o ajuste só estará completo quando as prioridades orçamentárias estiverem direcionadas para a população que mais precisa. Muito a fazer.

O governo reclama de fake news, mas, com todo respeito, desta vez, ele mesmo espalhou.

* É jornalista


Demétrio Magnoli: Pandemia do arbítrio representa ameaça maior que o agente biológico do coronavírus

Banimento de chineses não deriva do saber científico, funciona como 'normalização' da xenofobia

A China isolou uma dúzia de metrópoles, 30 ou 40 milhões de habitantes, da província de Hubei. As “medidas extraordinárias diante de um desafio extraordinário”, na descrição elogiosa da Organização Mundial da Saúde (OMS), seriam política e legalmente impossíveis em nações democráticas.

Os EUA proibiram a entrada de estrangeiros que passaram recentemente pela China —e receberam (justas) críticas do regime chinês e da OMS.

Um vírus novo, misterioso, ameaçador entrou na circulação sanguínea de uma tirania totalitária e de um governo xenófobo. A pandemia do arbítrio representa ameaça maior que o agente biológico da doença.

Conceitualmente, o gesto americano não se distingue da “medida extraordinária” chinesa. Se Xi Jinping colocou em quarentena uma província inteira, por que Donald Trump não teria razão ao impor quarentena a um país inteiro? A OMS, que cumpre funções úteis, é um órgão político. Sua glorificação do confinamento compulsório em massa reflete o objetivo de, finalmente, ser admitida como parceira do regime chinês.

Até o momento, o coronavírus provocou menos de mil óbitos, quase todos na China. Segundo estimativas do Centro de Controle de Doenças dos EUA, 8.400 americanos morreram de influenza sazonal só na metade inicial deste inverno. A taxa de letalidade da epidemia de Sars (2002-2003) foi de 9,6%.

Na atual epidemia, estimativas iniciais apontam 2%, uma taxa que cairá bastante pois o número de infecções é fortemente subestimado. No fim, talvez revele-se menor que a das gripes comuns. A política, não a epidemiologia, guia as reações da China e dos EUA.

Do fracasso no combate à Sars, o regime chinês extraiu a decisão de que a humilhação jamais se repetiria. “O coronavírus é um teste do sistema chinês e de sua capacidade de governo”, proclamou Xi Jinping.

Por isso, depois de perseguir o médico que identificou as primeiras manifestações do vírus, o aparato de controle social moveu-se na direção contrária, para proteger a sacrossanta imagem da China. O isolamento de Hubei não evita a difusão do vírus, mas mostra que o Grande Irmão pode tudo.

O hospital erguido em dez dias figurou na mídia mundial como campanha de propaganda do regime totalitário. Enquanto as escavadeiras operavam, centenas de milhares de chineses gripados interpretavam o sentido da mensagem oculta e enfileiravam-se diante de hospitais, intercambiando vírus diversos.

O sistema de saúde de Hubei inclina-se quase exclusivamente para o combate ao coronavírus. Nessas semanas, quantos chineses morrem, por falta de atendimento adequado, de outras moléstias?

“Leprosos” —é assim que a China classifica tacitamente todos os residentes de Hubei. Assim, também, os EUA classificam implicitamente todos os chineses —mas não apenas eles. Sob justificativas genéricas de segurança nacional, Trump baniu, em 2017, a entrada de cidadãos de sete países e, agora, adiciona seis países à lista negra.

O coronavírus não é um ebola. O banimento de chineses não deriva do saber científico: funciona como “normalização” da xenofobia.

A quarentena interna de Hubei e a quarentena externa da China cobrarão um preço econômico incalculável, deprimindo a expansão do PIB chinês e, por consequência, do PIB global. Vida é, antes de tudo, emprego e renda. Qual é o impacto das “medidas extraordinárias” na mortalidade difusa, ao longo do tempo?

O coronavírus não pode ser tratado como algo insignificante pois talvez seja transmitido por indivíduos assintomáticos. A saúde pública exige políticas específicas de contenção: quarentenas focalizadas, restrições de aglomerações, suspensões localizadas de atividades produtivas.

China e EUA preferiram, porém, o caminho do arbítrio estatal ilimitado. O pânico, a histeria servem a Xi Jinping e Trump. Você conhece algum “inimigo do povo” mais perfeito que um vírus?

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Julianna Sofia: Um estranho no ninho

Novo ministro do Minha Casa Minha Vida taxou seguro-desemprego e endureceu regras de aposentadorias

Na gênese da demissão de Gustavo Canuto do comando do Ministério do Desenvolvimento Regional, diferenças irreconciliáveis. Técnico metódico, alheio ao tempo da política, o quinto ministro exonerado por Jair Bolsonaro não só falava dialeto diferente dos ocupantes do Congresso como divergia entre quatro paredes dos gabinetes ministeriais do ideário ultraliberal da equipe de Paulo Guedes (Economia).

Sua instabilidade no cargo começou ao sentar na cadeira. A pasta, que sucedeu o antigo Ministério das Cidades, é cobiçada historicamente pela classe política por seu volume de recursos e capilaridade. É lá que sempre se praticou o toma lá, dá cá das emendas parlamentares com verbas para cisternas, saneamento, habitação e transporte urbano.

Por não ser um animal político, Canuto vinha sendo fritado em fogo brando. No final do ano passado, houve coro de parlamentares pelo acerto de pendências governistas na liquidação da fatura da reforma da Previdência, e a batata passou a assar em temperatura mais elevada.

Foi a dissonância com a equipe econômica, no entanto, que fez Guedes pedir sua cabeça na bandeja. O ex-ministro foi contra o modelo de marco do saneamento do Ministério da Economia por discordar da privatização irrestrita do setor. Em outra frente, divergia da linha do Posto Ipiranga ao defender uma política habitacional para o país.

Se o Minha Casa Minha Vida travou, auxiliares do ex-ministro culpam Guedes: cortou os recursos previstos para 2019 e encolheu o orçamento de 2020 —redução de 40%. A Economia foi contra a reformulação do programa apresentada por Canuto, que previa subsídio federal para baixíssima renda via voucher.

Com Rogério Marinho agora no Desenvolvimento Regional, o Palácio do Planalto pretende azeitar o jogo legislativo e Guedes passa a ter um aliado no ministério. Para elucidar os novos rumos da pasta, essencial buscar pelas palavras-chave: reforma trabalhista e da Previdência e taxação do seguro-desemprego.


Hélio Schwartsman: Missão impossível

Salta aos olhos a obsessão do protocensor de Rondônia com Rubem Fonseca

"Conteúdos inadequados às crianças e adolescentes" é uma frase impossível. Não há como um burocrata lotado num gabinete na capital saber de antemão o que indivíduos que ele nem sequer conhece estão aptos a compreender. Conheço jovens cuja capacidade cognitiva supera a de autoridades, eleitas, nomeadas e até concursadas. E não me venham falar em entendimento médio. Na média, a humanidade tem um testículo e uma mama.

Só isso já deveria bastar para afastar definitivamente qualquer pretensão do poder público de decidir a quais obras, espetáculos e outras manifestações culturais menores de 18 anos podem ter acesso. O máximo que o Estado pode fazer é exigir, no caso de exibições públicas, que tragam uma breve descrição da natureza do conteúdo para que os pais possam decidir.

Não obstante tais truísmos, essa turma que chegou recentemente ao poder insiste em promover uma cruzada para livrar a juventude de uma imaginada influência perversa de autores perigosos. Na mais recente emanação desse delírio censório, autoridades educacionais de Rondônia tramaram para recolher das escolas 43 títulos de livros que julgaram "inadequados". Depois que a maquinação foi revelada, recuaram, não sem tentar mentir sobre o ocorrido.

O que já era absurdo na forma torna-se ridículo no conteúdo. Quando se confere a lista de obras que seriam proscritas, o que salta aos olhos é a obsessão do protocensor com Rubem Fonseca, autor de 18 dos 43 títulos malditos. Mas sobrou também para o saudoso Cony, Kafka e Poe. Até "Macunaíma", leitura exigida nos principais vestibulares do país, teria sido banido.

Paradoxalmente, o "Putsch" cultural rondoniense faz avançar a causa liberal. Eles acabaram de me convencer da necessidade do Estado mínimo, desde que seja para livrar a molecada desse gênero de educateca. Ops, já ia esquecendo que a palavra "gênero" também precisa ser banida.


Míriam Leitão: As palavras e a falta delas

Este é um governo que tropeça nas próprias palavras, deixa de falar o que é essencial e confunde os adversários

O ministro Paulo Guedes passou a semana em silêncio diante do presidente Bolsonaro exibindo a sua irresponsabilidade fiscal. Bolsonaro prometeu abrir mão de R$ 27 bilhões de impostos em favor dos donos de veículos caso os estados façam o mesmo. Guedes não contraria o chefe nem quando ele ataca frontalmente seu projeto de equilíbrio fiscal e de fim de subsídios. Na manhã de ontem foi de uma extrema loquacidade sobre quase tudo. No caso da reforma administrativa, ele chamou os servidores de “parasitas”. De tarde, em nota, disse que sua fala fora tirada do contexto.

A reforma administrativa é parte do esforço de ajustar as contas do país, mas ainda não se conhece o projeto do governo federal, apesar da insistência com que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a defende. No Rio Grande do Sul, o governador Eduardo Leite acaba de aprovar, sem alarde e sem ofensas, a reforma gaúcha. Ela muda o plano do magistério que estava em vigor há 45 anos. E fez isso, porque, como explicou ontem em entrevista à CBN, só após ajustar as contas é possível reduzir impostos.

Bolsonaro falou abertamente que pode abrir mão de todos os impostos sobre combustíveis. Não chamou qualquer governador para conversar sobre o assunto, mas fez desafio público de que eles zerassem o ICMS. Se os governadores fizessem isso estariam incorrendo em crime pela Lei de Responsabilidade Fiscal. O ministro Paulo Guedes permaneceu em silêncio diante dessa proposta que do ponto de vista fiscal seria acender fósforo em tanque de gasolina.

A reforma administrativa é necessária e terá que resolver problemas reais. Os últimos concursos ofereceram aos servidores uma progressão rápida demais nas carreiras e com poucos anos o servidor chegava ao topo. É preciso ter carreiras que não causem desequilíbrios e distorções. É preciso ter promoções que não sejam automáticas. O que se ouve dentro do governo é que é improvável que se consiga mudar o presente, por isso as mudanças serão apenas em relação aos futuros servidores. É bom lembrar que o governo atual manteve, até para os que vierem no futuro a entrar nas Forças Armadas, benefícios que os funcionários civis já perderam, como a paridade e a integralidade.

Evidentemente não é possível começar a reorganizar a máquina pública chamando indistintamente os servidores de parasitas de um hospedeiro à morte. São inúmeros, incontáveis mesmo, os que têm a vocação para o serviço público, e que têm protegido os interesses coletivos em épocas de ataques sistemáticos a diversas áreas do Estado. É preciso saber a diferença entre combater privilégios e ofender todo o corpo de servidores. Na campanha, Guedes falou tanto em acabar com os subsídios. Aparentemente, perdeu o ímpeto. Estão lá R$ 300 bilhões de gastos intocados, e se fosse concedida a isenção aos combustíveis que Bolsonaro propõe o valor aumentaria.

— A imprensa está perdendo tempo, mas eu não posso falar mal da mídia, porque ela apoia tudo na pauta econômica. É na pauta política que o pau está comendo ainda — disse Paulo Guedes para essa plateia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) que aplaudiu quando ele disse que a imprensa “gira sem foco” porque perde tempo dando destaque “quando se xinga mulher feia”.

O ministro Paulo Guedes falou como sempre daquela forma solta. Depois reclamou quando viu a notícia publicada. Já aconteceu inúmeras vezes. Ontem foi apenas mais uma vez. Na parte da tarde, ele, em nota, disse que a frase sobre os servidores fora tirada de contexto e culpou a imprensa. Este é um governo que passa o tempo todo tropeçando nas próprias palavras.

Guedes se atrapalha quando fala sem pensar previamente que recado quer entregar, que é a regra número um na comunicação. Ele, por exemplo, se equivoca todas as vezes que trata da questão ambiental. Ontem disse que a França criticou as queimadas na Amazônia porque tem medo das exportações agrícolas brasileiras. A fantasia só não é maior do que o que está no relatório dos militares brasileiros divulgado ontem pela “Folha de S. Paulo”, sobre os riscos das próximas duas décadas. Em todos os cenários a França é uma ameaça ao Brasil e pode invadir a Amazônia. Os que têm tal delírio persecutório devem desconhecer que houve a batalha de Waterloo e que o país europeu não é mais uma potência napoleônica.


Felipe Betim: Democracia em vertigem’ reacende rancores que se arrastam desde 2014

Ninguém ficou indiferente ao documentário de Petra Costa sobre o impeachment de Dilma. Governo Bolsonaro utilizou a máquina pública para difamar a cineasta

Nenhum filme ou artista brasileiro jamais ganhou um prêmio Oscar. No próximo domingo, é possível que esse feito seja alcançado por Democracia em vertigem. Lançado pela Netflix, a obra da cineasta Petra Costa concorre na categoria de melhor documentário. Em outras épocas é possível que a mera nomeação de uma produção brasileira fosse motivo de orgulho e de união na torcida pela vitória. Mas no Brasil onde rancores políticos se arrastam desde 2014, a nomeação gerou o contrário: manifestações públicas de respaldo incondicional ou de repulsa por uma obra que apresenta uma visão particular —a da cineasta— sobre o processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT) entre 2015 e 2016.

 

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A imagem de dois Brasis —um vestido de verde e amarelo e outro de vermelho—que o filme exibe nas vésperas da votação do impeachment, separados por grades de contenção em Brasília, vem se repetindo nas redes sociais, colunas de jornais e outros tipos de manifestações públicas. Por um lado, artistas e figuras públicas da esquerda —sobretudo a petista— se veem representados pela narrativa da diretora sobre todo o processo: a de que o PT, depois de 13 anos no poder, durante os quais se aliou com antigos figurões da política e viu alguns de seus principiais membros envolvidos em corrupção, agora era tirado do poder por uma elite econômica que reagiu à ascensão social das camadas mais pobres nas últimas décadas com o objetivo de manter seus privilégios; e por uma elite política, encarnada sobretudo na figura do ex-todo-poderoso presidente Câmara Eduardo Cunhaainda mais corrupta que age de acordo com os interesses dos mais abastados. E tudo isso em nome do combate à corrupção.

Para além do processo de impeachment em si, o filme reforça a ideia de que a centro-direita acabou pavimentando o caminho para a eleição do ultradireitista Jair Bolsonaro, visto como uma ameaça para a democracia. “Eu nunca achei na minha vida veria tanto retrocesso. Passei minha juventude lutando contra a censura no meu país e contra uma ditadura militar brutal que me colocou na cadeia, e matou e torturou muitas pessoas. Inacreditavelmente, agora vivo em outra situação dentro de uma democracia na qual o fascismo mostra suas garras", narrou em inglês o compositor Caetano Veloso num vídeo para promover o documentário nas vésperas da cerimônia do Oscar. "O Governo brasileiro não está só travando uma guerra contra as artes e seus criadores, mas contra a Amazônia e os direitos humanos num geral. Para que isso seja compreendido, eu gostaria de chamar sua atenção para um lindo filme cinematográfico de uma jovem brasileira, Petra Costa, que acaba de ser indicada ao Oscar, Democracia em vertigem”, finalizou. Esse e outros vídeos e mensagens de apoio rodaram as redes sociais e foram compartilhados por celebridades internacionais como Queen Latifah.

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Essa visão negativa sobre o processo de impeachment, que a cineasta admite ser uma visão estritamente pessoal, baseada na forma em que ela percebeu e interpretou os acontecimentos, é o principal incômodo entre aqueles que apoiaram a destituição de Dilma Rousseff. Em suma, muitas pessoas olharam para o filme e não gostaram da imagem exibida por esse espelho.

Entre elas está o entendimento de que a cineasta se limitou a apresentar a “narrativa petista” dos acontecimentos e a colocar o partido como grande vítima de uma conspiração golpista. Entre economistas há a percepção de que Costa não abordou suficientemente a crise econômica gestada partir do Governo Dilma Rousseff como condição necessária para o derretimento de sua popularidade e de suas condições de governar. Também argumentam que ela trata as chamadas pedaladas fiscais, que juridicamente alavancaram o processo no Congresso, como mero detalhe.

Outro fator que impulsionou a campanha contrária ao filme de Petra Costa foi a adulteração de uma fotografia histórica apresentada nos primeiros minutos da produção. Trata-se da imagem de dois militantes do PCdoB —um deles Pedro Pomar, “mentor de meus pais”— que foram executados pela ditadura militar em 1976. A cineasta retirou da imagem duas armas que foram implantadas por agentes do regime para justificar os assassinato de ambos, mas não deixou isso claro em sua produção. "Há uma razão para isso, e eu estava esperando que alguém do público notasse“, disse para a revista Piauí. "Há um debate significativo sobre a veracidade das armas nesta cena, com muitos comentários. E até a própria Comissão da Verdade trouxe evidências para as alegações de que a polícia plantou as armas após a morte de Pedro e, por isso, optei por remover esse elemento e homenagear Pedro com uma imagem mais próxima à provável verdade”. Apesar de não ter negado a manipulação, e apesar de todo o debate que existe sobre esses artifícios em documentários, seus críticos se viram fortalecidos na hora de acusá-la de desonestidade e de tentar fraudar a história.

Houve mal-estar inclusive entre jornalistas e colunistas de grandes meios de comunicação, que viram suas próprias narrativas desafiadas pela repercussão internacional do documentário. “Há manipulações evidentes de narrativa para que o espectador incauto acredite que o Brasil viveu um golpe de Estado em 2016, e não um conturbado processo de impeachment de uma governante inepta”, escreveu o colunista da Folha de S. Paulo Igor Gielow, para quem a realidade traçada pelo documentário de Petra Costa e, do lado oposto, pelos bolsonaristas de hoje são duas faces de uma mesma moeda.

Na última semana, o apresentador Pedro Bial, da TV Globo, declarou em um programa da Rádio Gaúcha que o filme é “insuportável” e que “vai contando as coisas num pé com bunda danado”. Em fala vista como machista, também criticou a “narração miada, insuportável, onde ela [Petra Costa] fica choramingando" ao longo da produção. “É um filme de uma menina dizendo para a mamãe dela que fez tudo direitinho, que ela está ali cumprindo as ordens e a inspiração de mamãe, somos da esquerda, somos bons, não fizemos nada, não temos que fazer autocrítica. Foram os maus do mercado, essa gente feia, homens brancos, que nos machucaram e nos tiraram do poder, porque o PT sempre foi maravilhoso e Lula é incrível”.

SecomVc

@secomvc

Nos Estados Unidos, a cineasta Petra Costa assumiu o papel de militante anti-Brasil e está difamando a imagem do País no exterior. Mas estamos aqui para mostrar a realidade. Não acredite em ficção, acredite nos fatos.

Vídeo incorporado

12,3 mil pessoas estão falando sobre isso

Mais grave, porém, foi a reação do Governo Jair Bolsonaro, que utilizou a máquina pública, paga com os impostos de todos, para difamar a cineasta. Na última semana, a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) afirmou nas redes sociais, em português e inglês, que a cineasta “assumiu o papel de militante anti-Brasil e está difamando a imagem do País no exterior”. O artigo 37 da Constituição Federal determina que a Administração Pública deverá obedecer os princípios da impessoalidade, o que significa que ela não pode ser usada para atacar qualquer cidadão com fins políticos. Assim, a interferência do Governo foi vista por especialistas como um abuso de poder que poderia configurar improbidade administrativa. Defensores da cineasta dizem que o mero uso da máquina pública para atacá-la só confirma a mensagem de sua obra.

A ação do Governo motivou a deputada Maria do Rosário (PT-RS) a protocolar no Ministério Público Federal uma representação contra Fabio Wajngarten, chefe da Secretaria, no dia 4 de fevereiro. No mesmo dia, o deputado bolsonarista Marco Feliciano (sem partido-SP) protocolou na Procuradoria uma denúncia contra a cineasta “pela prática de discriminação religiosa e de ato contra a segurança nacional”.

A cineasta Petra Costa.
A cineasta Petra Costa. ARMANDO ARORIZO / EFE

Em primeira pessoa

Petra Costa é neta de um dos fundadores da construtora Andrade Gutierrez e filha de militantes do PCdoB que lutaram contra a ditadura. Como em suas produções anteriores, a trajetória pessoal de sua família e sua história pessoal, passando pela euforia de ter ajudado a eleger o petista Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, se interliga com o momento de extrema polarização pelo qual o país passava durante o impeachment. Um processo com várias faces e marcado por inúmeras contradições, muito longe de uma luta do bem contra o mal que seus apoiadores e detratores, munidos de certezas, costumam apontar.

A cineasta teve acesso a imagens aos bastidores do PT ao longo do afastamento e exibiu cenas que ajudam a compor seu quebra-cabeças. Como os depoimentos de Dilma Rousseff, mostrando seu lado mais humano em meio ao furacão que interrompeu a sua gestão. Ou de um ex-presidente Lula informando pelo telefone celular do Palácio do Alvorada que aceitou ser ministro-chefe da Casa Civil da ex-presidenta. Há também preciosas fotografias, áudios e vídeos de arquivo, incluindo algumas gravações inéditas feitas por Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial de Lula, durante seu período na presidência.

Por outro lado, um enfoque tão amplo omitiu —propositalmente ou não― fatos relevantes. Por exemplo, a cineasta passa da explosão das ruas em Junho 2013 para o início das manifestações pelo impeachment, em 2015. Passa batido por eventos de 2014, incluindo a polarizada eleição entre Aécio Neves e Dilma Rousseff. Nesse processo, a candidata Marina Silva, que quase foi para o segundo turno, ficou pelo caminho após uma pesada campanha negativa —e por vezes também mentirosa— por parte do PT.

Com pontos a favor e pontos contra, todas as discussões mais técnicas sobre o documentário em si se tornaram secundárias diante da divisão que ele reacendeu. É esse o filme que representará o Brasil na principal cerimônia de premiação do cinema no mundo. E, independentemente do que aconteça no próximo domingo, veremos mais uma rodada de celebrações e lamentações na conturbada cena política brasileira. Nem mesmo o Oscar —quem diria— escapou de ser mais um capítulo de um período histórico extremamente polarizado do Brasil.

Adere a

Crescimento econômico no Brasil deve ir além do ‘voo de galinha’, diz Sérgio C. Buarque

Em artigo publicado na revista Política Democrática online, economista indica caminhos para o país avançar

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“O crescimento recente da economia será apenas um ‘voo de galinha’ se não forem enfrentados alguns dos graves estrangulamentos econômicos”. A afirmação é do economista Sérgio Cavalcanti Buarque, professor aposentado da FCAP (Faculdade de Ciências da Administração de Pernambuco) da UPE (Universidade de Pernambuco), em artigo que produziu para a 15ª edição da revista mensal Política Democrática online. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados gratuitamente no site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que produz e edita a revista.

» Acesse aqui a 15ª edição da revista Política Democrática online

Segundo Buarque, que também é consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, os resultados econômicos do ano de 2019 não constituem inflexão na trajetória da economia brasileira. Para ir além do que chama de “voo de galinha”, ele sugere começar pela reforma tributária e a desestatização em áreas estratégicas, de resultado rápido na melhoria do ambiente de negócios e nos investimentos no Brasil.

A grande virada histórica da economia brasileira, conforme o artigo publicado na revista Política Democrática online, será possível apenas quando o país decidir apostar todas as suas fichas na educação, na qualificação profissional e na inovação. “Nestes segmentos, cabe ao Estado papel decisivo, o que depende da recuperação das finanças públicas e de sua capacidade de investimento. Apesar dos pesares, 2019 deu alguns passos à frente”, afirma o professor.

Em sua análise, o economista observa que, depois da profunda recessão que afundou a economia brasileira, 2019 foi o terceiro ano consecutivo de crescimento econômico, bem modesto, mas confirmando a recuperação iniciada em 2017. Ele diz que não dá para comemorar, ao considerar os quase 12 milhões de desempregados (11,2% da População Economicamente Ativa) e 4,7 milhões de desalentados.

“Houve pequeno declínio do desemprego em 2019, acompanhado, contudo, da expansão da informalidade e da precarização do mercado de trabalho”, acentua Buarque. “Além da persistência do alto nível de desemprego, a economia brasileira terminou 2019 ainda com elevada ociosidade e baixíssima taxa de investimento, apenas 15,5% do PIB (Produto Interno Bruto)”, assevera.

Todos os artigos desta edição da revista Política Democrática online serão divulgados no site e nas redes sociais da FAP ao longo dos próximos dias. O conselho editorial da publicação é composto por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

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