Day: outubro 25, 2019

Luiz Carlos Azedo: O voto da Rosa

“Não é improvável que o voto da ministra Rosa Weber vire o julgamento do Supremo a favor do “trânsito em julgado”, sendo acompanhando por Cármen Lúcia , Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli”

O 4 x 3 a favor da execução da pena após condenação em segunda instância na votação do Supremo Tribunal Federal (STF) mantém o suspense sobre o desfecho desse julgamento. Até agora, votaram a favor os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux; contra, Marco Aurélio, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski. O julgamento foi suspenso pelo presidente da Corte, Dias Toffoli. Não votaram ainda Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Celso de Mello e o próprio Dias Toffoli, que anunciou a retomada do julgamento para os dias 6 ou 7 de novembro.

Dos sete votos, o mais emblemático foi a da ministra Rosa Weber, pelo fato de ter reiterado uma posição de princípio anunciada em julgamento de habeas corpus no qual votou a favor da atual jurisprudência, que determina a execução da pena após condenação em segunda instância. Rosa se manifestou contra a possibilidade de prisão de condenados em segunda instância, defendeu a presunção de inocência como “garantia fundamental” prevista na Constituição: “Goste eu pessoalmente ou não, esta é a escolha político-civilizatória estabelecida pelo Constituinte. Não reconhecê-la, com a devida vênia, é reescrevê-la para que espelhe o que gostaríamos que dissesse.”

Rosa contextualizou o julgamento, que ocorre num momento de “desconfiança do povo em relação a seus representantes e o descrédito da atividade política”. Segundo ela, é preciso resistir à tentação de “uma interpretação do texto constitucional que subtraia garantias e proteções”. Os constituintes, na sua avaliação, fixaram “o trânsito em julgado como termo final da presunção de inocência”. Quanto a isso, há que se considerar o fato de que a Constituição de 1988 foi elaborada num contexto de transição à democracia, no qual os traumas do regime militar levaram os constituintes a atribuir ao Supremo o papel de poder moderador da República, que até então, desde a Proclamação da República, fora exercido de forma nefasta pelos militares.

“Vale lembrar que a história universal é farta de exemplos de que a erosão das instituições garantidoras da existência dos regimes democráticos, quando ocorre, lenta e gradual, normalmente tem origem na melhor das intenções: moralidade pública, eficiência do Estado, combate à corrupção e à impunidade”, advertiu Rosa, que votou a favor da execução da pena após condenação em segunda instância em 66 decisões individuais, mas sempre com a ressalva de que era contra a jurisprudência e votaria para mudá-la, quando a questão voltasse a ser debatida em ações declaratórias. Ou seja, seu voto foi absolutamente coerente.

As consequências
Como diria o Conselheiro Acácio, personagem antológico de Eça de Queiroz, muito citado pelo ex-vice-presidente Marco Maciel, “as consequências vêm depois”. Não é improvável que o voto de Rosa vire o julgamento, sendo acompanhando por Cármen, Gilmar, Celso e o próprio Toffoli, pois todos sinalizaram nessa mesma direção em decisões e manifestações anteriores. Se isso ocorrer, será um ponto de inflexão irreversível para a Operação Lava-Jato. Seu impacto imediato será a libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É uma decisão desgastante para o Supremo, porque a opinião pública é amplamente favorável à prisão em segunda instância, e com potencial de inflamar o ambiente político do país.

Rosa sabe perfeitamente que seu voto é polêmico, mas nem por isso deixou de faze-lo conforme a sua consciência. Nesse aspecto, serve de exemplo. Entretanto, ninguém deve ser ingênuo de acreditar que a Corte não sofrerá pressões de toda sorte. A interrupção do julgamento ensejará a mobilização de “lavajatistas” e “garantistas”. Nesse sentido, como em toda radicalização, o maniqueísmo presta um grande desserviço. Por exemplo, a tese de que a decisão pode resultar na soltura de 190 mil presos comuns é uma forma alarmista de influenciar a opinião pública, e não tem base na realidade. Não haverá um indulto generalizado nem uma anistia geral.

O melhor é aguardar a decisão final da Corte, cujo nome já diz tudo: Supremo, que tem a palavra final sobre a aplicação da Constituição da República.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-voto-da-rosax/


Eliane Brum: Lula livre, sim, mas sem fraudar a história

O PT não contribuirá com a criação de um futuro melhor se seu maior líder seguir insistindo em apagar a memória de Belo Monte

Luiz Inácio Lula da Silva, preso há mais de um ano, deve ser libertado. E isso provavelmente acontecerá, de um modo ou outro. Lula deve ser libertado porque o processo que o colocou na cadeia está povoado por abusos do poder judiciário e despovoado de provas. Como já escrevi neste espaço, a prisão de Lula não mostrou que até os poderosos são presos no Brasil, mas sim que até os poderosos podem ter seus direitos violados no Brasil. O que cada um acha sobre a culpa ou inocência de Lula não importa, o que importa são provas e o cumprimento do rito legal. É isso que nos protege a todos, é isso o que também separa a democracia da ditadura. É fundamental, porém, fazer uma distinção. Como qualquer brasileiro, Lula tem direito à justiça. Mas Lula não tem direito aos seus próprios fatos.

Mais perto da possível libertação, Lula já iniciou sua campanha num país dilacerado por ódios que seu partido também ajudou a produzir. Já anuncia o desejo de viajar pelo Brasil. É uma vontade legítima. Inclusive porque era ele o candidato em primeiro lugar nas pesquisas para a eleição de 2018 e foi impedido pelo judiciário, que decidiu mudar de forma arbitrária os rumos do país. O PT não deve nem pode ser riscado do mapa eleitoral e do debate político do Brasil, como querem alguns grupos. Quem decide se o partido pode representá-los são os eleitores.

O problema que se anuncia é a tentativa de recuperar o espaço perdido pelo partido apagando as contradições do PT no poder. E, principalmente, tentando remover – ou pelo menos contornar – a pedra no meio do caminho chamada Belo Monte. Não vai dar para apagar Belo Monte. Esta pedra é grande demais.

Belo Monte não é um erro, mas o que os povos do Xingu chamam, e isso desde o governo Lula, de “um crime contra a humanidade”. É também o que o Ministério Público Federal chama de “etnocídio”. E, mais recentemente, também de “ecocídio” e de “genocídio”. É ainda onde se desenha aquela que pode se tornar a maior tragédia da Amazônia brasileira: a morte da Volta Grande do Xingu, onde vivem os povos Juruna e Arara, além de ribeirinhos, pela administração predatória da água por Belo Monte.

O autoritarismo destrói um país. Por todos os motivos óbvios. E também porque interrompe o debate público, assim como os movimentos em curso. Em cotidiano de exceção, como já vive o Brasil, as diferenças entre os projetos políticos são borradas em nome do objetivo maior, o de impedir a completa destruição da democracia. O processo de aprimoramento das instituições e de melhoria da sociedade é suspenso e toda a energia é consumida no gesto de bloquear a acelerada corrosão dos direitos.

O Brasil é um presente constantemente interrompido para que as elites econômicas e políticas (e às vezes também intelectuais) possam manter – ou recolocar – o passado. Em geral, o fazem aliando-se aos novos atores que nada querem mudar, apenas ter acesso ao restrito grupo dos que detêm os privilégios de classe, de raça e de gênero. Entre os novos atores deste momento estão, por exemplo, as lideranças evangélicas fundamentalistas.

O autoritarismo mata a potência de uma geração, obrigando-a apenas a reagir

A constante interrupção leva à perda de toda a energia de uma geração de brasileiros na criação do futuro. Barra também o protagonismo de grupos historicamente silenciados que tinham passado a disputar o presente, caso dos negros nos últimos anos. É assim que se mata a potência de um país. Obrigando as pessoas a esgotar suas forças no gesto de fazer barreira para perder menos, sem espaço para criar gestos para avançar mais. É o que o Brasil e outros países governados por déspotas eleitos vivem hoje.

Se o PT foi violentamente atingido pelas manobras autoritárias de forças com as quais fez alianças no passado e pode voltar a fazer nas próximas eleições, como setores do MDB, é também evidente que a truculência do bolsonarismo no poder abriu uma possibilidade para, mais uma vez, o partido operar para apagar suas digitais em crimes cometidos durante os 13 anos no poder. Pessoas que estiveram em governos do PT ou os apoiaram ativamente, nos últimos anos tiveram que encarar a dura realidade de um partido que se corrompeu. Mais recentemente, porém, parecem ter retornado ao estado de autoilusão: os abusos cometidos pelo judiciário na prisão de Lula deu um forte motivo para voltar a se sentirem no lado certo da história e promover o esquecimento dos atos arbitrários do PT. Mais uma vez se ouve de parte da esquerda que não é hora de criticar o PT. Nunca foi hora, como sabemos.

É da essência do maniqueísmo apagar as complexidades. Num país polarizado, o maniqueísmo serve aos dois polos. Ou é todo o mal, ou é todo o bem. A adesão à política pela fé, na qual os eleitores se comportam como crentes, mesmo quando ateus, atinge todo o espectro ideológico do Brasil. Da direita a esquerda.

A fragilidade da democracia brasileira é causada, em grande parte, pela impunidade dos crimes dos agentes de Estado na ditadura. Deste apagamento da memória nasceu uma democracia com alma deformada. Um dos principais objetivos dos grupos no poder, em especial o dos generais, é apagar suas digitais das violências cometidas durante o regime militar (1964-1985). Jair Bolsonaro tem se esforçado para torcer os fatos e reformular o passado ao seu gosto, convertendo torturadores em heróis e violências de Estado em atos de heroísmo. Em geral, governos autoritários investem no apagamento da história como primeiro ato, colocando no lugar sua mitologia. Os estados totalitários do século 20 são aulas completas sobre essa falsificação. É por compreender a extensão dessa violência que parcelas da sociedade brasileira têm se mobilizado para impedir a destruição da história da ditadura.

Já deveríamos ter compreendido o gravíssimo equívoco representado por compactuar com apagamentos em nome de oportunismos, ou, se preferirem palavras mais palatáveis, do pragmatismo político, da estratégia eleitoral, de governabilidades ou como queiram chamar. Já deveríamos ter aprendido que omissões e silenciamentos nos levam a lugares ainda mais sombrios. Deveríamos, mas tudo indica que não.

É triste um país em que os homens públicos querem ser “mitos” – e não homens públicos

Nas entrevistas que Lula tem dado para preparar sua possível saída da prisão, ele deixa claro que seguirá apostando no fortalecimento do próprio mito, inflado agora por uma injustiça. Tem dito a aliados que pretende rodar o Brasil e assumir o papel de “fio condutor da pacificação nacional”. A “pacificação”, palavra que também foi usada por Michel Temer (MDB) no início de seu governo, é palavra recorrente na história do Brasil. Como já testemunhamos, ela tem servido para apagar assimetrias, desigualdades raciais e iniquidades. É a proposta de conciliação sem justiça social. Uma das tragédias do Brasil é a obsessão por “mitos” quando o que precisamos tanto é de um homem ou uma mulher imbuído de espírito público suficiente para colocar o país acima de suas ambições pessoais.

Quando Lula deixar a prisão, estará num Brasil diferente. Com a crise climática se agravando em curso acelerado, a Amazônia vem ganhando rapidamente a centralidade que sempre deveria ter ocupado. Sem floresta em pé – e por floresta se compreende não só árvores, mas todas as vidas, porque tudo ali funciona de forma conectada – não há possibilidade de enfrentar o superaquecimento global. Neste contexto, a desastrosa política dos governos do PT para a Amazônia ficarão mais – e não menos evidentes. Esta política é marcada especialmente por grandes “monumentos à insanidade”, como costuma dizer Antonia Melo, a maior liderança popular do Médio Xingu: as hidrelétricas de Belo Monte, no rio Xingu, Santo Antonio e Jirau, no rio Madeira, e Teles Pires, no rio de mesmo nome.

Belo Monte, o símbolo maior desta política que violou sistematicamente os direitos dos povos da floresta, está programada para ser concluída neste ano. As consequências de sua construção apenas começaram. O pior ainda pode estar por vir, caso o Ministério Público Federal não consiga impedir que a Norte Energia S.A, a empresa concessionária, execute uma administração da água que poderá condenar a Volta Grande do Xingu, onde vivem os povos Juruna e Arara, à morte. Outros povos da região atingida por Belo Monte, os Parakanã, Araweté e Assurini, de recente contato, publicaram um documento em 22 de outubro “exigindo a suspensão da liberação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e um pedido formal de desculpas pelos problemas já causados às etnias”.

Como Lula trata Belo Monte, uma obra que nem a ditadura conseguiu construir devido à resistência dos movimentos sociais e dos povos do Xingu, mas o PT sim, porque traiu seus aliados? Em entrevista à BBC Brasil, no final de agosto, Lula declarou: “Tenho orgulho de ter feito Belo Monte”. E, em outro ponto: “Não tente culpar a Dilma pelo que está ocorrendo em Belo Monte hoje. Cada um de nós é responsável pelo período que governou o país”. Em outubro, numa entrevista ao UOL, Lula afirmou aos jornalistas Flávio Costa e Leonardo Sakamoto: “Eu não sei o que vou fazer quando eu sair daqui, mas eu tinha vontade de voltar ao Xingu, a Belo Monte, eu não conheci Belo Monte. Eu fui lá fazer um debate, mostrar que seria um bem para o desenvolvimento. Se você tem, depois de anos, a informação de que a coisa está desandando lá em Altamira, eu disse isso numa entrevista, é preciso ver o que está acontecendo agora. Se estas pessoas estão cumprindo o acordo feito em 2009, se as pessoas estão cumprindo todas as determinações. Então o que proponho para você é que poderia, até para me ajudar, a procurar os ministros que fizeram o acordo na época e pedir a eles irem junto com você para lá para saber o que não está sendo cumprido”.

Sério. Lula disse isso mesmo. Não há menção de que tenha ficado ao menos levemente ruborizado.

Lula pode começar seu programa de estudos sobre Belo Monte lendo as 25 ações movidas pelo Ministério Público Federal

Caso sua saída da prisão ainda demore um pouco, Lula pode organizar um programa de estudos para se aprofundar sobre as violações ocorridas na construção de Belo Monte durante os governos do PT. Pode começar pelo próprio leilão, arquitetado por ele com a ajuda do amigo e ex-ministro da ditadura Delfim Netto. Ganhou o consórcio formado às pressas, para simular uma disputa, com pequenas empreiteiras sem nenhuma experiência em projetos deste porte. Em seguida, as grandes empreiteiras – as que preferiram não disputar (Odebrecht e Camargo Correa) e a que disputou e perdeu (Andrade Gutierrez) – formaram o Consórcio Construtor Belo Monte. As pequenas também migrariam para este consórcio na sequência. É na construção que está os lucros – e também a propina. Esta parte da história está sendo investigada e documentada pela Operação Lava Jato.

Em seguida, Lula pode ler as 25 ações movidas pelo Ministério Público Federal denunciando todas as violações ocorridas para materializar Belo Monte no Xingu, algumas delas durante o seu próprio governo. Pode seguir seu plano de estudos lendo o livro “A expulsão de ribeirinhos em Belo Monte”, organizado e publicado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Em 449 páginas, cientistas e pesquisadores de diferentes áreas documentam as atrocidades cometidas e as consequências que vão desde a ameaça de extinção de espécies à destruição da saúde mental das pessoas que foram expulsas de suas terras, ilhas e casas.

Terminado este livro, o presidente que materializou Belo Monte pode aprofundar seu conhecimento sobre o próprio governo e o de sua sucessora, Dilma Rousseff, estudando o Dossiê produzido pelo Instituto Socioambiental, no qual estão narrados como os povos indígenas foram corrompidos pela Norte Energia SA com uma “espécie de mesada de 30 mil reais em mercadorias”, fazendo com que mesmo indígenas de recente contato passassem a comer salgadinhos e refrigerantes em vez de alimentos da sua roça e peixes do rio. Poderá ler inclusive documentos com timbre do Ministério de Saúde do governo de Dilma Rousseff que dizem o seguinte:

“A partir de setembro de 2010 [último ano do governo Lula], com a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, os indígenas passaram a receber cestas de alimentos, composta por alimentos não perecíveis e industrializados. Com isso os indígenas deixaram de fazer suas roças, de plantar e produzir seus próprios alimentos. Porém, em setembro de 2012 [primeiro mandato de Dilma Rousseff], tal ‘benefício’ foi cortado, os indígenas ficaram sem o fornecimento de alimentos e já não tinham mais roças para colher o que comer, o que levou ao aumento do número de casos de crianças com Peso Baixo ou Peso Muito Baixo Para a Idade, chegando a 97 casos ou 14,3%”.

Em outro ponto do documento, o aumento dos casos de “doença diarreica aguda” em 2010 é relacionado à atuação da Norte Energia nas aldeias:

“Em 2010 registramos um aumento considerável, já que numa população de 557 crianças menores de 5 anos ocorreram 878 casos, o equivalente a 157% dessa população ou 1.576,3 para cada 1.000 crianças. (…) Mudanças nos hábitos alimentares com a introdução de alimentos industrializados oriundos de recursos financeiros das condicionantes para construção da hidrelétrica de Belo Monte é outro fator contribuinte para o alto índice existente”.

A desnutrição infantil nas aldeias da região, conforme dados do dossiê, aumentou 127% entre 2010 e 2012. Um quarto das crianças estava então desnutrida. No mesmo período, ainda segundo o dossiê, o atendimento de saúde a indígenas cresceu 2.000% (dois mil por cento) nas cidades do raio de impacto de Belo Monte. A situação é tão aterradora que, em 2014 [ano da eleição de Dilma para o segundo mandato], técnicos da Funai recomendaram a aquisição de cestas básicas para enfrentar a vulnerabilidade alimentar das comunidades. Dito de outro modo: cestas básicas para impedir que indígenas, que antes de Belo Monte tinham autonomia alimentar, morressem de fome ou de doenças causadas pelo consumo repentino e indiscriminado de produtos industrializados, assim como pela interrupção do plantio, pesca e coleta de alimentos, causado pelo ingresso dos mesmo produtos.

Os índices de exploração ilegal de madeira dispararam na área de influência da obra. Na Terra Indígena Cachoeira Seca, uma das afetadas pela usina, foram extraídos 200.000 metros cúbicos de madeira só em 2014 [governo de Dilma Rousseff]. Essa quantidade é suficiente para encher mais de 13.000 caminhões madeireiros. Em 2013, a TI Cachoeira Seca foi a mais desmatada do Brasil. (leia mais aqui).

Uma indígena do povo Araweté disse então ao antropólogo Guilherme Heurich: “As mercadorias são a contrapartida de nossa morte futura”.

Onde estava a Funai naquele momento? Ah, sim. Tinha sido convenientemente enfraquecida na região pelo governo do PT, com fechamento de postos justamente quando era mais necessária.

Na construção de Belo Monte, os governos do PT converteram povos da floresta em pobres urbanos e enviaram a Força Nacional para reprimir greves de trabalhadores

Como Lula está preocupado com a obra que impôs aos povos de Altamira e do Xingu, ele também pode ler os testemunhos dos ribeirinhos constrangidos a assinar com o dedo papéis que não eram capazes de ler, papéis que os condenavam a perder tudo. Quando milhares foram submetidos à “remoção compulsória”, não havia nenhuma assistência jurídica disponível para a população atingida, parte dela analfabeta.

Lula pode ainda refletir sobre como os governos do Partido dos Trabalhadores colocaram a Força Nacional para reprimir as greves dos... trabalhadores. Neste caso, os operários da usina e também as manifestações dos atingidos. Quem sabe Lula siga adiante e investigue como foi possível que a Agência Brasileira de Investigação (Abin) tenha infiltrado, em 2013, um espião no movimento social Xingu Vivo Para Sempre. E, se tiver fôlego, pode rememorar a acidentada evolução das licenças de Belo Monte no Ibama durante os governos do PT, com algumas demissões escandalosas de presidentes que se negaram a assinar permissões inaceitáveis.

A obra é vasta. É impossível se aprofundar na destruição promovida pela “grande obra do PAC” sem acompanhar a explosão da violência urbana provocada por Belo Monte, que transformou Altamira na cidade mais violenta da Amazônia. Assim como a conexão desta violência com o segundo massacre carcerário da história do Brasil, ocorrido em julho deste ano, em que 58 pessoas foram decapitadas ou queimadas vivas, e outras quatro foram executadas no percurso da transferência. É essencial conhecer os efeitos de uma rotina de balas e de mortes sobre as crianças dos “Reassentamentos Urbanos Coletivos”, os bairros construídos pela Norte Energia para empilhar os expulsos por Belo Monte. Há mais, muito mais. Dá para ocupar anos de prisão com horrores.

E então, talvez, Lula possa compreender a frase dita por Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu, em 2012: “Lula e Dilma passarão para a história como predadores da Amazônia”.

A exploração predatória da Amazônia não é ruptura, é continuidade

O Brasil recente pode ser contado por rupturas. Mas pode ser contado também por pelo menos uma continuidade: a exploração predatória da Amazônia como política de Estado. Esta era a política dos governos da ditadura militar. E seguiu sendo a política dos governos da democracia, apesar dos direitos dos povos indígenas garantidos pela Constituição de 1988. Há semelhanças entre a política para a Amazônia desenvolvida pela ditadura e a política para a Amazônia implementada pelos governos do PT – de Lula, acelerada a partir da saída de Marina Silva do governo, a Dilma.

Com Bolsonaro, a exploração predatória atingiu níveis incomparáveis. Em velocidade inédita, ela é executada pela estratégia de desproteção da floresta e pela recusa à obrigação constitucional de demarcar as terras indígenas. O bolsonarismo tenta desfazer inclusive o que foi feito de positivo pelos governos anteriores. O resultado já pode ser visto antes mesmo do final do primeiro ano de governo, com a explosão do desmatamento e dos incêndios que assombraram o mundo.

Sobre a Amazônia, parece não haver polarização. Estão todos afinados. Dilma inaugurou Belo Monte explodindo de orgulho pouco antes do impeachment, Bolsonaro prometeu abrilhantar a cerimônia em que será ligada a última turbina, os militares de antes e os de agora invocam a fake news da ameaça à soberania nacional para seguir explorando a floresta e, apenas algumas semanas atrás, Lula declarou-se orgulhoso do que os moradores do Xingu chamam de Belo Monstro.

A Lava Jato tem muitos significados. Sempre critiquei seus flagrantes abusos, assim como o comportamento inaceitável do então juiz Sergio Moro. Ele e o procurador Deltan Dallagnol são os maiores inimigos da Lava Jato. Por conta de sua falta de limites e da sua vaidade continental, comprometeram também o trabalho dos procuradores sérios da Lava Jato, que desnudaram como funcionava o esquema de corrupção entre partidos e empreiteiras no país e botaram na cadeia milionários que até então tinham a impunidade como direito de classe. Entre os trabalhos sérios em curso está o desvendamento do esquema de corrupção que garantiu a construção de Belo Monte contra todas as violências visíveis a olho nu. Esta violação do Estado de direito é definida por Thais Santi, procuradora federal em Altamira, de “o mundo do tudo é possível”.

Lula ironiza quem pede a ele e ao PT autocrítica. Acha que não deve nenhuma explicação a quem o colocou no poder pelo voto acreditando no discurso da ética feito pelo partido desde a sua formação. Devemos entender então que o projeto que se mostrou em toda a sua imensa destruição em Belo Monte segue sendo a proposta do partido para a Amazônia. Se Lula almeja se alçar a “pacificador” do Brasil, deve ter uma frase em mente: “Se a paz não for para todos, não será para ninguém”.

Não haverá paz na Amazônia sem justiça. Não permitiremos o apagamento da memória. Não esqueceremos. E não deixaremos esquecer.

*|Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum


‘Cidade inteligente faz melhor, gasta menos e atende quem mais precisa’, diz Luciano Rezende

Prefeito de Vitória discute melhoria da qualidade de vida em seminário realizado pela FAP, em Brasília

“A gente defende e faz um governo reto, rápido, eficiente, transparente e online”, disse o prefeito de Vitória (ES), o médico Luciano Rezende (Cidadania), durante o seminário Cidades Inteligentes: o uso da economia criativa e do turismo como ferramentas do desenvolvimento. O evento é realizado, nesta sexta-feira (25), pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e pelo partido, em Brasília, com a presença de possíveis pré-candidatos a prefeitos pela sigla.

Rezende participou da primeira mesa do seminário, que discutiu o tema cidades inteligentes. Nela, o prefeito citou exemplos de sucesso de sua gestão em Vitória. Ele apresentou uma série de ações que tem melhorado serviços públicos, como educação, saúde, segurança e mobilidade urbana. “Ciclovias são construção permanente na cidade por causa da sua importância para se locomover”, citou ele. O seminário é transmitido ao vivo pela página da FAP no Facebook.

Vitória tem 400 mil habitantes, mas, segundo Rezende, chega a receber até um milhão de pessoas durante a semana, devido à sua localização de destaque na região metropolitana. Segundo o prefeito, quase todo o município é coberto por internet grátis. “Tudo que a gente faz consegue colocar online e atingir todo mundo. O governo analógico foi enterrado”, disse ele.

“Cidade inteligente usa qualquer mecanismo de tecnologia e inovação. Faz melhor, gasta menos e atende quem mais precisa. Não é só uma cidade que usa tecnologia e internet. Tem decisões inteligentes, por exemplo, que usam coisas muito simples”, destacou ele, chamando a atenção para se valorizar pessoas e ações focadas em soluções de problemas.

O prefeito de Novo Horizonte, a cerca de 400 quilômetros de São Paulo, Toshio Toyota, fez os contrapontos da mesa. “Vejo que, se não investirmos nos nossos jovens, não vamos mudar o Brasil. O maior capital humano que temos é o ser humano”, disse ele, que está no quarto mandato, ressaltando casos de sucesso da cidade na área de educação.

De acordo com o prefeito, é essencial que a gestão pública foque em qualificação e comprometimento, valorização e capacitação de profissionais e que tenha, no caso da educação, envolvimento de pais e outros responsáveis. Na cidade, por exemplo, Toyota adotou horário de trabalho pedagógico coletivo, com infraestrutura adequada e equipe multidisciplinar.

“Com o mesmo recurso financeiro que a lei determina, os 25%, sem gastar nada além disso, é possível fazer uma educação de qualidade”, ressaltou. “Deixo um legado na minha cidade de ter formado uma geração nova e com muito mais valor”, acrescentou.

Ex-diretor da FAP, Juarez Amorim, conhecido como Juca, sugeriu aos possíveis pré-candidatos que gestão pública não é complicada. “Que a gente nunca pense que fazer gestão pública é algo extraordinário. Gestão tem que ter coisas simples, pequenos gestos, todos os dias”, ressaltou. “Queremos fazer revolução em métodos e práticas”, acrescentou.

Ele disse, ainda, que os fiscais de trânsito não podem ser remunerados por multa, por meio de acréscimos nos subsídios. “Essa questão fiscal pode ser aproveitada no Brasil inteiro”, disse ele, referindo-se a uma prática adotada em Vitória, onde os fiscais focar em orientação, e não exclusivamente em multa.

Ex-deputada federal e diretora executiva FAP, Luzia Ferreira fez a mediação da mesa sobre cidades inteligentes. “Cidades inteligentes são importantes para a economia criativa, que gera renda e emprega muitas pessoas. A chamada revolução industrial mostra seu esgotamento em função de novas tecnologias”, asseverou ela.

 

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‘Cidades inteligentes devem ser parâmetro do Cidadania’, diz Roberto Freire a possíveis pré-candidatos a prefeitos

Presidente do partido participa de seminário, em Brasília, realizado pela FAP em parceria com sigla

“O Brasil é um país profundamente injusto, desigual e com problemas graves do século XIX”. A declaração foi proferida, nesta sexta-feira (25), pelo presidente do Cidadania 23, Roberto Freire, durante o seminário Cidades Inteligentes: o uso da economia criativa e do turismo como ferramentas do desenvolvimento. “Cidades inteligentes devem ser o parâmetro do Cidadania, que surge para dar resposta a esse novo mundo”, destacou.

O evento é realizado em Brasília pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e pelo partido. Na abertura, Freire esteve acompanhado do jornalista e diretor da FAP Luiz Carlos Azedo e do secretário de turismo de Fortaleza (CE), Alexandre Pereira, que é coordenador do seminário.

Diante de possíveis pré-candidatos a prefeitos pela sigla no seminário, o presidente do Cidadania disse que é preciso mudar a realidade desigual, a partir de um paradigma de futuro. “Não podemos mudar essa realidade sem ter esse paradigma do futuro”, disse ele, referindo-se ao modelo de cidades inteligentes que devem pautar a gestão pública dos municípios e os respectivos planos de governo e de ação.

“Não vai se resolver mais nenhum problema se [a cidade] não estiver conectada com toda a sociedade, que está se conectando rapidamente e em plena vigência”, afirmou ele. Para Freire, os gestores públicos devem ter a preocupação de administrar as cidades sempre pensando nas perspectivas de melhorias de qualidade de vida, de serviços públicos e do desenvolvimento sustentável.

De acordo com o presidente do Cidadania, o modelo de escola não pode ser mais o tradicional. “[A escola] vai ter que se ligar, não sendo mais presencial, mas ligada ao que mais há de mais avançado no mundo”, afirmou ele. “O Cidadania não surge para mudar de nome, surge para ser instrumento de ação política dessa nova realidade de nova sociedade”, acrescentou.

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Assista ao vivo o Seminário Cidades Inteligentes

https://www.facebook.com/facefap/videos/945960165787031/


Revista Política Democrática || Reportagem especial - Serra Pelada vive à míngua do ouro (Parte 1)

Promessa do governo, de legalizar garimpo, reacende a exploração manual na Amazônia, como mostra a primeira das duas reportagens da série Sonho Dourado: 40 anos depois 

Cleomar Almeida

Nas mãos calejadas de Antônio Soares (69 anos), a picareta com cabo de madeira ganha velocidade e avança contra a estrutura rochosa no fundo de um barranco de 70 metros de profundidade que ele e outros garimpeiros abrem em Serra Pelada, no Sudeste do Pará. O suor mina do corpo. O barro vermelho-amarelado ofusca a pele. Eles atuam na clandestinidade em busca de ouro, mas só encontram migalhas na região em que, há 40 anos, teve início o maior garimpo a céu aberto do mundo.

Em situação ilegal, a maioria dos garimpeiros deflagra entre si uma guerra silenciosa em parte da floresta amazônica, sem qualquer precisão sobre a existência de ouro no local em que operam e sem infraestrutura que diminua o risco de desabamento dos barrancos. Para não perderem tempo na corrida pelo ouro, outros já exploram o metal com auxílio de empresas que identificam minas por meio de imagem via satélite.

O consenso entre diversos grupos de garimpeiros é para que o presidente Jair Bolsonaro cumpra a promessa, feita em agosto, de que pretende legalizar os garimpos. No início deste mês, Bolsonaro criticou a empresa mineradora Vale pela exploração de minérios no país e reforçou seu discurso em defesa dos garimpeiros, que veem a multinacional como uma grande barreira para exercerem a atividade, manualmente.

– Minha alma está no garimpo. Aqui tem muita riqueza ainda e não quero que o ouro escorra entre os meus dedos de novo, afirma Antônio, que atua em um barranco perfurado aleatoriamente, enquanto solta um largo sorriso com dois dentes de ouro.

Antônio esteve em Serra Pelada em 1980, mas foi embora no ano seguinte porque diz ter se desanimado pela multidão atraída para a região. Voltou em janeiro. Deixou a família para trás – 17 filhos em Mato Grosso, Maranhão e São Paulo, além de netos e bisnetos – para se unir aos garimpeiros. Sem equipamentos de segurança, eles passam o dia inteiro revezando picareta, cavadeira, enxada e pá. Na minguada disputa pelo ouro, só há intervalo para fazerem uma rápida refeição em fogão de tijolo à lenha, tomar água e dormir, à noite. Ninguém dá detalhes da quantidade de ouro encontrado.

– A gente trabalha para o patrão, que ajuda com o sustento e dá proteção. De vez em quando, aparece uma pepita, mas é coisa miúda, diz o garimpeiro José da Silva (66), que trabalha no mesmo barranco que Antônio.

Entre os garimpeiros, vale a lei do silêncio. No grupo, o olhar de um é suficiente para chamar o outro em um canto afastado. Qualquer comportamento suspeito por parte de algum integrante é recebido pelo garimpeiro-chefe com sinal de advertência. A maioria deles é analfabeta e mora em casas de madeira desgastada, como é predominante em Serra Pelada, aonde as pessoas chegam em lotação após trafegarem 50 quilômetros – 35 deles em estrada de terra – a partir de Curionópolis, a 675 quilômetros de Belém.

Apesar de boa parte deles atuarem em terreno público, garimpeiros que descobrem uma área com potencial de exploração antes dos demais se autodefinem como donos dela e convidam outros para trabalhar, pagando-lhes por meio de diária ou porcentagem do total de ouro achado. Eles reproduzem um código próprio do garimpo, semelhante ao que existia na década de 1980, quando foram extraídas 42 toneladas do metal na região. Na época, Serra Pelada atraiu 100 mil pessoas. Hoje, tem oito mil moradores.

O garimpeiro Jó Borges da Silva (33) opera em uma mina conhecida como mais bem organizada e identificada com auxílio de uma empresa de monitoramento de imagem via satélite. Na cabeça, usa um capacete improvisado e passa o dia explorando ouro em um barranco de 80 metros de profundidade com as laterais protegidas por estrutura de madeira. Usada para puxar as pedras de dentro do buraco, uma gangorra com corda grossa também serve como elevador improvisado dos garimpeiros.

– Meu sonho é achar uma pepita de 30 quilos, maior que a minha cabeça. A maior que já achei aqui tem dois gramas. Quero terminar de construir minha casa em Eldorado dos Carajás. Comecei há três anos e nunca consegui terminar, conta Jó.

O sonho dele corresponde à metade do peso da maior pepita identificada em Serra Pelada e que fica exposta no Museu de Valores do Banco Central, em Brasília. Em 1983, o garimpeiro Júlio de Deus Filho encontrou a pepita Canaã (de 60,8 quilos no total, dos quais 52,3 quilos são de ouro). É a maior parte de uma pedra de quase 150 quilos, que se partiu em vários pedaços quando foi retirada do solo.

O garimpeiro Antônio da Cruz Arantes (59), que se apresenta como proprietário de um dos garimpos identificados por imagem via satélite em Serra Pelada, pretende expandir o negócio e torce para que tenha apoio do Governo Federal. Enquanto faz o processo de lavagem da terra para separar o ouro em uma bateia, ele mostra onde vai instalar um britador próximo ao pequeno barranco.

– Em poucos dias, vamos colocar esta estrutura para funcionar e aqui já queremos separar o ouro o máximo possível. O garimpo está quase vencido, mas a proposta de Bolsonaro vem reacender o sonho de milhares de garimpeiros que esperam pelo funcionamento do garimpo de Serra Pelada, que está adormecido desde os anos 1990, diz Antônio.

Assim como outros trabalhadores da região, o garimpeiro dos dois dentes de ouro torce para que a atividade seja legalizada e que o governo promova ampla discussão com a sociedade, além de ter mais controle sobre a área para coibir a exploração indevida de minérios e mão de obra. Seu maior desafio é, como disse, não deixar o ouro escorrer pelos dedos, como ocorreu quando esteve em Serra Pelada pela primeira vez.

– Não sei se estarei vivo, mas tomara que isso tudo melhore. Vai que eu consiga completar os dentes de ouro da minha boca. Mas, para falar a verdade, não quero, não, porque depois me matam só para roubar os dentes.



Garimpeiros e mineradora Vale acirram briga
Garimpeiros de Serra Pelada reclamam que a empresa mineradora Vale atrapalha as atividades de exploração manual de ouro que eles realizam no Sudeste do Pará. Desde os anos 1970, segundo líderes locais, a multinacional avançou sobre a área que antes estava demarcada para a atividade da cooperativa. Em nota, a Vale nega e informa que não tem intenção de prejudicar os garimpeiros.

Diretor da Cooperativa de Mineração dos Garimpeiros de Serra Pelada (Coomigasp), Almir José da Cruz Arantes diz que a Vale expandiu seu campo de atuação após a descoberta de ouro por parte de um grupo de garimpeiros na região. A empresa informa que não é contra a exploração de minério realizada por pequenos garimpeiros e que cedeu à cooperativa o título minerário de ouro.

A cooperativa também reclama que a Vale construiu em cima da pista de pouso do garimpo uma estrada de escoamento de produção de minério de ferro da mina da unidade de Serra Leste. Segundo os garimpeiros, a obra teve como objetivo atrapalhar a logística de exploração de minério por parte deles e a chegada de pessoas em pequenos aviões.

A Vale informa que construiu a estrada em 2015, com o devido cumprimento do que estabelece a legislação brasileira e licenciamento ambiental junto ao órgão competente. A atividade, segundo a empresa, contribui para o desenvolvimento de Curionópolis, do qual Serra Pelada é distrito, com a geração de empregos, arrecadação e a dinamização da economia local.

Somente em 2018, segundo a mineradora, a operação de Serra Leste gerou R$ 17,3 milhões à União, ao Estado e ao município. Deste total, acrescenta, Curionópolis recolheu R$ 10,4 milhões em Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais. A Vale diz que, no Pará, desenvolve atividades diversificadas de mineração, com produção de ferro, cobre, níquel e manganês e também atividade logística, por meio da Estrada de Ferro Carajás.

 



BLOCO | NA HISTÓRIA

Em outubro de 1977, o então presidente da Companhia Vale do Rio Doce, que tinha direitos sobre a jazida, confirmou a existência de ouro na Serra dos Carajás. Em 21 de maio de 1980, o Governo Federal promoveu uma intervenção na área. No ano seguinte, os depósitos de ouro na superfície se esgotaram e a Vale tentou reaver a posse da área. Na época, interesses eleitorais, porém, levaram o governo a fazer obras para prorrogar a extração manual, já que havia 80 mil garimpeiros na área. Em 1984, a Vale recebeu indenização de US$ 59 milhões.

Diante da queda do volume da extração no final dos anos 1980, o governo, em março de 1992, não renovou a autorização de 1984, e o garimpo voltou a ser concessão da Vale. Em 1996, os garimpeiros restantes invadiram a mina, mas uma operação do Exército e da Polícia Federal pôs fim à obstrução de 171 dias nos acessos a Serra Pelada.


 

25% do ouro produzido no Brasil é ilegal, diz agência
A Agência Nacional de Mineração (ANM) estima que até 25% de ouro produzido no país é ilegal. Em média, segundo a autarquia, o volume da produção do minério chega a 80 toneladas por ano. Desse total, 20 toneladas estariam em situação irregular. A agência não informou se fiscaliza regiões de garimpo para evitar a exploração ilegal de minério e com qual frequência.

Segundo relatório da agência, os estados com maiores reservas de ouro são Pará, Minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso. A ANM também informa que concedeu 2.394 Permissões de Lavra Garimpeira (PLGs) no país. Desse total, 1.711 são para exploração de ouro. O documento, emitido pela autarquia, é a autorização do garimpo.

Para legalizar um garimpo, primeiramente tem de ser observado se a área está livre, ou seja, não onerada por título de lavra, por questão de conservação ambiental ou outro motivo, como barragens de água e linhas de transmissão de energia. Se estiver onerada, deve-se verificar a possibilidade de solução do conflito, como a cessão parcial da área. Depois, é preciso providenciar o título autorizativo de lavra.

Segundo a ANM, a exploração ilegal de minério pode ser verificada em diversas situações. Entre elas, a inexistência do título autorizativo ou de licença ambiental, inobservância das normas regulamentares, lavra ambiciosa pelo não aproveitamento racional e condições operacionais inseguras e insalubres.

A agência não informou se realiza investimentos em monitoramento por satélite para identificação de jazidas de ouro no país, assim como fazem alguns pequenos garimpeiros da região de Serra Pelada. A ANM alega que depende de denúncias para apurar os casos de garimpos ilegais e saber quantos foram registrados no país.


Revista Política Democrática || Entrevista Especial - Caio Luiz de Carvalho: "Objetivo é levar arte e cultura a todos os brasileiros, sem censura"

Diretor Executivo no Grupo Bandeirantes de Comunicação e coordenador do Canal Arte 1, Caio Luiz de Carvalho critica qualquer tentativa de impor, de volta, a censura nos meios de comunicação em nosso país, onde a liberdade de expressão foi conquistada a duras penas

Por Caetano Araujo e com a colaboração de Vladimir Carvalho e Martin Cezar Feijó

Doutor pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (2009), graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (1976) e professor extra carreira da Fundação Getúlio Vargas, o diretor geral da ENTER-Entertainment Experience, empresa de eventos do Grupo Bandeirantes de Comunicação, Caio Luiz de Carvalho, há 12 anos é responsável pelo Canal Arte 1, que nasceu com o objetivo de levar arte e cultura a todos os brasileiros. Ferrenho defensor da liberdade de expressão em nosso país, ele é o entrevistado especial desta edição da Revista Política Democrática Online.

Caio de Carvalho foi ministro de Estado de Esportes e Turismo, presidente da Embratur, presidente do Conselho Executivo da OMT –Organização Mundial de Turismo e presidente da São Paulo Turismo S/A. De acordo com ele, que também é membro dos Conselhos da Japan House, Museu de Arte Moderna e Museu da Língua Portuguesa, no Arte 1 não existe nenhuma forma de censura. "Os produtores dispõem de espaço totalmente aberto para criar nas mais diversas linguagens", afirma Caio de Carvalho. "O Arte 1 continua cumprindo seu papel, de ser um canal que nasceu com o objetivo de levar arte e cultura a todos os brasileiros. Censura não passa pela porta do canal, nem do grupo Bandeirantes", completa

Na entrevista especial, Caio de Carvalho comenta o papel do Arte 1 na difusão da cultura em todo o país, bem como a questão da democratização do acesso à cultura em nosso país e o avanço das novas tecnologias e plataformas digitais, como o streaming. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

 

Revista Política Democrática Online (RPD): O Arte 1 tem um formato clássico de televisão pública, a exemplo do que se passa na Europa e nos Estados Unidos. E, no entanto, o Arte 1 é levado por empresa privada. Como foi essa mágica?
Caio de Carvalho (CC): Tenho de esclarecer que não foi mágica minha. Quando saí do governo, em 2002, fui para Oxford e lá tomei contato e me apaixonei pelo projeto dos ingleses das indústrias criativas. Mais de dez anos depois, em 2011, veio o convite para assumir um posto no grupo Bandeirantes de Comunicação. Era, na realidade, um posto na área de seminários, eventos e tudo mais. Só que estava em gestação uma legislação na área de audiovisual, que abriria espaço para o surgimento de canais de espaços qualificados. No grupo Bandeirantes, o presidente, João Carlos Saad, o Johnny Saad, é um apaixonado por arte, ele mesmo sendo colecionador de obras. Seu sonho era atuar nessa área. A ele, juntaram-se outros amantes de arte, Paulo Saad Jafet e Salomão Schwartz, infelizmente falecido há pouco, além de Rogério Galo, que ainda hoje continua em televisão. Ao surgir a oportunidade de um canal cultural, a Bandeirantes conseguiu tornar realidade o sonho da família, e o Arte1 foi lançado, em 2011.

Assumi em fins de 2012 a direção executiva do que hoje é considerada a obra prima da televisão brasileira. Inspirou-se, sem dúvida, no exemplo da França, mas nos esforçamos para encontrar nosso próprio caminho. O canal “Artè” francês, de certa forma, se popularizou um pouco, ou seja, sua curadoria se abriu para permitir tipos de conteúdo mais light. O Arte1 se pauta por pesquisas que nos indicam estarmos com melhores conteúdos na comparação com os outros canais com programação semelhante. Atingimos o público classe A e B, mas, de certa forma, o canal nasceu com o objetivo de levar arte e cultura a todos os brasileiros. Pode parecer um paradoxo, porque nós estamos na TV paga, mas teve de ser assim. Não temos propriamente anúncios comerciais convencionais; temos, sim, bons parceiros, que querem estar com suas marcas associadas a conteúdos especiais, como é o caso daquilo que exibimos no canal Arte1. Ainda assim graças a esses parceiros e aos assinantes somos um canal autossustentável.

Estamos celebrando o sétimo aniversário, com cerca de 12 milhões e meio de assinantes. É um canal de sucesso. Já tivemos, é verdade, 13 milhões e 200, redução que acompanhou, no entanto, a queda dos assinantes das operadoras, no rastro de novas estratégias de mercado, como o streaming, plataformas diversas como Netflix, plataformas independentes etc. Os assinantes vêm migrando das operadoras para essas plataformas. De olho nisso, nós já estamos no streaming também com o Arte1 Play, que, para nós, é um desafio e é motivo de enorme orgulho. Arte1 está-se firmando como um produto de conteúdo, com mais de 40, 50 produtoras parceiras independentes. Ao longo desses sete anos, o canal já tem cerca de 800 horas de produção de conteúdo próprio, atemporal.

 

RPD: Em algum momento, vocês enfrentaram problemas com a censura?
CC: É um absurdo pensar em censura no mundo de hoje e num país como o nosso, cuja liberdade de expressão foi conquistada a duras penas. O Arte 1 continua cumprindo seu papel. Aqui não existe nenhuma forma de censura. Os produtores dispõem de espaço totalmente aberto para criar nas mais diversas linguagens. Censura não passa pela porta do canal, nem do grupo Bandeirantes. Adotamos, porém, alguns critérios de classificação etária para alguns programas, como se vê, aliás, no universo dos filmes comerciais.

 

RPD: A seu juízo, existe alguma relação entre a programação cultural, num sentido amplo, e a democratização do acesso a bens culturais? Caberia falar-se de uma questão paralela, o fortalecimento de uma política cultural democrática?
CC: O tema é extremamente complexo. Penso que a cultura não deveria estar em um ministério à parte. Deveria funcionar dentro do ministério da Educação, para que se pudesse fazer um trabalho de base, junto às escolas, à garotada, isto é, de forma que a gente pudesse ter um processo realmente na base da pirâmide. Talvez assim fosse possível influenciar, em um país com nossos imensos problemas educacionais e culturais, a TV aberta a usar sua força para ajudar a educar e levar cultura a todos os brasileiros, e não medir com réguas de pesquisas programação centrada em alegria, entretenimento, como se o povo preferisse o banal. Um escritor conservador, como Mario Vargas Llosa, já questionou tudo isso que está acontecendo na televisão de nossos dias. [1] Canais do tipo Arte1 se preocupam em fazer uma programação de qualidade para todo o público.

Você fez uma relação entre democracia e cultura. Acho que uma não existe sem a outra. Discutimos muito se tudo que é arte é cultura, se tudo que é cultura é arte. Mas o fato é que não são temas, conceitos, devidamente valorizados hoje pelos governos municipais, estaduais ou federal. A cultura é uma coisa muito séria, e eu só vejo essa questão da cultura a partir da educação. Não adianta termos ministérios frágeis, sem recursos. Reforço: a cultura é fundamental para qualquer país que queria tornar-se civilizado, um país que queira cuidar de suas gerações futuras.

 

RPD: Você se referiu à tendência à banalização das mensagens da televisão. No entanto, o Arte 1 populariza sem vulgarizar. Como conciliar entretenimento e arte?
CC: Acho que é possível. Eu mesmo fui atrás de um projeto francês de música clássica, proibido para maiores de 50 anos. Fiz de tudo para comprá-lo e consegui. Trata-se de um projeto maravilhoso, destinado a educar a criança sobre como se constitui uma orquestra, como se faz uma composição, a história dos grandes clássicos da música e tudo mais. É, sem dúvida, uma forma de entretenimento.

Há outro projeto no Arte 1, que é vitorioso. Estamos partindo para a quarta temporada. É sobre a arte da fotografia, que, na verdade, é um reality, sem ser uma competição, mais uma aula de fotografia. É conduzido por dois profissionais experientes, Claudio Feijó e Herbert Nogueira, que não ensinam apenas fotografia, ensinam a questão do olhar. É um projeto que está dando certo, num canal fechado, e é, também, de entretenimento.

Estamos explorando, agora, outro programa: uma batalha de pianos com a participação de jovens talentos de piano. Acreditamos, pois, que é possível trabalhar no Arte 1 mais para o lado do entretenimento, sem deixar o objetivo principal que é educar para a arte, educar para aquilo que é o objetivo do canal. Estamos convencidos de que esse é o caminho.

 

RPD: Como o Arte1 distribui a programação entre material produzido no Brasil e no exterior?
CC: O Arte1 surgiu, justamente, por causa de legislação, que dispõe a obrigatoriedade de reservar três horas por dia para produção nacional. É uma missão do canal. Nessas três horas, temos de apresentar no mínimo de 22 a 23 horas por semana de produção nacional, que é fruto de produção independente e de produção própria nossa. Quanto à produção estrangeira, minha equipe, integrada por jovens muito competentes, circula por feiras e mostras no exterior, em busca de materiais novos que valham a pena. A tarefa se facilita porque nossos parceiros internacionais já sabem o que nós queremos.

Além disso, tenho minhas preferências, que cultivo desde a universidade. Sou um cinéfilo. Daí ter trazido para o Arte1 os filmes chamados clássicos, para não mencionar produções próprias, como a entrevista que fizemos com Ettore Scola, uma obra prima, um mês antes de sua morte. Outro dia eu peguei o Giancarlo Giannini – que eu nem sabia que quase veio trabalhar aqui no Brasil, antes de ser cineasta – para falar de toda a história de seus filmes. Temos mais de 30 filmes brutos aqui, produções nossas, que estamos editando para passar em seu momento no canal, filmes atemporais e muito especiais.

 

RPD: Esses vídeos estão à venda?
CC: Temos o Arte1 Play que está no ar. Tanto em plataforma iOS da Apple quanto Android de Samsung e outros aparelhos nesse formato. É um produto barato, R$ 7,99 por mês, que dá direito a conteúdos os mais diversos possíveis e que podem ser acessados não só por televisores grandes, mas também por smartphones e tablets. Tenho uma série que é a paixão de muita gente. Já comprei a segunda temporada, num total de 30 programas, se chama This is Opera. É uma maravilha. É conduzido por um catalão que estou pensando em trazer para fazer uma apresentação aqui no Brasil. Esse programa é outro exemplo de que é possível conjugar arte e entretenimento.

 

RPD: Arte1 trabalha com grande diversidade de programas: música, cinema, filmes, artes plásticas, fotografia, dança. A seu ver, quais são, hoje, as principais frentes de atuação do Arte1 e quais serão em futuro próximo?
CC: Desde 2013, usamos o horário das 10 e meia da noite para programas com a diversidade a que você se refere. Sabemos que há amplo leque de idade em nosso universo de telespectadores, e que, naquela hora, as novelas já se encerraram, dando início à prática do zapeamento de canais. Decidimos nos concentrar aí em nosso prime time. Às segundas, é dia de concertos; às terças, artes visuais; às quartas, dança; às quintas, séries de arte; às sextas, filmes clássicos; aos sábados, Magazine Arte 1 com o New York Times, que é a única parceria fora da mídia impressa feita no mundo pelo New York Times; e aos domingos, literatura, com o Manoel da Costa Pinto, ComTexto, programa que já estamos renovando, graças ao apoio do Itaú Cultural.

A questão da literatura é para nós a mais complexa, porque envolve programas densos, em torno da obra de um escritor convidado e o Manoel. Mas, para nossa boa surpresa, em termos de audiência, nem tanto. Em termos de audiência, os filmes clássicos, as séries, os próprios concertos ganham, mas, na questão de tempo de permanência, Comtexto está bem à frente.

Isso reforça nossa proposta de programação cultural: interessar o público pelos caminhos das artes, como acontece em Arte na Fotografia e Thisis Opera. Não vulgarizamos e nem diminuímos a seriedade do canal; apenas permitimos que novos públicos também se interessem de uma maneira mais lúdica pela arte e pela cultura.

 

RPD: Arte1 sempre pergunta aos artistas da atualidade cultural sua definição de arte. Chegou sua vez: o que você entende por arte?
CC: Ferreira Gullar dizia que a arte existe porque a vida não basta. Acho que as definições de arte estão ligadas muito à questão da criatividade e do talento. Arte é fundamental para a gente sobreviver, pensar, refletir. Fico muito feliz de ter hoje a condição de dirigir uma equipe de jovens talentos, apaixonados pelo canal, que, embora sem receber grandes somas, vestem a camisa do canal, brigam por ele, porque têm esse prazer de saber que estão contribuindo para fazer uma obra prima na televisão. De certa forma, eles também estão fazendo arte, trabalhando no Arte1.

[1] Caio de Carvalho refere-se à obra La civilización del espetáculo, Santillana Ediciones Generales, S. L., Madrid, España, 2013.


Revista Política Democrática || Roberto Freire: Cidadania, o trilhar por novos caminhos

O Cidadania quer ser protagonista de uma nova jornada, com um horizonte para se transformar em importante referência de centro-esquerda e contribuir de forma positiva para a democracia brasileira e o desenvolvimento do país, destaca Roberto Freire

Há anos – talvez um marco importante tenha sido o desmoronamento do antigo sistema soviético e de suas repúblicas –, o mundo vem experimentando fortes transformações em seu modo de produzir e nas suas relações sociais, fruto de uma revolução cientifica e das inovações tecnológicas – era dos robôs e da inteligência artificial –, que impactam muito fortemente também no campos da política e das ideias.

Os padrões aceitos como universais e pouco mutáveis, todos eles herdados do iluminismo, da revolução industrial e da criação dos estados nacionais ainda no século XIX, começaram a se dissolver e passaram a não mais corresponder às realidades dos povos e aos formatos políticos de intervenção social. Ficaram velhos e foram perdendo apelo junto à opinião pública.

Se, antes, a divisão entre liberalismo e socialismo, entre capitalistas e trabalhadores, entre imperialismo e países periféricos tinha algum sentido e conformava a história do século XX com revoluções, golpes, experiências de governo e de Estado de todos os tipos, nos dias de hoje soa quase como tragédia.

Os dois arranjos representados pela social democracia clássica do pós-guerra e pelo neoliberalismo de Reagan e Thatcher não se firmaram como alternativas de longo prazo, mesmo que tenham trazido mudanças significativas às sociedades onde se instalaram.

Na Europa, por exemplo, com muita tradição política, a socialdemocracia gerou largos benefícios de justiça social, deu solidez por décadas às instituições públicas, ampliou o rol dos direitos sociais, alargou a democracia, mas não suportou ou não vem suportando as crises que assolam o continente e o mundo.

O neoliberalismo, uma tentativa de contornar o keynesiasnismo que salvara o capitalismo, conseguiu alguns resultados econômicos positivos na Inglaterra e Estados Unidos, porém faliu em sua pauta conservadora e não conseguiu fazer frente aos movimentos de conteúdo mais extremado de direita. Trump, dentro do Partido Republicano nos Estados Unidos e Johnson, no Partido Conservador inglês, são exemplos dessa falência.

Outros ideólogos surgiram para dar sentido político ao mundo em desalinho e esbarraram contra uma muralha invisível que ia se formando, pelo advento das novas tecnologias, o intercâmbio das informações e as novas relações sociais e de consciência, estas nascidas nos desvãos ideológicos e à sombra do poder velho.

Fukuyama, nos Estados Unidos, acalentado por toda mídia, e após a queda do regime soviético, falava na vitória final da democracia, como se ela, ao estilo ocidental e americano, fosse se plasmar a todas as nações do mundo. A tese morreu em poucos anos – o nacionalismo explodiu no leste europeu e no Oriente Médio, salvo pequenos intervalos com a chamada Primavera árabe, a visão teocrática e baseada em um poder de alta concentração continuou a se impor, até com mais truculência.

Pelo lado do Ocidente, o paradigma do Movimento Verde deu demonstração de vitalidade inicial entre os jovens, porém não se consolidou como alternativa de poder até porque não conseguiu produzir programas exequíveis de governo.

O pólo marxista renitente se esvaziou e em nenhum lugar do mundo é mais força motriz – não falamos da China, onde a discussão é outra, por conta de um estado absoluto e uma economia só reconhecida como de mercado por interesses comerciais ligeiros do Ocidente.

Os grupos e partidos beneficiados pelo chamado voto antissistema ou eurocéticos, vitoriosos na Grécia e com muito apelo na Itália e Espanha, parecem ter chegado ao limite. À frente de governos ou com posições de destaque no Parlamento, demonstraram-se frágeis, contraditórios, sem propostas coerentes e estáveis para dirigir um país.

No momento, em meio ao tumulto de ideias e de paradigmas, vemos movimentos de cunho restaurador, de um nacionalismo xenófobo e antiglobalista, querendo se afirmar em várias partes do mundo, tendo como centro principal os Estados Unidos, onde grupos religiosos, econômicos e políticos operam essa vertente sem qualquer pudor. A vitória de Jair Bolsonaro, em uma vertente tupiniquim, se insere nesse contexto.

Para onde o mundo vai? Para onde vamos no Brasil?

Ao certo, creio que ninguém tem uma resposta exata quanto aos desígnios do mundo e do Brasil. Muito se escreve sobre o futuro, sobre ideias, sobre governos e governabilidade. Mas nada se consolidou como paradigma que possa se abrir como uma perspectiva renovadora de forma estável, por décadas. Tudo está em aberto, por construir, em movimento.

Herdeiros que somos do iluminismo e da convencionada democracia ocidental, alguns postulados nos são caros e devem estar no centro de qualquer projeto: a democracia como valor universal, o inescusável respeito aos direitos humanos, a República, as liberdades individuais e coletivas, a busca da justiça social como um objetivo permanente, e a sustentabilidade (descartando-se o fundamentalismo, muito presente nessa área), o Estado laico, o internacionalismo, a paz e a solidariedade como os fios condutores nas relações entre as nações e o caminhar em direção a um mundo sem fronteiras e que supere o conceito de estrangeiro - nenhum ser humano é um estranho -,  tudo alicerçado porém nas culturas afirmativas dos povos.

Os partidos, com larga funcionalidade na sociedade industrial e em virtude dos estados nacionais, claudicam em sua forma atual. Estão ainda contaminados pela concepção de classes antagônicas e se firmam na democracia indireta, quando a democracia direta escancarou a sociedade moderna, sobretudo nos últimos 10 anos. Ou mudam ou morrem de vez, não há saída para eles se ficarem com a cabeça encravada na política do século XX.

O Cidadania, assim entendendo o mundo e o Brasil, quer ser protagonista dessa nova jornada. Longe de possuir respostas definitivas, apenas se abre para buscá-las. Certamente cometerá muitos erros, porém não poderá ser acusado de errar por se negar a trilhar novos caminhos.

De partida, distancia-se do legado classista, embora tenha em sua formação uma histórica sensibilidade e solidariedade com os mais pobres e os trabalhadores. Não acredita em uma ideologia acabada, mesmo sabendo que é impossível elidir cortes ideológicos em um grupo e de amplitude nacional, com suas histórias e dificuldades regionais. Nem tem a certeza da possibilidade no mundo contemporâneo de se construir um paradigma único, mas talvez um comum programa de governo.

A história, segundo entendemos, empurrou para um encontro mais profícuo liberais e social democratas, os dois nascidos do ideário pós revolução industrial. A uni-los o ideal da democracia e da liberdade numa nova etapa histórica das relações das pessoas na sociedade e da economia, onde mercado e Estado não mais necessariamente se opõem num duelo de vida ou morte.

No Cidadania com certeza não estarão todos os liberais nem todos os socialistas e socialdemocratas. As clivagens e as diferenças internas nesses dois campos são inúmeras. Acreditamos, porém, que o Cidadania tem horizonte para se transformar em importante referência de centro-esquerda e contribuir de forma positiva para a nossa democracia e o nosso desenvolvimento.

Além das dimensões políticas e programáticas, o Cidadania tem por vocação a criação de uma nova formação política, longe dos modelos centralizados e verticalizados, totalizantes. Um dos seus dilemas é permitir ao máximo possível o plasmar das diferenças de ideias e concepções, ser mais movimento e transparência, sem, no entanto, perder a credibilidade e capacidade diretiva. Se não resolver esse dilema, qualquer partido que se pretenda novo já nasce em conflito e em processo de decadência.

O Cidadania não é um projeto para 100 anos e não tem qualquer vocação para a prática da hegemonia em seu sentido totalizante. Pretende crescer, aumentar bancadas, ser eleito para dirigir Executivos, tendo clareza de buscar alianças amplas, duradouras, honestas e fraternas com forças políticas afins. Não vemos o poder como uma dimensão de luta fratricida e sem princípios.

A ética e o combate à corrupção são cláusula pétrea para o partido. Como são também o respeito e o equilíbrio entre os poderes republicanos. O desrespeito e o desmontar desse equilíbrio seriam a tragédia da democracia.

Em um de seus poemas, o português José Régio diz não saber por onde ir, mas se nega a caminhar pela bitola das sugestões e dos pensamentos velhos e consolidados.

Temos as nossas convicções e não queremos também caminhar pela senda do oportunismo e dos arranjos sem ética e sem princípios. Importante dizer: não estamos perdidos.

O Cidadania vem de caminhos antigos e honrados e que fazem parte de uma digna história. São referências.

Agora queremos construir e trilhar caminhos novos, até desconhecidos. Sem essa atitude, nossa e de outros, não haverá o futuro que todos desejamos.

* Roberto Freire é presidente do Cidadania.


Revista Política Democrática || Marco Aurélio Nogueira: Oposição depende do centro democrático expandido

Falta de iniciativa e unidade na oposição faz com que Jair Bolsonaro seja perturbado somente por seus próprios demônios e pelo fogo que arde a seu redor.  Governo não sabe que país é esse que o elegeu para governar

Não é só como metáfora da modernidade que a imagem do “carro de Jagrená” é eloquente. Disseminada pelo sociólogo inglês Anthony Giddens, trata-se de uma máquina mítica dos hindus que evolui arrastando consigo tudo o que encontra pela frente, sem que ninguém consiga controlá-la.

A metáfora serve bem para que se ilustrem situações como a brasileira, que escapa de avaliações simples e mostra um País flertando com o precipício, com a política em baixa, sem contar com um governo que atenue a carreira alucinada em que foi jogado.

A Presidência da República tornou-se um deserto de ideias. A paralisia e a mediocridade devoram suas entranhas. O primeiro mandatário não está à altura do cargo que ocupa, nem sequer se mostra à vontade nele, assusta-se com a própria sombra e acumula inimigos por onde passa. Não planta nem colhe nada de positivo, só atua para defender os próprios interesses restritos, seus e dos filhos. O governo não sabe que País é esse que o elegeu para governar. Não sabe e não se preocupa em querer saber.

O presidente segue pilotando seu Jagrená, indiferente aos estragos que provoca. Faz isso porque não é confrontado por uma oposição que vá além da agitação retórica e do jogo de cena. Como não há iniciativa e unidade na oposição, o governo só é perturbado por seus próprios demônios e pelo fogo que arde a seu redor. Movimenta-se sem demonstrar coesão ou a posse de um programa concatenado de ação.

Na economia, por exemplo, a gestão de Paulo Guedes avança porque foi assimilada por Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, que não só garantiu a progressão da Reforma Previdenciária, mas mantém ambiente favorável ao reformismo econômico que se deseja institucionalizar. Mesmo assim, a economia patina e, a sensação é de que não se sabe bem o que fazer para dar respostas efetivas aos problemas que afligem a sociedade. Algum desdobramento desse quadro deverá surgir nas eleições do ano que vem, com um possível aumento da frustração do eleitor.

A mistura exótica de ultraliberalismo na economia e ultraconservadorismo nos costumes não está servindo para que se dê um salto para a frente. O governo demoniza a globalização e a revolução tecnológica, mas não sabe decodificá-las, o que faz com que não consiga enfrentar os problemas reais do País, as desigualdades, o desemprego, a desindustrialização, a miséria, a pobreza. Falta imaginação, falta criatividade, falta um mapa de navegação. Há mais disputas internas que articulação. Muito mais ideologia que racionalidade.

A confusão governamental mostra-se às escâncaras na luta entre as facções incrustradas no Incra, como falou o general José Carlos Jesus após ser demitido pelo secretário de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia. A crise amazônica, sufocada entre a “porra da árvore” desprezada por Bolsonaro e a acusação governamental de que tudo não passa de uma disputa pelo minério que haveria em terras indígenas, exibe a céu aberto a inexistência de um plano que coordene a ação do governo na região. Por ali, militares não se entendem com o pessoal do ruralista Nabhan, que também não se entende com a turma do Ministério da Agricultura, cada qual amarrado a seu tronco.

As brigas dentro do PSL, até então tido como esteio parlamentar do governo, mostram uma combinação tóxica de miséria doutrinária com desejo de poder e controle do dinheiro.

Na Educação, o ministro Weintraub consegue a proeza de falar uma barbaridade sempre pior que a anterior. A área se arrasta, sem que haja qualquer indício de que uma luz por fim aparecerá.

Na Cultura, a censura corre solta, movida a guerra ideológica, a ingerências autoritárias, ataques e perseguições, chantagens e sufocamento orçamentário. Vetos a filmes entendidos como “pornográficos” convivem com a defesa de películas que fazem apologia a torturadores, igrejas e “valores cristãos”, no mais completo desrespeito à cultura, à arte, à liberdade de criação.

À margem de tudo, atacada por todos os lados e sendo devorada pela fogueira do governo, a Lava Jato agarra-se à opinião pública, que ainda lhe é favorável, sem poder contar com maiores apoios institucionais, o que a faz girar em falso. Confusões e trambiques como os do senador Flavio Bolsonaro e do ministro Marcelo Álvaro Antonio permanecem na crônica político-policial, sob o olhar plácido de Sergio Moro, outrora um impávido combatente anticorrupção. Pode ser que a Operação sofra algum ajuste e até volte a se fortalecer, mas seu momento atual é de declínio.

A palavra de ordem geral é de desconstrução: terra arrasada. Deseja-se um capitalismo livre de antolhos políticos, de regulação, de moderação, autocentrado e concentrado. Sem governo.

O presidente atira nos próprios pés, atrapalha-se na execução de coisas básicas, não consegue manter um ritmo proativo de gestão, nem administrar a gula de suas bases parlamentares. Sua natureza é o confronto. Está convencido da força de sua retórica e do estado de ânimo das parcelas da população que se retraem à política democrática e se deixam seduzir pelo ilusionismo do “mito”.

A “velha política” continua no comando, por mais que seja atacada por todos os lados. Entendida pejorativamente como sinônimo de práticas tidas como espúrias – entre as quais são enfiados, com mão de gato, o diálogo, o convencimento, a negociação –, a ela é contraposto o confronto como valor permanente, a intransigência, a veemência verbal, a localização de “inimigos”. O ambiente fica contaminado por “polarizações” recorrentes.

Ainda que aos trancos e barrancos, o sistema político resiste, chegando mesmo, em alguns momentos, a impulsionar o processo de tomada de decisões e compensar a conduta errática do Executivo. Mas é um sistema que reitera suas marcas negativas, que opera olhando para o próprio umbigo e em nome de interesses próprios. Em parte, se contrapõe ao governo e mostra independência; em parte, se consome em seu próprio fogo corporativista.

Algo precisa surgir de suas bordas, onde se aloja o centro democrático expandido: liberais, a esquerda social-democrática, ambientalistas, verdes, cristãos progressistas, humanistas. Não só para nortear a política, permitindo-lhe retomar suas virtudes cívicas e sua capacidade de articulação, mas também para que se possa criar uma oposição consistente, que enfrente o governo, dialogue pedagogicamente com a sociedade, module o “carro de Jagrená” e prepare o caminho para as disputas eleitorais que haverá pela frente.

Se o terreno ficar congestionado de candidatos presidenciais disputando espaço entre si, será difícil sair do túnel em que meteram o País. Alguns, por exemplo, como o governador paulista João Dória, querem monopolizar a centro-direita e isolar Bolsonaro na extrema. Para vencer, porém, Dória terá de atrair parte substancial dos votos da centro-esquerda e dos liberais, que não rezam por sua cartilha. Outros batem no peito para proclamar sua superioridade perante os demais, há quem trabalhe em silêncio para cavar a própria trincheira e quem levante poeira para chamar atenção. Há donos demais, lideranças de menos. E a bandeira do antipetismo já não funciona como catalizador.

Fiel ao egocentrismo que os caracteriza, cada pedaço do universo político deseja ter um candidato para chamar de seu. Pode ser que a ideia seja ganhar força e negociar depois. Se tal não acontecer, porém, e o PT insistir em manter a carreira-solo com ou sem Lula, as urnas de 2022 nem precisarão ser abertas para que se saiba o que conterão.

*Marco Aurélio Nogueira é professor Titular de Teoria Política da Unesp (Universidade Estadual Paulista).


Revista Política Democrática || Luiz Paulo Vellozo Lucas: Os caminhos da nova política

Nova política no país navega entre parlamentares de perfil liberal na economia e progressista nas políticas públicas a integrantes de blocos conservadores como o PSL e seguidores do presidente Jair Bolsonaro

A política brasileira bate cabeça em busca da sua restauração moral pela via que se convencionou chamar de “nova política”. Esta bandeira, no entanto, é empunhada por grupos muito diferentes. Os mandatos de Tábata Amaral, Felipe Rigoni e os outros deputados oriundos dos movimentos de renovação que votaram favoravelmente à reforma da Previdência contrariando seus partidos, respectivamente o PDT e o PSB, refletem um dos caminhos da nova política, de perfil liberal na economia e progressista nas políticas públicas. Marina Silva foi uma espécie de precursora desta tendência que já estava parcialmente presente no eleitorado nas eleições de 2010.

O bloco conservador liderado pelo presidente e seus filhos, por enquanto abrigados no PSL, representa claramente outra vertente política, mas não se pode negar que eles chegaram ao poder enfrentando e derrotando o sistema de partidos e a política tradicional no Brasil. Seus seguidores também acreditam estar lutando contra a podridão do sistema e apoiando a nova política.

A luta interna no PSL se dá principalmente em função da disputa pelo controle e distribuição do fundo partidário e da definição de candidaturas e alianças nas eleições. Temas particularmente caros à política tradicional e às velhas raposas que se articulam a todo vapor, visando às eleições municipais do próximo ano. O calendário eleitoral de 2020 já começou. A primeira disputa será pela bandeira da nova política e, por isso, todos querem distância regulamentar das brigas que podem ser vistas como “sujas” pelo eleitorado, isto é, cargos e dinheiro público para a eleição. É claro que, em off, a batalha é violenta!

A força das igrejas evangélicas estará presente, assim como muitas candidaturas de militares e policiais, para disputar eleições em nome da renovação. O interesse do empresariado e da opinião pública mais informada, movida principalmente pelo cansaço com a prolongada crise econômica e pelo pânico com a possibilidade de volta do PT, acaba sendo seduzida por qualquer caricatura de liberalismo econômico que se apropria da indignação nacional com o estatismo e os privilégios cevados ao longo dos séculos no Brasil, sem demostrar, contudo, compromisso e capacidade política para liderar uma agenda liberal reformista.

As máquinas dos governos municipais em fim de mandato estão enferrujadas e desgastadas e tendem a entrar com dificuldade no pleito majoritário, mas serão fortíssimas nas eleições de vereador, quando, pela primeira vez, será proibido fazer coligações proporcionais. O fisiologismo será determinante e o aparelhamento de estruturas de poder local para abrigar candidaturas a vereador para fazer legenda vai ser prática corrente. Até o STE já descobriu que só o voto distrital melhora a qualidade do voto e do pleito. Voto distrital e candidaturas avulsas.

O dinheiro do Fundão vai atrair políticos sem expressão e subcelebridades locais para o pleito, e os partidos em busca de sobrevivência também vão se virar para arranjar candidatos a prefeito e formar chapa de vereador. Políticos experientes derrotados pela onda conservadora em 2018 vão aparecer, alguns fantasiados de nova política, outros com o traje costumeiro. Os profissionais de campanha foram muito desvalorizados com o advento do whatsapp, mas os novos estrategistas digitais já estão oferecendo seus serviços e alguns já estão trabalhando. Ricos, famosos ou não, serão assediados com força pelos partidos para participar e, naturalmente, financiar a campanha de 2020.

Finalmente teremos alguns verdadeiros políticos por vocação que, apesar das circunstancias terríveis da política brasileira hoje, vão aceitar o chamado da vida pública e participar do processo eleitoral como candidatos. Gente como Tábata e Rigoni, que estão de fato se dedicando a melhorar a qualidade da política através do único modo comprovadamente eficaz: o exercício de seus mandatos com espirito público, preparo intelectual e coragem cívica, depois de disputar e vencer eleições usando como únicas armas suas convicções, corações e mentes.

Pode até não parecer, mas sou otimista. A proximidade das eleições municipais me faz sonhar com um debate público e informado sobre a crise urbana brasileira e com candidaturas renovadoras de verdade. O desenvolvimento sustentável e includente do Brasil começa nas cidades, com a liderança e o protagonismo do poder local, restaurando a confiança nas instituições da democracia e formando capital cívico.

 


Revista Política Democrática || Henrique Herkenhoff: Bola pelas costas

Ausência de uma estrutura de inteligência e, especialmente, de contrainteligência nos órgãos públicos exibe o despreparo das altas autoridades e instituições do governo em relação às questões de segurança

Enquanto diálogos entre autoridades ligadas à operação Lava-jato são divulgados de maneira homeopática, a opinião pública discute acaloradamente suas implicações políticas e jurídicas, muito embora uma análise racional mostre que elas dependem sobretudo do Judiciário e dificilmente terão lugar antes de uma revelação completa e verificada do conteúdo. Entretanto, outra questão menos empolgante fica esquecida, ainda que ela já seja uma certeza grave: a falta de uma estrutura de inteligência e, especialmente, de contrainteligência nos órgãos públicos.

Sim, qualquer instituição, grande ou pequena, pública ou privada, pode experimentar os benefícios da informação oportuna, confiável e estruturada, seja para as decisões operacionais cotidianas, seja para as grandes escolhas estratégicas. E não se deve desprezar, tampouco, a importância de evitar que seu adversário disponha desse mesmo conhecimento a seu respeito ou, melhor ainda, de o fazer acreditar em notícias falsas. Some-se a tudo isso a necessidade de proteger seu pessoal das agressões de qualquer espécie, e suas atividades, de vazamentos, invasões, traições, armadilhas.

Descobre-se que número espantoso de altas autoridades teve seus telefones hackeados, sem que houvesse medidas de prevenção, detecção ou correção à altura dos riscos incorridos. Se os criminosos não houvessem decidido utilizar esses conteúdos em público, as invasões poderiam se prolongar e espalhar indefinidamente. Por outro lado, é de espantar a ingenuidade com que se comunicam agentes públicos que legalmente interceptavam conversas alheias, sem que lhes passasse pela cabeça a possibilidade de também serem alvos. Nas investigações, ao contrário do futebol, não há uma bola só em campo, de maneira que o ataque não é defesa. Não vai aqui uma acusação, uma culpabilização; se foi obtido acesso indevido, houve uma falha ipso facto, que não pode se repetir, e ponto final.

Um programa televisivo tornou públicos, entre outros, diálogos de Lyndon Johnson com seu alfaiate. Nada comprometedor de sua honestidade, mas certamente íntimo e mesmo um tanto constrangedor. Não foi clandestino: os Presidentes dos EUA sabem de antemão que a Casa Branca grava tudo o que dizem ao telefone ou não, para disponibilizar algumas décadas depois. Jornalistas, pesquisadores acadêmicos e simples curiosos escarafuncham enorme material. A finalidade não é tanto a transparência, mas lembrar seu atual ocupante de ter cautela ao abrir a boca. Claro que isso não funciona com qualquer presidente, mas é uma tentativa.

Falhas em série podem ser identificadas nesta intrusão e, a contrainteligência simplesmente não funcionou, ou não havia. Não temos como prever as consequências, mas, em todas as hipóteses, o custo será alto. Independentemente de revelarem, ou não, alguma irregularidade por parte dos interlocutores, tais contatos jamais poderiam ter sido mantidos de uma maneira que pudesse ser acessada. Aliás, é sempre bom lembrar que não se pode deixar os investigados saberem o que está sendo feito, ainda que estritamente dentro da lei. Como se não bastasse, detalhes banais de sua vida privada podem ser mais embaraçosos, se publicados, do que algum verdadeiro ilícito. Não importa de que lado da lei você está: os acusados algum dia serão julgados; promotores e juízes são julgados todos os dias.

Quanto mais longa a apuração de determinada organização criminosa, maiores as probabilidades de que, em algum momento, ela providencie que seus próprios sistemas de inteligência – ainda que não os chame assim – levantem cada detalhe disponível, a respeito seja das investigações, seja dos investigadores. Grandes organizações, portanto, são exponencialmente mais capazes de revidar, não só por serem maiores, mais ricas e mais estruturadas, mas também porque não são arrasadas com a primeira investida.

As instituições públicas em geral e o Ministério Público, em particular, precisam estabelecer seus próprios serviços de inteligência, sem depender daqueles a quem, inclusive, devem fiscalizar, o que por si só implica uma completa contradição. Devem, por outro lado, utilizá-los tanto para suas atividades finalísticas, quanto para salvaguarda dos seus membros, equipamentos e ações, analisando, prevenindo, identificando e corrigindo falhas de segurança. Não há apenas ameaças à integridade física individual; há também graves riscos jurídicos, políticos, e institucionais para quem lida com forças adversas poderosas.